terça-feira, 15 de agosto de 2017

Carlos Leite Ribeiro (Sabendo e Recordando) Parte IV

A viagem foi curta, pois Sintra fica a cerca de trinta quilômetros de Lisboa.

Já em Sintra e na estrada que vai para o Castelo dos Mouros e Palácio da Pena, antes de chegar ao castelo cortaram à direita e no terreiro da entrada do Convento dos Capuchinhos, num lugar idílico, sentados num banco rústico, Ivone recomeçou sua narrativa sobre o que sabia de sua avô.

- Minha avó e marido, de Lisboa apanharam um navio que os levou aos Estados Unidos, por intermédio da então OSS – Agência de Serviços Estratégicos dos Aliados. Mais tarde, por conveniência de serviço, foram transferidos para Londres, para ficarem mais perto da Resistência contra o Nazismo. Ela ficou nos serviços administrativos e ele nas comunicações. Muitas mensagens via rádio para planificação e organização da Resistência, foram organizadas por ele. Foi em Londres que minha avó ficou grávida de minha mãe.

O meu avô Victor Lazlo preparou cuidadosamente, durante muitos meses a invasão dos Aliados à Europa, dando também orientações aos vários grupos da Resistência que tinha que atuar quando fosse a invasão. Antes do dia “D” de 6 de Junho de 1944, meu avô partiu clandestinamente para a Normandia (França) para superintender os trabalhos de sabotagem que deviam ser realizados para atrasar a reação alemã à Grande Invasão.

Foram combates de uma ferocidade nunca vista que custou muitos milhares de vítimas de ambas as partes. No dia seguinte, ou seja no dia 7 desse mês, uma bomba alemã matou meu avô.

- Foi um fim triste para um herói que nunca foi conhecido do grande público, mas que teve uma utilidade extrema nessa época. Mas vamos esquecer por ora de tua narrativa e convido-te para o almoço e depois fazer o check-in no hotel. De acordo?

- Já sinto fome para mais nem me convidaste para o café da manhã. Por onde vamos?

- Vamos regressar pela estrada que viemos até apanhar a principal que vamos descer até Sintra. Vamos almoçar ao restaurante do hotel Tivoli Sintra, que tem uma soberba vista desta belíssima serra.

- Olha eu hoje não me apetece comer peixe.

Depois de fazerem o check-in para um quarto de só uma cama. Aqui ela sorriu enigmaticamente… Foram conhecer o quarto com uma vista de sonho, deixar suas malas e por fim desceram até ao restaurante. Escolheram “Vitela assada no forno com batatas pequenas”, salada e vinho, este escolhido pela Ivone. Escolheu “Colares” tinto.

Depois do repasto, foram até à Pastelaria Piriquita, onde como sobremesa comeram uns deliciosos “travesseiros” especialidade de doceria daquele estabelecimento, e tomaram café.
Ficaram a conversar durante algum tempo e como ela se queixou que estava muito stressada, foram dar um passeio a pé pela pequena mas belíssima cidade, chegando até ás portas da Quinta da Regaleira.

Ela não quis entrar alegando que não estava com disposição de ver “coisas velhas”. Ele atirou uma enorme gargalhada. Voltaram para a cidade e, no largo Jogo da Pela, sentaram-se nos degraus do Palácio que para muitos ainda é o Palácio Real, onde nasceram vários reis e príncipes de Portugal.

Mas ela não estava para visitar naquele dia “coisas velhas” e ficaram sentados nos degraus do palácio. A certa altura, ela queixou-se que a pedra devia de ser mais quente, pois estava a sentir frio por estar ali sentada.

- Ivone, queres ir para o hotel descansar?

- Para o hotel descansar?!. Não. Se estás com alguma ideia “avançada” retira isso da cabeça senão nunca mais te falo.

- Não tenho nenhuma ideia pré-concebida. Podíamos ir para aquela esplanada ali em frente. Se quiseres, claro.

- Vamos. Na esplanada com certeza que não ficarei num assento tão frio como estas escadas de pedra.

Infelizmente para eles, naquela esplanada os lugares estavam todos ocupados, assim como na esplanada do Hotel Central. Tiveram que procurar outra, esta na curva do Duche. Ela teve de ir à casa de banho (banheiro) e quando regressou, disse-lhe:

- Júlio, este estabelecimento vende “Queijadas de Sintra”.

- Aqui todas as lojas vendem queijadas. Mas quando quiseres, voltamos à Piriquita que fica aqui perto e compramos queijadas.

- Se voltarmos lá, podíamos comprar também daqueles deliciosos “travesseiros”. Tive uma ideia: Podíamos comprar essas guloseimas e uns sumos de frutos e jantarmos no nosso quarto?

- Gulosa!

- Olha quem fala: tu és o maior guloso que conheço!

- Pelo caminho podemos comprar umas velas.

- Porquê? Vai haver algum apagão? Candeeiros elétricos é que não faltam no quarto!

- Seja feita a sua vontade, grande gulosa. Hoje não estou para discussões por ninharia nenhuma. Para mais, tudo o que te acontece fora dos teus planos, é cá o Júlio que tem a culpa.

- Com esta conversa toda, está a começar a escurecer. Sintra é perigosa à noite?

- Muito perigosa, cheia de fantasmas!

- Tu é que me pareces um bom fantasma! Então com esse cabelo tão comprido. Porque não cortaste o cabelo?

- Não a estou a convidar nem pressionar-te, mas quando a “madame” entender, vamos comprar as guloseimas e vamos para o nosso quarto no hotel.

- Já reparei que és muito sensível a brincadeiras de palavras. Quando o “gentil cavalheiro quiser, podemos ir. Esta despesa pago eu. Na Piriquita pagas tu.

Fizeram as compras e depois foram para o hotel. Quando chegaram ao quarto, não tinham luz. Reclamaram na recepção e como aquela hora não havia nenhum eletricista disponível, tiveram que mudar de quarto. Estavam no 2º andar e passaram para outro no 3º, que ainda tinha uma vista mais ampla sobre Sintra.

- Bem te disse que devíamos de ter comprado velas. Mas tu não fazes nada que te peça.

- Ho, Menino! Eu não nasci ontem, tenho cabeça e segundo dizem, tem alguma inteligência. Tu querias era uma ceia à luz das velas!

- Não discuto, pois és tu que tens sempre razão.

A ceia à “luz elétrica” correu bem e ambos evitaram picardias. Viram a televisão, nomeadamente o noticiário e depois um filme que ela classificou “do tempo do rouca”. Quando ela já estava preparada para ir para a cama, mostrou-lhe os tampões nos ouvidos para não ouvir o ressonar dele. Ele, quando já estava preparado, mostrou-lhe os pedaços de algodão que tinha colocado nos ouvidos-

- Com o teu cabelo branco e comprido e com esses algodões, pareces mesmo “uma alma do outro mundo”! rsssss

Estavam deitados ainda há pouco tempo, quando ela se virou para ele e arrancou-lhe um algodão que ele tinha nos ouvidos, gritando-lhe:

- Menino, não te encostes a mim. A cama é bastante grande, chega-te para o teu lugar.

- Estou aqui a “morrer” de frio!

- Levanta-te e vai ao armário buscar um cobertor para te enrolares nele.

- Com este frio não posso! Tenta compreender!

- Já compreendi tudo e muito bem! Vou eu ao armário buscar um cobertor para tu te enrolares nele.

- Não faças isso!

- Bico calado e enrola-te neste cobertor para não teres frio e não te aproveitares para te encostares a mim.

- Nem quero acreditar!

- Mas acredita e deixa-me dormir muito descansadinha. Até amanhã…

Na manhã seguinte levantaram-se cedo, mas mal falaram um com o outro, não ser um seco “bom dia” e quando já estavam arranjados “vamos descer para tomar o pequeno almoço?

Já na estrada, Júlio explicou a Ivone que iam subir pela estrada que ontem foram para o Convento dos Capuchinhos.

- Queres dizer que vamos passar à cortada para o convento e subimos ainda mais?

- Certo. Vamos subir até ao Palácio Nacional da Pena, mandado construir por D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gota-Koháry, marido da rainha D. Maria Iº. Como ontem disseste, não gostas de ver “velharias”…

- Isso foi ontem. Hoje já estou mais bem disposta!

Antes passaram pela porta rotativa do Castelo dos Mouros, e subindo mais um pouco chegaram ao fim da estrada Sintra/Palácio da Pena. Passaram o portão e percorreram umas lindas alamedas antes de estacionar o carro no parque respectivo. Daí, subiram uns degraus e uma pequena rampa e entrara na varanda que dá para a verdadeira entrada do palácio. Quando Júlio se dirigiu à bilheteira, soube que naquele dia não havia visitas pois o palácio estava em manutenção e limpezas. Ela, quando soube, atirou uma sonora gargalhada. Ele, olhou-a de lado e também se riu.

- Júlio, tu já visitaste este Palácio muitas vezes e eu algumas. Vamos para outro lado.

- Tens razão, vamos até à Cruz Alta. Se eu ainda me lembrar onde se entra na estrada.

Foi fácil encontrar a estrada a partir do parque de estacionamento a Cruz Alta fica a cerca de 3 Km do palácio, num alto morro, e tem uma belíssima panorâmica, das mais belas de Portugal. Quando chegaram lá, viram com tristeza que a grande cruz de ferro tinha sido vandalizada. Encostaram-se ao varandim em frente aos degraus da cruz, donde se avista, num outro morro o majestoso Palácio da Pena. Voltaram-se para o outro lado.

- Júlio, parece que temos a nossos pés, Oeiras, Estoril, Cascais e ali mais adiante, o areal da praia do Guincho. E repara que se vê a ponte 25 de Abril e mais além a belíssima ponte Vasco da Gama!

- Ivone, é na margem esquerda do rio Tejo, vê-se da esquerda para a direita, o Montijo, Seixal, Almada (com o seu Cristo Rei), a Trafaria e Cova do Vapor, etc., e muito mais afastado o Castelo de Palmela (que só se vê em dias muito claros como está hoje); além do estuário do Tejo, que é em delta e também muito belo.

- Até parece que avisto uns golfinhos a saltar…

Ficaram alguns minutos extasiados com tanta beleza que avistavam. Até que ele a lembrou:

- Então, com a morte de teu avô, tua avó ficou sozinha em Londres?

- Sim, ficou por lá mais cinco anos até se reformar. Depois, foi para a que chamava “sua Paris”, onde teve o amor de sua vida, e onde se empregou como secretária de uma empresa têxtil, onde o administrador era amigo da família. Ela nunca se esqueceu de teu avô Rick Blaine e até escreveu no seu diário a seguinte passagem: “A união de duas pessoas é uma sintonia de esforços e sentimentos que muitas vezes é cortada pelo destino”.

- E nunca mais o procurou?

- Procurou sim. Pelos serviços secretos, soube que ele esteve em Moçambique e que tinha tido problemas com as autoridades. Antes de saber este pormenor, esteve quase resolvida a ir ter com ele. Não foi com receio de ser rejeitada, pois teu avô, como até´ tu compreendes, era um aventureiro. Soube da sua fuga para a Argentina e daí perdeu-lhe o rastro durante anos.

- E soube que ele esteve no Brasil?

- Também soube assim como as atividades marginais dele. Tinha muita pena do Rick e chegou a admitir que talvez fosse por ela os desvarios dele. Esse pensamento (ou remorso) acompanhou-a até à morte. Talvez pensasse que com ela, ele teria sido uma pessoa boa. Pelo menos é o que dá a entender no seu diário.

Na última nota que escreveu no diário, poucos dias antes de falecer, nunca a consegui decifrar: “Trazendo grinaldas e roupagens divinas, ungindo de perfumes celestes. O Deus dos milagres, o Deus infinito, manifestou-se, a face voltada para todos os lados. Se o esplendor de mil sóis brilhasse ao mesmo tempo nos céus, seria talvez comparável ao irradiar do grande Ser”. Foi esta sua última mensagem.

continua...

Fonte : O Autor. Disponível em http://cencaestamosnos.blogspot.pt/search/label/CONTOS

Nenhum comentário: