Transformado em pássaro, o homenzinho não conseguia lembrar exatamente o momento em que lhe nasceram asas. E ora repousava nos galhos mais grossos das árvores, ora aproveitava o dia para voar ao lado da passarada miúda.
Decididamente, sua memória não andava em ordem. Talvez em consequência da grave transformação física sofrida. Não se lembrava até mesmo se percebera logo a novidade, se sentira medo, alegria ou desespero, se experimentara voar imediatamente após se sentir alado. Recordava apenas de se ter perguntado onde se achavam seus braços, até se convencer da simples conversão deles em asas.
Não conseguia esquecer, no entanto, o momento em que sobrevoava um extenso parque, em voos rasantes e lentos, como um planador, deliciado com o panorama visto do alto. Avistava uma clareira e sentia vontade de repousar, voltar a terra, pousar no chão. Além do mais, duas figuras minúsculas, talvez presas fáceis para aves de rapina, se mantinham entretidas uma com a outra, sentadas à borda de uma grande pedra.
Feito um bem-te-vi, o homenzinho sustentou-se acima das cabeças das duas criaturas terrestres e, a muito custo, conseguiu reconhecê-las. Sim, podiam ser Eduardo e Batista, dois de seus melhores amigos, companheiros inseparáveis de ideias e ações.
Os dois rapazes conversavam e conversavam, e nem se davam conta da presença daquela figura maiúscula sobre suas cabeças, como uma ameaça. Nada percebiam e nada perceberam, nem mesmo quando o homenzinho alado pousou diante deles e recolheu as asas. Com certeza, não o viam, pois nem sequer se assustaram, nem sequer interromperam a conversa.
Por um minuto, o homem de asas imaginou estarem cegos seus ex-amigos. Sim, talvez não enxergassem mais e só se comunicassem pela fala. E resolveu dirigir-lhes a palavra: "Vocês me viram voando?" Nenhuma resposta. “E como estão vocês aqui na Terra?” Nada ouviam, além das próprias vozes. A conversa entre os dois não tinha fim. Falavam de transformações sociais.
O homenzinho não perdeu a paciência. Eduardo e Batista teriam ficado surdos. Não, não podia ser isto. Ora, se fossem surdos, não conversariam um com outro. Mais provavelmente não conseguiam ouvir a sua voz de pássaro humano, talvez baixa demais, talvez excessivamente alta. Sim, os ouvidos deles ouviriam outros sons. Como o bater de asas. Sobretudo asas grandes, como as suas. E pôs-se a bater as asas, como um galo a cantar. Nada cantou, porém. E nem os rapazes notaram o seu esforço.
Decepcionado, dirigiu-se de novo a seus antigos companheiros, agora aos gritos: "Vocês estão perdendo tempo." Encheu os pulmões e voltou a gritar: "Isto não leva a nada, meus amigos." E era como se ninguém estivesse diante deles, como se um micróbio declamasse versos em latim.
Com certeza, Eduardo e Batista não tomavam conhecimento da presença de seu ex-amigo. Ou os ausentes seriam eles? E se os dois não acreditassem na sua existência? Sim, corria um boato segundo o qual ele fora morto. Ou os inexistentes, os mortos seriam os outros dois?
O homenzinho se afastou, a passos lentos, dos rapazes. Continuassem a conversa. Transformassem o mundo, tudo. E não acreditassem nunca na possibilidade da existência de um homem alado. Esquecessem todas as lendas, todos os mitos estudados na escola.
E alçou voo, deixando para trás o bosque, os antigos amigos, a cidade, e foi pousar num matagal distante, depois de longas horas de vadiação pelo céu. Feito um animal lendário, mitológico.
Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
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