sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Carolina Ramos (Conto Natalino)


– Papai Noel não existe!

— Existe, sim! Já disse que existe!

— Deixa disso, vô. Se Pai Noel existisse, eu "tava" assim de presentes! E o que é que eu ganho todo o ano?! — Nada de nada!

O velho engoliu em seco. Verdade! Todo final de ano, era sempre a mesma coisa. Um bruto remorso, como bola de gude das grandes, vinha rolando, rolando e embocava, certinho no seu coração. Remorso de tanta coisa... principalmente, das visitas ao bar do Maneco, à tardinha. Juntasse o que deixava por lá, e, talvez a bola cobiçada pelo neto estivesse ao alcance do seu bolso. Mas, o amor próprio logo arranjava jeito de dividir a culpa. Era isso: — Por que tinha o neto de ser complicado?! Não pedia uma bola qualquer, não! Tinha que ser uma bola fabulosamente colorida! E colorida com todas as cores do arco-íris! Sem faltar nenhuma! Que bobeira! Lá isso existia? Talvez fosse mais fácil encontrar na rua o bom velhinho de barbas brancas comandando o seu trenó de renas, do que achar aquela bola maluca! Maluco era o neto! Onde se viu?

— Queria todas as cores numa bola só, para, num chute, riscar no céu o mais lindo arco-íris e, correndo, cruzá-lo, em seguida, só para ver se do lado de lá havia, realmente, uma vida melhor!

— Tá loco, seu! — para um sonho impossível, só mesmo um possível desinteresse! E era o que acontecia todos os anos. Depois do Natal é que o desaponto do garoto lhe pesava no coração.

Neste ano, até que o vô andara alerta. Vasculhara todos os cantos e não vira bola alguma semelhante à sonhada pelo neto. Até a roubá-la se dispusera, caso a encontrasse. As sobras no bolso, não eram bem sobras e, sim, carências. Faltava tanto para isto; faltava, outro tanto para aquilo. Sobras que poderiam ser o princípio de tudo, mas, não davam para nada.

Coçou a barba encardida. Parou no barzinho do Maneco. Se as sobras não davam para nada, uma paradinha a mais ou a menos, não alteraria o orçamento familiar. Família pequena. Ele e o neto. E o garoto não passava fome nunca. A vizinhança era pobre, mas, sempre restava algo para o guri de olhos negros, brilhantes, pernas finas e ligeiras. E as sobras de um neto chegavam para fartar o fastio de um velho vô.

Na véspera do Natal, o velho, barba encardida, alargou seu giro pelas redondezas. Terra de contrastes! Suntuosos casarões esbanjando luxo pelas portas e janelas. Não longe dali, velhos cortiços e casebres empilhados nas favelas amparavam-se uns aos outros para não beijarem o chão. Chão esse, terra essa, que merecia mesmo ser beijada. Beijada com amor. Beijada como rosto de mãe que tudo dá e nada pede. Os filhos, sim, ingratos ou tolos, tendo tudo à mão, preferiam a miséria.

Parou de filosofar à sua moda, frente a um casarão ostensivo:

— Céus! Que festival de luzes! O largo portal entreaberto convidava. Descuido, talvez. O velho esgueirou-se, contornando o prédio.

A escalada não foi difícil. Não era tão velho assim. A pinga é que lhe pesava feio nas pemas! Ninguém por perto. Todos ocupados. O espírito do Natal borbulhando nas taças. Em algum lugar daquela casa, haveria um Menino entre palhas e presentes. Onde?

No terraço superior, forçou a porta. Com jeito, cedeu. Fácil!

Para vencer a penumbra, apertou os olhos ao invadir o quarto.

Um espelho refletiu-lhe a imagem. Atrás de si, um leito. A decoração não mentia. Quarto de criança. E dois olhos de criança, negros como os do neto, seguiam-lhe atentamente os movimentos.

A mão pequenina apagou a luz de cabeceira. Voz frágil quebrou o silêncio:

— Pai Noel, você enxerga mesmo no escuro?!

O velho pasmou. Pai Noel? Ele?! E por que não?! Era a saída,..

Não... não, garoto… deixa essa luzinha acesa… sempre ajuda... sabes, eu já sou muito velhinho...

— Cadê a sua roupa vermelha, Pai Noel?

— O calor… É… o calor brasileiro… quem aguenta?! Fui obrigado a trocar de roupa ou não poderia entregar os brinquedos.

— E os brinquedos? Pai Noel? Onde estão?

— Tudo entregue. Tudinho!

— Então… o que é que você veio fazer aqui?!

Pai Noel pensou rápido: — Bem, o negócio é o seguinte: Todas as crianças deste mundo já ganharam presentes. Mas, faltou unzinho só. Um guri, assim da tua idade. Obediente, bonzinho... que também merece ganhar alguma coisa. E não tenho nada... nada mesmo, para dar a ele. Como és um menino bom... com certeza já ganhaste muitos presentes, não é verdade? Vim pedir a tua ajuda. Pode ser? Eu só quero um presentinho à toa... qualquer coisinha... aquilo que menos te agrade. Tá?

O garoto ouvia iluminado: — Pai Noel, abra aquele armário. Pegue aquela bola linda que você me trouxe no ano passado. Está novinha! Sabe, eu não gosto muito dela. Ela sempre foge de mim... rolando pra longe...

Só então o velho notou as botas ortopédicas, encostadas ao leito.

Sentiu as lágrimas afogarem a imagem do menino triste. Enxugou-as com a barba encardida. Abriu o armário. Exultou! Lá estava a bola mais bonita que jamais vira! Todas as cores do arco-íris, sem faltar uma sequer e muita bem casadas! O sonho do neto! Beijou-a sonoramente. Ao ouvir passos, despediu-se apressado:

~ Tchau... menino bonzinho... Obrigado! Sara logo que, no ano que vem, Pai Noel vai te trazer a bola do mundo de presente!

Por um instante, o olhar tristonho da criança, rodeada de mimos, mas, tremendamente solitária, trouxe-lhe à memória a lembrança de um certo Menino, de quase dois mil anos, esquecido entre palhas, em plena noite de Natal!

Na rua, o velho coração batia apressado... leve... leve... nem mesmo o bar do Maneco logrou alterar-lhe o ritmo. Em casa, enfatizava:

— Eu não te disse que Pai Noel existe? Taí, garoto teimoso, olha o teu sapato... olha!

Os olhos do neto brilhavam mais do que a Estrela de Belém! A custo, conseguiu balbuciar: - A bola... a bola que eu queria!... como é que ele adivinhou?! Ah!?, vô, agora eu sei que Pai Noel existe! Existe, sim! Desta vez eu nem pedi nada, mas, ele adivinhou direitinho o que eu queria!

Triunfante, o coração do velho deu um pinote e piscou, maroto, para o próprio dono.

"Pai Noel" de barba encardida, sorria feliz... Feliz como nunca, imaginando o arco-íris, mais lindo do mundo que um garoto de olhos negros, pernas finas e ligeiras, iria riscar no céu... logo... logo...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

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