domingo, 13 de agosto de 2017

Carlos Leite Ribeiro (Sabendo e Recordando) Parte II

- Mas estamos aqui para falar de meu avô Rick, não é assim “bela dama”?

- Foi o combinado, embora possamos falar e admirar esta paradisíaca paisagem.

- Tínhamos ficado com meu avô em Moçambique, onde trabalhou desde a hotelaria, construção civil, e até de ladrão e assaltante de bancos, pessoas singulares, casas – tudo que lhe viesse à mão. Teve vários filhos de várias mulheres, moçambicanas, que os abandonou à sua sorte. Nessa altura, Moçambique como quase toda a África, exumava de nazistas (identificados mas nunca punidos). Viu-se perseguido pelas autoridades e pelos nazistas que nunca lhe perdoaram o fato de ele ter morto um seu general em Casablanca.

Por sorte, conseguiu arranjar emprego, como ajudante de cozinheiro, num barco argentino, que estava quase a zarpar para Montevidéu.

- Então seu avô viveu na Argentina?

- Não por muito tempo. Mudou-se para o Paraguai e com a dificuldade de arranjar emprego, tornou-se contrabandista entre este país e o Brasil. A propósito, para não ficarmos aqui só a olhar para o estuário do Sado, podíamos ir até à praia do Portinho da Arrábida, andar um pouco na areia e depois sentarmos numa esplanada para lhe contar mais sobre a vida que meu avô teve.

- Vamos então até à praia.

O caminho para esta praia é deslumbrante, e a praia linda. Descalços, andaram pela areia dourada e depois de distenderem os músculos das pernas, sentaram-se numa esplanada junto ao mar, onde ele continuou a narração.

- Ainda no Paraguai, meu avô teve uma enorme rija com seus “sócios” do contrabando, onde matou dois companheiros. Perseguido pelas autoridades desse país, andou fugido de terra em terra, vivendo de roubos e de assaltos, em companhia de uma mulher com quem viveu algum tempo.

Cada vez mais perseguido pela polícia, teve de fugir e atravessar o rio Paraná, numa noite escura, para se refugiar em território brasileiro.

Durante algum tempo, refugiou-se na cidade de Bagé, onde reencontrou um antigo companheiro do “contrabando” e outras coisas mais em território paraguaio, que lhe indicou um amigo dele que vivia numa favela do Rio de Janeiro.

Como estava também referenciado no sul de Brasil, urgia fugir daquelas paragens. Como não tinha dinheiro, teve de voltar aos roubos e assaltos a pessoas para poder sair do sul o mais rápido possível.

Num desses assaltos, feriu-se num pé e teve que ficar escondido em casa de esse amigo, conhecido por “Speed”. Foi esse amigo que pediu a um amigo caminhoneiro que lhe desse uma boleia até Curitiba, dando-lhe também algum dinheiro para que ele pudesse chegar ao Rio de Janeiro.          

De Curitiba, conseguiu uma boleia também em caminhão até Ribeirão Preto, já em pleno Estado de São Paulo. Daí como não conseguiu arranjar boleia até ao Rio de Janeiro, roubou um carro até gastar o combustível; depois outro e ainda mais outro até chegar à favela para procurar o tal amigo que o “Speed” lhe tinha indicado.

Esse amigo, o “Amadeu” só dois dias regressou à favela com “as suas meninas”, pois, além de traficante também era proxeneta. Desconfiado a princípio, foi ganhando confiança no meu avô e até começou a dar-lhe “trabalho” fazendo este entregas de produtos proibidos.

As coisas trabalho/dinheiro iam correndo bem até que a polícia militar fez uma rigorosa rusga à favela procurando marginais. Meu avô, o tal “Amadeu” e suas meninas conseguiram fugir indo viver para outra favela distante daquela.

- Júlio, não vem a propósito, mas já estamos na hora do almoço. Que tal?...

- Tem razão, Ivone. Vamos até Sesimbra e passar por belos sítios com belos panoramas.

Já perto de Sesimbra, ela perguntou-lhe a sorrir:

- O meu “nobre” companheiro de passeio, o que me vais sugerir para o almoço?

Ele deu uma gargalhada antes de replicar-lhe:

- “Minha nobre e linda companheira”, quando chegarmos ao restaurante e consultar o cardápio, é que lhe poderei sugerir um almoço digno de sua nobreza! Kkkkkkk

- Kkkkk, confio plenamente no seu gosto culinário, kkkkk, meu nobre amigo!

Já no restaurante bem perto do mar, depois de consultar o cardápio, Júlio sugeriu a sua amiga “Robalo no Sal”.

- É Júlio, é um manjar dos deuses, já há muito tempo que não como essa especialidade. Será preciso dizer que estou completamente de acordo?

- Só um pormenor: é um manjar digno de uma deusa e de um deus. Também já há tempo que não saboreio tal delícia! E preferência para o vinho?

- Se estiver de acordo, talvez um verde Aveleda?
 
- Muito bem!

O robalo no sal é uma delícia. O peixe é colocado num tabuleiro, no meio de sal grosso, vai ao forno durante cerca de meia hora. Depois, o sal é retirado juntamente com a pele e é servido com batatas cozidas pequenas, verduras ou salada de alface. Depois do almoço, resolveram ir até à também linda praia de Figueirinha, onde ele continuou a sua narrativa sobre o que sabia de seu avô paterno.

Descalços pisando a areia, desta vez de mãos dadas, andaram um pouco até se sentarem numa esplanada.
 
- Como já lhe disse, meu avô teve de mudar de favela com seu amigo. Tudo corria, digamos bem, até meu avô Rick se apaixonar por uma prostituta, uma das “meninas” do tal “Amadeu”, por acaso a mais bonita e mais novinha.

Quando “Amadeu” descobriu o “tal amor”, jurou matar meu avô e a moça. Tiveram que se esconder para outra parte do Rio de Janeiro, onde ela “trabalhava” e ele era o proxeneta. Foram descobertos por capangas do “Amadeu” e tiveram mais uma vez de fugir.

Como a Juciley tinha família no Nordeste, em Fortaleza, resolveram ir para lá. Apanharam um “pau de arara” (camioneta de caixa aberta, que transportava pessoas do nordeste que iam procurar trabalho no Rio ou em São Paulo). Como o dinheiro era pouco, só foram transportados até ao Recife, onde Juciley começou a “trabalhar” até arranjarem dinheiro para chegar a Fortaleza. Ela trabalhou vários meses até conseguir dinheiro para a viagem, também de “pau de arara”.

O dia chegou e após vários dias de sol intenso e chuva intensa, conseguiram chegar exaustos até à bela cidade de Fortaleza. Na primeira noite, ficaram os dois na areia da praia de Iracema, sem comerem nada.

No dia seguinte, foram a um bairro desta cidade, a casa de uma prima de Juciley que era dona de uma casa de “passagem” ou espécie de bordel. Recebeu-a com simpatia, ela contou sua vida e apresentou-lhe o meu avô.

A moça, que na altura tinha 16 anos, pediu à prima que a ajudasse, mas esta fez certas reticências pela pouca idade dela. No centro da cidade, não era conveniente, só se ela quisesse “trabalhar” em Vicente Pinzon, o que a moça, devido à situação financeira aceitou.
Combinaram então as condições (quase um contrato de trabalho: 45% para a prima, outro tanto para a Juciley e 10% para meu avô, como segurança (capanga) dela.

- Se houver “trabalho” deve dar para viver, ou seja, alugar uma casa e comer todos os dias.

- Para você, que é muito jovem, “trabalho” não vai faltar, para mais tenho lá uma “menina” que se vai reformar – disse-lhe a tal prima.

Tudo corria normalmente, quando uma noite, ao sair de um boteco, viu que um cliente estava a agredir Juciley, Puxou por uma faca e dirigiu-se para defender a mulher. O outro homem, pegou numa pistola e deu-lhe dois tiros fugindo em seguida. Ainda levaram meu avô ao hospital, mas quando lá chegou, já ia morto.

Como não tinha documentos nem ninguém reclamou o corpo, meu avô foi enterrado numa vala comum do cemitério São João Batista, como “desconhecido”, em Fortaleza. Foi assim, parte da vida e morte de meu avô Rick Blaine.

- Júlio, e conseguiram apanhar o agressor que causou a morte a seu avô?

- Não, pois não era conhecido por aquelas bandas e a Juciley não conseguiu dar os dados precisos do indivíduo.

- E como conseguiu esses dados (ou pormenores)  todos?

- Fui militar em Moçambique e tive curiosidade em saber algo dele. Procurei em vários lados, até na polícia e cheguei a um português que o tinha conhecido e sabia que ele tinha arranjado trabalho nunca barco que ia para a Argentina.

Mas deste país, não consegui saber nada. Só mais tarde, um amigo que morava no sul do Brasil começou a apanhar o fio da meada, em Bagé. Numa das minhas visitas ao Brasil, contatei com um indivíduo que na altura dos acontecimentos, trabalhava para o “Speed”, que em troco de algum dinheiro, me contou parte da história e me deu contato para eu procurar no Rio de Janeiro o tal “Amadeu”. Também já não era vivo, mas um sobrinho dele, que também sabia da história, me contou algumas coisas, entre as quais, ele e a Juciley tinha fugido para Fortaleza. Fui até à linda Fortaleza e por informação de um antigo agente da polícia, consegui saber que a antiga moça de meu avô ainda era viva e deu-me o endereço.

- Quer então dizer que conseguiu falar pessoalmente com a última mulher de seu avô?

- Tomou o negócio da prima quando esta morreu e continuou-o com responsável. Quando me apresentei, notei que ela ficou muito comovida, começando por me dizer:

- Você é tão bonito como era seu avô! Quase “cai das nuvens”!

- Ainda hoje não é “coisa” para se deitar fora! kkkkkkkk

- Ivone, por favor, não me goze. Devia ter-me conhecido a alguns anos atrás – digo sem vaidade.

- Acredito. Mas voltado a seu avô, foi a Juciley que lhe contou o resto da história, não foi?

- Sim e com todos os detalhes como contei a você.

- Está na hora de regressarmos a nossas casas. E já vamos chegar de noite.

- Podíamos jantar pelo caminho?

- Não posso. Tenho que jantar em casa pois é dia de meu filho que está nos Estados Unidos me telefonar.

- Mas ainda não me contou a história de sua avó Isa Lund.

- Que é longa, mas fica para outro dia. Vai ver que em determinada época, seu avô não foi tão mau como você no relato que me fez, o julga. Fica para outro dia.

Já em Lisboa, ao despedir-se dela ainda dentro do carro, beijaram-se nas faces, mas sem querer (?) seus os lábios roçaram um pelo outro. Enquanto se afastava, Júlio pensou:

- “Que lábios macios a Ivone tem. E doces...”

- “Será que o Júlio tivesse feito de propósito? Mas tem uns lábios maravilhosos…”.

Na noite do dia seguinte, ela ligou-lhe:

- Júlio, você morreu?

- Não Ivone, apanhei ontem um resfriado e estou de cama com gripe. Talvez fosse por ter pisado areia junto ao mar.

- Coitadinho! Até estou com pena de você kkkk. Também pisei areia junto ao mar e estou aqui bem, sem achaque nenhum!

- Pois, nem sei que lhe diga.

- Digo-lhe eu: se os homens pudessem ter filhos, morriam antes de dar à luz! Não seja piegas e arrebite, tome chá de limão com mel e um comprimido para a gripe e amanhã já nem se lembra que esteve hoje doente. Esta semana vamos continuar a nossa história, desta vez falando de minha avó Ilza Lund?

- Vamos sim! Até podemos ir na quinta-feira e passar a noite em qualquer hotel.

- Como disse?

- Passar a noite de quinta para sexta num hotel, mas em quartos separados.

- O Júlio fez bem repetir pois eu tive receio de ter ouvido mal. Mas pensando melhor, talvez não seja conveniente encontramo-nos esta semana, pois está doentinho e pode contagiar-me!

- Nada disso, na quinta-feira já estou curado.

- Não me diga que meu telefonema teve mais efeito que o chá de limão! Não seja piegas, que fica mal a um homem.

Na quinta-feira à hora que tinham combinado, quando ela entrou no carro, logo lhe perguntou:

- Júlio, você já está completamente curado? Não quero ser contaminada por essa doença de pisar areia molhada!

- Já estou completamente curado. O melhor remédio ainda foi os seus telefonemas! Mas parece-me que a Ivone hoje não está bem disposta?

- É a disposição habitual quando me levanto mais cedo

- Piegas! Então onde a dama quer ir hoje?

- Não quero atravessar o Tejo. Escolha você o destino do passeio.

- Vamos a Coimbra?

- É muito longe. Uma localidade mais perto.

- Então, Peniche, São Martinho do Porto, Foz do Arelho, Nazaré, São Pedro de Moel? Escolha.

- Escolho Peniche, mas que fique bem claro que você não vai pisar areia molhada! Para mais, nesta noite vamos ficar no mesmo hotel.

- Mas separados!

continua...
 
Fonte: O Autor. Disponível em http://cencaestamosnos.blogspot.pt/search/label/CONTOS

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