segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Carlos Leite Ribeiro (Sabendo e Recordando) Parte III

No outro dia, escolheram a estrada antiga que é mais bonita do que a autoestrada, a caminho de Peniche. Passaram por várias e lindas localidades e admiraram belas panorâmicas. Fui uma viagem agradável, com conversas banais mas sempre em tom alegre. Quando chegaram à bela Peniche, dirigiram-se a uma esplanada na também bela praia do Baleal.

- Ivone, vais começar a contar a história que sabes de tua avó?

- Sim Júlio! Minha avó materna era de origem israelita, nascida em Oslo, capital da Noruega, onde fez seus estudos.

Estávamos em plena 2ª Grande Guerra, com o domínio quase total do regime nazista. Minha avó era contra este sanguinário regime e contra a perseguição cada vez mais intensa da perseguição que faziam aos judeus. Na altura, o mais conhecido antinazismo e organizador de resistência a estes, era o checo, Victor Lazlo. Um dia, minha avó conheceu o Victor que a nomeou como representante da resistência ao nazismo, em Oslo. Com a convivência que passou a haver entre ambos, e embora ele fosse mais velho do que ela, apaixonaram-se.

No seu diário, minha avó descreve a seguinte passagem: “ A paixão é o mais intenso dos sentimentos que se pode ter por alguém. Significa a entrega total e sem reservas, tendo a capacidade de remover montanhas (…). Entretanto, foram descobertos pelas SS (polícia política nazista) e tiveram que fugir para Praga, capital checa, onde secretamente casaram.

- Ivone, desculpa e não a propósito, mas está na hora de irmos almoçar. Tens algum restaurante de preferência?

- Nunca almocei aqui em Peniche. Escolhe tu o restaurante – de acordo?

- Se me dás licença, vamos almoçar no restaurante “Nau dos Corvos” que fazem lá uma caldeirada de peixe fresco, sensacional. Mas a bebida escolhes tu.

- Pode ser um “Bucelas branco” (vinho) que há muito que não provo, melhor, bebo.

O restaurante é à beira-mar onde se avista o Atlântico que parece não ter fim. Júlio estava pensativo a admirar o mar.

- Em que pensas Menino? Estás tão calado que nem parece o Júlio que eu conheço?

- Estou a pensar que para além deste oceano está o Brasil…

- E também as brasileiras? rssss

- E também ainda não escolhemos o hotel nem fizemos o check.in…

- Não acredito que já tenhas sono. Hotel com toda a certeza que vamos arranjar. Deves estar a pensar em outra coisa.

Depois do almoço, foram procurar um hotel para passarem a noite. Depois de procurarem em vários hotéis que estavam lotados, conseguiram um quarto no hotel Soleil, com maravilhosa vista não só para o mar como também para praias em redor. Depois de fazerem o check-in (para quarto com duas camas), sentaram-se na esplanada desse hotel onde a Ivone recomeçou sua narrativa.

- Três dias depois do casamento, Victor Lazlo foi detido numa das ruas de Praga e preso num campo de concentração, onde foi várias vezes torturado. Minha avó teve sorte de uns amigos terem visto Victor ser preso e ajudaram-na a fugir para Paris, que ainda não tinha sido ocupada. Seu marido conseguiu fugir com a ajuda das Resistências de quatro campos de concentração.

- Ivone, e a tua avó em Paris?

- Ainda jovem e bonita, sentiu-se muito só numa grande cidade, onde não conhecia ninguém. A nostalgia levou-a um dia a um bar, onde conheceu um aventureiro americano, de nome Rick Blaine…

- É onde entra meu avô…

- Sim, e também um pianista de nome Sam Wilson, que tocava maravilhosamente “As Time Goes By”. Conheces esta bela canção de amor?

- O nome não me é estranho, mas não me lembro da canção e muito menos da letra.

- Vou tentar cantar, só para ti. Se prometeres não te rires da minha voz.

- Prometo. Canta só ao meu ouvido.

- No ouvido, não, só em voz baixa:

Com o passar do tempo
Você deve lembrar-se disso
Um beijo é sempre um beijo
Um suspiro é exatamente um suspiro
As coisas fundamentais se aplicam
Com o passar do tempo
E quando dois amantes namoram
Eles ainda dizem "eu te amo"
Nisso pode confiar
Não importa o que o futuro traga
Com o passar do tempo
Luar e canções de amor
Nunca caem de moda
corações cheios de paixão
ciúme e ódio
Mulher precisa de homem
E homem deve ter sua companheira
Ninguém pode negar
É a mesma velha história
A luta por amor e glória
Um caso de fazer ou morrer
O mundo sempre acolherá os amantes
Com o passar do tempo.

- Ivone, que maravilhosa voz tens. Até podias ter sido cantora profissional!

- Se o elogio é verdadeiro, os meus agradecimentos a tão gentil cavalheiro! Rss

- Como ia a contar, depois de ter encontrado teu avô num bar parisiense, ambos se apaixonaram e começaram um romance que podia ter terminado maravilhosamente. Paris ainda não tinha sido ocupada pelos exércitos nazistas, e ambos passaram momentos maravilhosos e inesquecíveis, muitas vezes em companhia do pianista Sam. Mas um dia, a cidade a quem chamam “de Luz” foi ocupada. Os três amigos pensaram logo em fugirem de lá, pois todos estavam na lista negra das “SS” e se fossem apanhados seriam internados em campos de concentração. Teu avô por ser contrabandista principalmente de armas para a Resistência; minha avó por ter sido casada com Victor Lazlo; o Sam por ter sido o ajudante de teu avô. E todos conspiravam contra o nazismo.

Combinaram apanhar um comboio para Marselha e daí apanhar outro meio transporte para um país ainda livre. Já na estação ferroviária, como a Ilsa demorava, teu avô mandou o Sam a ir buscar ao hotel onde estava alojada, mas já não a encontrou.

Tinha escrito uma mensagem para ser entre a Rick Blaine “: Amor da minha vida, a ternura é um gesto genuíno de carinho. É um sentimento pleno que dá vida, tornando-a mais repleta de sentido. Desejo-te as maiores felicidades do mundo. Sempre serás o amor de minha vida. Adeus. Ilsa”.  E assim, os dois amigos tiveram de partir sem sua companhia.

- Amiga, vamos interromper e vamos aproveitar para jantar?

- Não tenho grande fome, depois daquela saborosa caldeirada de peixe que comemos ao almoço. Mas sempre comerei alguma coisa. Uma sugestão: podíamos comer no restaurante deste hotel?

- De acordo!

Não foi um jantar à luz de velas, mas foi um jantar agradável assim como a conversa. Ele, avô de cinco netos; ela avó de uma neta. Contaram episódios de suas vidas. Uns bons outros menos bons ou mesmo maus. Depois da sobremesa, foram para o hall do hotel para tomar o café e a Ivone continuar sua narração.

- Minha avó nunca disse a Rick que era casada. Ambos em Paris tinham combinado não falarem de suas vidas passadas. Só mais tarde é que teu avô soube e com quem. Os anos passaram e o grande amor deles em Paris, estava esquecido, mas o destino não quis…

Na sua fuga de Paris, teu avô e o Sam assentaram raízes em Casablanca. O “Bar Rick” era o melhor e mais bem frequentado dessa cidade marroquina e ainda não estava (pelo menos oficialmente) sobre o domínio de 3ª Reich.

Nesse bar, além do jogo de casino, com a conivência do chefe da polícia local, o oportunista capitão Louis Renault. E foi nesse local que, inesperadamente, os amantes de Paris se reencontraram.

Certo dia, o casal Victor Lazlo / Ilsa Lund, entrou no bar do Rick, para procurar um contrabandista que diziam ter dois salvo-condutos com os quais podiam apanhar o avião para Lisboa e daí seguiriam para os Estados Unidos. Logo de entrada, a minha avó reconheceu o pianista Sam Wilson. Abeirou-se dele enquanto seu marido procurava o tal contrabandista e pediu-lhe para que ele tocasse “As Time Goes By”. Em princípio, o pianista recusou tocar, alegando não se lembrar mais, mas por fim acedeu ao seu pedido.

Quando Rick entrou no bar ao ouvir a tal canção, dirigiu-se logo ao pianista para o repreender. Com os olhos, Sam indicou-lhe quem estava sentado na mesa a seu lado. Atônito, teu avô dirigiu-se para a mesa na altura em que o marido dela regressava com a notícia que o contrabandista tinha sido morto e ninguém sabia quem tinha os tais salvo-condutos. Depois de vários episódios que não merece a pena aqui contar, minha avó desconfiou que os tais salvo-condutos estariam na mão de Rick.

Uma noite, em que seu marido saiu do hotel onde estavam alojados para ir a uma reunião clandestina, minha avó sorrateiramente entrou no escritório de teu avô que estava a beber uma garrafa de Whisky, tentando esquecer que tinha reencontrado a sua amada. Ela suplicou-lhe que lhe vendesse os dois salvo-condutos, pois seu marido era elemento imprescindível para a Resistência antinazista. Rick recusou e ela apontou-lhe uma pistola ao peito. Sem se desconcentrar, ele disse-lhe que tinha os salvo-condutos no bolso de seu casaco e seria um atos de misericórdia ela matá-lo naquele momento. Ela deixou cair a pistola e ambos se abraçaram com amor e recordaram seus bons momentos de Paris. Ficou combinado que ambos iriam fugir para Lisboa. E ela acreditou.

No outro dia, já no aeroporto, Rick teve de matar um general alemão que estava a tentar evitar que Victor Lazlo fugisse mais uma vez e novamente se juntasse aos Aliados. Minha avó estava convencida que ia partir com o amor de sua vida, mas num golpe teatral, teu avô entregou os salvo-condutos ao casal, alegando que o marido era muito importante para acabar com o nazismo na Europa.

- Ivone, essa parte não sabia eu. Como o pessoal deste do bar quer fechar, podíamos continuar a narrativa no “nosso” quarto?

- Nosso quarto, mas em camas diferentes!

Já no quarto, deitaram-se atravessados na mesma cama, mas com as cabeças em sentido contrário. Ligaram a TV e assim assistiram à telenovela que ambos estavam a seguir. Até antes da telenovela terminar, ambos adormeceram. Na manhã seguinte, quando acordaram, ambos protestaram que o parceiro ressonava alto.

- Tu a ressonar pareces uma antiga máquina de comboio a vapor – disse-lhe ela, o que ele logo lhe respondeu:

- Olha que tu também ressonas alto, que parece que tens grilos dentro da garganta!

- Nem te respondo. Vou tomar um duche e depois arranjar-me para irmos embora para Lisboa.

- E eu quando tomo banho?

- Só depois. Para mais, os homens despacham-se mais rápido do que as mulheres.

No regresso para Lisboa, combinaram encontrarem-se para continuar a narração, na seguinte sexta-feira.

- Ivone, escolhe a localidade. Entretanto, vamos nos encontrar durante a semana na hora do café, como habitualmente?

- Na próxima semana tenho que tratar de uns assuntos particulares e urgentes.

Os dias foram passando e, na quarta-feira, como a Ivone já tinha resolvido seus assunto, ele alvitrou que em vez de saírem na sexta-feira, podiam antecipar um dia a sua saída. Ela em princípio recusou, depois hesitou e por fim aceitou.

- E qual a cidade que a Menina escolhe?

- A escolher? Escolho Sintra. Se o Júlio assim entender.

- Adoro Sintra, cidade que conheço muito bem. Vou fazer a reserva do hotel. É um quarto de duas camas, não é?

- Sei lá. Desta vez pode ser com uma cama só, para não passar a noite a tapar-te. E desta vez, levo uns tampões para os ouvidos, para não te ouvir ressonar!

Na quinta/feira seguinte, Júlio estacionou o carro há hora marcada à porta da casa da Ivone.
Esperou meia hora e como ela não aparecia, resolveu ligar-lhe pelo celular:

- Morreste? – Perguntou-lhe ele. A resposta não tardou:

- Estou bem vivinha só que acordei há 5 minutos, algo rabugenta…

- O que é normal!

- Nada de piadinhas. Vou tomar banho e arranjar-me. Espera um pouco.

- Um pouco, quer dizer 15 minutos?

- Não, uma hora!

Não teve de esperar uma hora – mas quase. Ela apareceu muito bem vestida e ainda mais linda do que nos outros dias.

- Ena! A Miúda vem toda linda, melhor, mais linda do que nunca. Vais para alguma festa?

- Vou para uma festa com o “meu mais querido amigo”, o Júlio!

continua...

Fonte: O Autor. Disponível em http://cencaestamosnos.blogspot.pt/search/label/CONTOS

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