sábado, 9 de novembro de 2019

Nilto Maciel (Esfinge)


Naquela tarde saímos a passeio, nós duas e papai. Divertimo-nos como nunca. Assim mesmo, não saciamos a fome de brincar.

Papai sempre nos deu muito carinho. Em certas ocasiões, no entanto, tratava-nos até com aspereza, como se fosse outro. Era quando conversava com seus amigos. A nós dedicava todos os seus momentos de folga, fins-de-semana, feriados, férias. Passeávamos, brincávamos, como se os três fossemos crianças. Quando viajava, ficávamos tristes, porque mamãe não gostava de brincar conosco. Só me lembro dela a dormir, conversar com seus amigos e suas amigas, sair sozinha, a passeio.

Acostumamo-nos, desde cedo, à ausência dele. Viajava, frequentemente, de uma hora para outra. Não sabíamos para onde. E quase sempre demorava a regressar. Quando voltava, não o deixávamos em paz. Queríamos recuperar todo o tempo perdi­do.

Ao regressarmos do passeio, mamãe conversava, na sala, com Roberta Correia e Ponciano Bravo. Já conhecíamos Roberta, então frequentadora assídua de nossa casa. Deslumbrava-nos seu aspecto sempre juvenil, rindo e falando animadamente. Sua presença jamais passava despercebida. Onde quer que estivesse. Talvez porque falasse alto. Exaltava-se a todo instante. Parecia brigar. Era seu jeito natural de ser. Chamavam-na de irreverente, tagarela, bagunceira. Ao contrário de sua literatura, que não causa comoções. Pode ser definida como absurda, exótica, difícil.

Conhecemos Ponciano naquela tarde. Usava um enorme bigode e uns ócu1os horríveis. Pareceu-nos um homem sisudo. Como papai quando conversava com seus amigos.

Não nos interessamos pelo que diziam mamãe e seus dois amigos. Atraíam-nos os gestos, as feições, o exterior deles. Nos dias seguintes tornamos a vê-los reunidos. Não supomos ser Ponciano um homem dedicado à política. Papai e mamãe talvez soubessem disso. Sim ou não, dias depois ocorreria sua prisão.

Mamãe apresentou papai a Bravo. Papai não gostou de mamãe ter servido coca-cola e ofereceu uísque. Logo, falavam de uma revista dirigida pelos visitantes e na qual havia sido publicado um conto de mamãe.  Entusiasmada, ela mostrou aos dois amigos outros trabalhos seus. Alguns deles saíram na tal revista, naquele mesmo ano. Ela vivia dedicada à literatura. Escrevia muito. Até altas horas da noite. Papai reclamava, brigava.

Mamãe morreu quatro anos após a morte de papai. Parecia uma velha, apesar de ter apenas 36 anos! Como envelhecera nos últimos dez anos! Como desapareceram de repente tanta beleza e juventude!

Mamãe fumava em demasia. E escrevia a qualquer hora. E só escrevia fumando. Pegava papel, caneta, e fumava um cigarro atrás de outro. Ao longo das horas, muitas vezes, nada havia escrito. Sofríamos, embora não soubéssemos de sua doença. Por isso, sentimos muito mais sua morte do que a de papai.

Da revista passaram a livros de autores famosos, suas vidas, seus sucessos. Papai e Ponciano se calaram. Ocorreu-me a ideia de que aquilo fosse assunto exclusivo de mulheres. E eu podia ser também uma escritora, como mamãe e Roberta. Bravo e papai apenas balançavam a cabeça, riam, bebiam, fumavam.

A conversa, aos poucos, tomou outro rumo e os dois não se contiveram mais. Papai se pôs a falar e, em dado momento, se exaltou. De vez em quando, se levantava do sofá e gesticulava. Mamãe olhava para cima e pedia que se sentasse e falasse mais baixo. Ele se acalmava, tomava um gole e reacendia o cachimbo.

Papai possuía vários cachimbos. Quando um esquentava, pedia outro a mim ou a Gizé. E assim ia soltando baforadas, fechando os olhos e ficando calado. Depois retirava o cachimbo do canto da boca, derramava as cinzas e voltava a falar.

Aquela conversa me impressionou muito. Os gestos, as feições de cada um. Os olhares de pavor, admiração, espanto. So­bretudo os de Roberta. O tempo todo voltada para papai. Ponciano, no entanto, quase não olhava para papai. De vez em quando, se voltava para mamãe, a seu lado, e procurava falar de literatura. “Como está seu romance?”, disse várias vezes. “Vou publicá-lo no início do ano”, respondia ela.

O tal romance foi publicado alguns meses depois daquele dia. Antes disso, teve contos e capítulos de romances nunca concluídos publicados em revistas e jornais. Tudo escrito nessa época, pois nos últimos dez anos de vida quase nada escre­via.

Enquanto mamãe e Ponciano falavam e falavam de literatura, papai e Roberta se dedicavam à política. Trocavam informações, quando baixavam as vozes. Mamãe interferia. Contradizia papai sobre este ou aquele fato. Ele se aborrecia e mandava mamãe deixar de dar palpite sobre política. “Você entende muito de literatura, querida, mas de política nada.”

Só mais tarde, quando papai morreu, desapareceu ou viajou para não mais voltar, vim a pensar nessas suas advertências. Mesmo assim, não consigo decifrar certos enigmas daquela tarde.

A conversa se estendeu até altas horas. Estávamos com muito sono, eu e minha irmã. Nem vimos quando Ponciano Bravo e Roberta Correia foram embora.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
Livro enviado pelo autor.

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