sexta-feira, 22 de novembro de 2019

André Kondo (O Castelo)


Em tempestade, milhares de guerreiros trovejaram contra o grandioso castelo de Himeji*. Os olhos dos samurais, incendiados pelo brilho de suas espadas, relampejavam na escuridão da guerra. Os senhores feudais lançaram-se todos contra o universal domínio do xogum*. Cada qual pleiteava para si uma parcela do poder, desejando, no íntimo, não uma parte, mas a soberania total. Este era um tolo plano de guerra: primeiro destruir o xogum; depois, destruir-se uns aos outros. Quem sobrevivesse seria o governante de uma nação em ruínas,

Não seria uma guerra rápida. Tomar o castelo de assalto era uma tarefa quase impossível. Primeiro, os invasores deveriam ultrapassar o profundo fosso e a colossal muralha que cercavam todo o complexo fortificado. Em seguida, deveriam vencer um confuso labirinto de passagens. Surgiria outra muralha interna... E mais outra. Enquanto isso, lançada das torres, uma chuva de flechas, pedras e óleo fervente cairia sobre suas cabeças. Se chegassem ao coração da fortaleza, a torre principal de cinco andares, os violadores estancariam diante de uma base de impenetráveis rochas.

Portanto, tomar o castelo não era apenas uma questão de força. Era principalmente uma questão de paciência. Se não podiam invadir o castelo, deveriam esperar que o oponente saísse. Sitiar a fortaleza. Com essa conclusão, os inimigos se prepararam para um longo cerco. Os conselheiros procuraram o xogum, que caminhava tranquilamente pelo jardim. Apresentaram uma lista de provisões e cálculos, demonstrando que poderiam resistir por meses dentro das muralhas. Porém, em um cenário como aquele, a vitória seria quase impossível. A verdade era que a situação estava perdida. Mesmo assim, o xogum parecia mais interessado nas pacíficas flores de seu jardim do que na guerra.

— A florada das cerejeiras deste ano me parece a mais bela de todas... Nunca haverá outra mais bela do que esta.

Conselheiros, guerreiros e cortesãos demonstraram grande inquietação ante o aparente descaso do xogum.

— Perdoe-me, senhor. Mas como pode pensar em flores quando as nossas vidas correm perigo?

Uma brisa soprou, arrancando uma solitária pétala. Com um movimento preciso, o xogum a apanhou no ar, envolvendo-a com a mão.

— Posso impedir que esta pétala caia agora... Entretanto, não posso evitar a sua queda para sempre. Lamento que as suas vidas estejam em minhas mãos, pois não serei capaz de mantê-las eternamente.

Dizendo isso, o xogum desabrochou os dedos, permitindo que a pétala fosse carregada pela brisa que começava a se intensificar em vento.

Houve grande comoção, pois parecia que o xogum já havia desistido de lutar, abraçando a derrota. Acompanhado por todos os guerreiros, um dos generais insistiu em trazer a mente do líder à situação de guerra. Abrindo uma planta do castelo, exibiu o seu plano de defesa. Após ouvir as preocupações do general e de todos os conselheiros, o xogum ergueu o mapa, dizendo:

— Penso que todos acreditam que esta planta é uma representação do castelo. Para mim, nada mais vejo do que a imagem de um homem... Observem o fosso que ele rasga para se separar de tudo aquilo que julga ser "invasor", isto é, diferente de suas convicções. Vejam as muralhas que ele edifica, mascarando as suas fraquezas para enganar os seus medos. Observem o confuso labirinto de aparências que ele traça para enganar outras pessoas, para confundir todos os que querem chegar à torre principal: o seu coração...

Todos ouviam o xogum com grande emoção. Sentiam que faziam parte das pedras de seu castelo. E o xogum continuou:

— Todos os homens são castelos de si mesmos. Mas o que temos de diferente de todos os outros? O que o nosso castelo de Himeji em cada um de nós tem de especial? Quando todos observam de fora a nossa torre principal, o coração de nossa fortaleza, eles só enxergam cinco andares. Mas nós sabemos que existe um sexto pavimento, oculto, na câmara superior. Esse andar, que os estranhos desconhecem e de que até nós nos esquecemos de sua existência, não tem nome. A partir dele, temos a visão geral dos quatro cantos do castelo, temos a consciência de tudo o que nos cerca. Este andar oculto, da consciência em nosso coração, é o mistério da vida. E por ser inominável, invisível e inexplicável... faz do nosso coração um mistério capaz de alcançar o impossível!

Todos os guerreiros no interior do castelo sentiram o coração bater mais forte. O vento soprava. Os olhares, antes receosos, decidiram-se de súbito, Os olhos do xogum se iluminaram:

— Agora, observem a verdadeira força que este castelo possui — dizendo isso, o xogum percorria com o dedo o traçado da fortaleza. — As muralhas, que parecem arraigadas à terra, tomam a forma de um pássaro prestes a alcançar os céus!

Talvez seja por isso que, a partir daquele dia, o castelo de Himeji passou a ser conhecido como Shirasagi-jo, o castelo da garça branca, pois, de fato, o traçado de suas muralhas retrata um pássaro se preparando para alçar voo.

Dizendo isso, o xogum bradou, suas palavras sobrepondo-se aos rumores do vento:

— Não podemos nos tornar prisioneiros de nosso próprio castelo. Somos homens livres! Não devemos deixar que o medo nos aprisione. Não podemos nos permitir sobreviver se o preço do resgate é deixar de viver, pois uma vida aprisionada é um suicídio sem morte! Lutemos para conquistar as nossas asas!

De um só golpe, o vento rugiu ainda mais forte, ultrapassando as muralhas do castelo, fazendo com que as pétalas das flores de cerejeira rodopiassem em fúria, abraçando o xogum e seus guerreiros, que bradavam a uma só voz. Suas espadas voaram contra os inimigos, que foram totalmente surpreendidos por aquele ataque. Os papéis haviam se invertido. Aturdidos e preparando-se para uma situação de sítio e não de combate imediato, pereceram diante da maior arma da vitória: o valor secreto que se revela inesperadamente no coração de um homem livre,

E aquela batalha memorável nunca mais seria esquecida, porque mostrou a todos que um homem não merece o poder apenas por ser forte como um castelo, mas também por ter a coragem de abandonar a segurança de seu ninho, erguendo as suas asas em audaciosos voos.

Após a grande vitória, caminhando ao lado do xogum entre as exauridas cerejeiras do jardim, um dos conselheiros afirmou:

— De fato, meu senhor, nunca houve e nem haverá uma florada mais bela do que a deste ano.

E o xogum respondeu:

— Imagino, agora, que a do ano que vem será ainda mais bela...
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Notas:
 Castelo de Himeji (em japonês: Himeji-jo), também conhecido como Hakurojō ou Shirasagijō devido ao seu brilhante exterior branco, é um complexo palaciano com 82 edifícios de madeira, localizado na cidade de Himeji, Província de Hyogo, no Japão.
Uma das mais antigas estruturas ainda existentes do Período Sengoku, é considerado como um Tesouro Nacional do Japão, tendo sido classificado como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO, em Dezembro de 1993. Juntamente com o Matsumoto-jo e com o Kumamoto-jo, é um dos "Três Famosos Castelos" do Japão e o mais visitado do país. (wikipedia)

Xogum (literalmente "comandante do exército", em português), é a abreviação do termo japonês Seii Taixogum (literalmente "Grande General Apaziguador dos Bárbaros"), foi um título militar, usado no período do Japão feudal, concedido diretamente pelo Imperador ao general que comandava o exército (enviado a combater os emishi, habitantes do norte do país). Até 1192, este título possuia nomeação temporária.
Desde o século XII até 1868 o xogum constituiu-se como o governante de facto de todo o país, embora teoricamente o Imperador fosse o legítimo governante e depositasse a autoridade no xogum para governar em seu nome. (wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

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