quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Sílvio Romero (O homem pequeno)


(Folclore do Sergipe)

UMA VEZ UM PRÍNCIPE saiu a caçar com outros companheiros, e enterraram-se numa mata. O príncipe, que se chamava D. João, adiantou-se muito dos companheiros e se perdeu. Depois de muito andar, avistou um muro muito alto, que parecia uma montanha, e para lá se dirigiu. Quando lá chegou percebeu que estava numa terra estranha, pertencente a uma família de gigantes. O dono da casa era um gigante enorme, que quase dava com a cabeça nas nuvens; tinha mulher também gigante, e uma filha gigante de nome Guimara.

Quando o dono da casa viu D. João, gritou logo: “Oh, homem pequeno, o que anda fazendo?” 

O príncipe contou-lhe a sua história, e então o gigante disse: “Pois bem; fique aqui como um criado.” 

O príncipe lá ficou, e, passados uns tempos, Guimara se apaixonou por ele. 

O gigante, que desconfiou da coisa, chamou um dia o príncipe, e lhe disse: “Oh, homem pequeno! Tu disseste que te atrevias a derrubar numa só noite o muro das minhas terras e a levantar um palácio?” 

“Não, senhor meu amo; mas, como vossemecê manda, eu obedeço.” 

O moço saiu por ali vexado de sua vida, e foi ter ocultamente com Guimara, que lhe disse: “Não é nada; eu vou e faço tudo.” 

Assim foi: Guimara, que era encantada, deitou abaixo o muro, e levantou um palácio que dar-se podia. 

No outro dia o gigante foi ver bem cedo a obra e ficou admirado. “Oh, homem pequeno?” 

— “Inhô!” 

— “Foste tu que fizeste esta obra ou foi Guimara?” 

— “Senhor, fui eu, não foi Guimara; se meus olhos viram Guimara, e Guimara viu a mim, mau fim tenha eu a Guimara, e Guimara mau fim tenha a mim.” 

Passou-se. Depois de alguns dias, o gigante, que andava com vontade de matar o homem pequeno, lhe levantou outro aleive: “Oh, homem pequeno! Tu disseste que te atrevias a fazer da ilha dos bichos bravos um jardim cheio de flores de todas as qualidades, e com um cano a deitar, a despejar água, tudo numa noite?” 

— “Senhor, eu não disse isto, mas como vossemecê ordena eu irei fazer.” 

Saiu dali mais morto do que vivo, e foi ter com Guimara, que lhe disse: “Não tem nada; eu hoje hei de fazer tudo de noite.” 

Assim foi. De noite ela fugiu de seu quarto, e, com o homem pequeno, trabalhou toda a noite, de maneira que no outro dia lá estava o jardim cheio de flores, e com um cano a jorrar água; era uma obra que dar-se podia. 

O gigante, dono da casa, foi ver a obra e ficou muito espantado, e então, formou o plano de ir à noite ao quarto de Guimara e ao do homem pequeno para os matar. 

A moça, que era adivinha, comunicou isto a D. João, e convidou-o para fugir, deixando nas camas em seu lugar duas bananeiras cobertas com os lençóis para enganar ao pai.

Alta noite fugiram montados no melhor cavalo da estrebaria, o qual caminhava cem léguas de cada passada. 

O pai quando os foi matar os não encontrou, e disse o caso à mulher, que lhe aconselhou que partisse atrás montado no outro cavalo que caminhava cem léguas de cada passada, e seguisse a toda a brida. 

O gigante partiu, e, quando ia chegando perto dos fugitivos, Guimara virou um riacho e D. João um negro velho, o cavalo num pé de árvore, a sela numa leira de cebolas, e a espingarda, que levavam, num beija-flor. 

O gigante, quando chegou ao riacho, se dirigiu ao negro velho, que estava tomando banho: “Oh, meu negro velho! Você viu passar aqui um moço com uma moça?” 

O negro não prestava atenção, mergulhava n’água, e quando levantava a cabeça, dizia: “Plantei estas cebolas, não sei se me darão boas!. . . ” 

Assim muitas vezes, até que o gigante se maçou e se dirigiu ao beija-flor, que voou-lhe em cima, querendo furar-lhe os olhos. 

O gigante desesperou e voltou para casa. Chegando lá contou a história à velha sua mulher, que lhe disse: “Como você é tolo, marido! O riacho é Guimara, o negro velho o homem pequeno, a leira de cebola a sela, o pé de árvore o cavalo, e o beija-flor a espingarda. Corra para trás e vá pegá-los.”

O gigante tornou a partir como um danado até chegar perto deles, que se haviam desencantado e seguido a toda a pressa. 

Quando eles avistaram o gigante, a moça se transformou numa igreja, D. João num padre, a sela num altar, a espingarda no missal, e o cavalo num sino. 

O gigante entrou pela igreja adentro, dizendo: “Oh seu padre, o senhor viu passar por aqui um moço com uma moça?” 

O padre, que fingia estar dizendo missa, respondeu:

“Sou um padre ermitão, Devoto da Conceição, Não ouço o que me diz, não. Dominus vobiscum.”

Assim muitas vezes, até que o gigante se aborrece e volta para trás desesperado. Chegando em casa contou a história à mulher, que lhe disse: “Oh, marido! Você é muito tolo! Corra já, volte, que a igreja é Guimara, o padre é o homem pequeno, o missal a espingarda, o altar a sela, o sino o cavalo.” 

Eles lá se desencantaram e seguiram a toda a pressa, mas o gigante de cá partiu feroz; ia botando serras abaixo, e, quando estava de novo quase a pegá-los, Guimara largou no ar um punhado de cinza e gerou-se no mundo uma neblina tal que o gigante não pôde seguir e voltou. 

Depois disto os fugitivos chegaram ao reino de D. João. Guimara, então, lhe pediu que, quando entrasse em casa, para não se esquecer dela por uma vez, não beijasse a mão de sua tia. 

O príncipe prometeu, mas quando entrou em palácio a primeira pessoa que lhe apareceu foi sua tia, a quem ele beijou a mão, e se esqueceu, por uma vez, de Guimara, que o tinha salvado da morte. 

A moça lá perdeu na terra estranha o encanto, e ficou pequena como as outras, mas sempre triste.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
SÍLVIO VASCONCELOS DA SILVEIRA RAMOS ROMERO (1851-1914) foi crítico e historiador da literatura brasileira. Fundador da Academia Brasileira de Letras. Pensador social, folclorista, poeta, jornalista, professor e político. Era sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Nasceu na vila de Lagarto, Sergipe, 1851. Em 1868 mudou-se para o Recife e ingressou na Faculdade de Direito. Polêmico, combativo e contraditório, foi influenciado por seu conterrâneo Tobias Barreto. Juntos, lideravam uma escola que reunia jovens inteligentes e destemidos, que se encarregavam de irradiar as recentes ideias vindas da França. Quando estava no 2. Ano da faculdade, Sílvio Romero colaborou com vários jornais. Em 1873 concluiu o curso de Direito. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro onde obteve a cátedra de filosofia. Romero foi também professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Como poeta, teve uma breve carreira. O primeiro livro de poemas foi Cantos do Fim do Século, lançado em 1878, em uma tentativa de aderir poesia filosófica científica que pregava desde 1870 em artigos, mas que não obteve êxito. Em 1883 publicou Últimos Arpejos, seu segundo e último volume de poesia. Desenvolveu intensa atividade como escritor. Escreveu vários livros que abordavam praticamente tudo que se referia à realidade cultural brasileira como: filosofia, literatura, folclore, educação, política e religião. Publicou assuntos ligados à cultura popular revelando-se um grande folclorista. Escreveu sobre filosofia no Brasil e sobre escolas filosóficas diversas. Em 1878 escreveu Filosofia no Brasil, publicado em Porto Alegre. Sua obra História da Literatura Brasileira (1888), em dois volumes, menos uma história literária do que uma enciclopédia de conhecimentos sobre o Brasil, a origem e evolução de sua cultura, suas raízes sociais e técnicas, foi considerada sua obra mais revolucionária. Deixou uma vasta obra culturalmente valiosa e pioneira em muitos aspectos. Respeitado pela imprensa nacional, conquistou seu lugar como um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura brasileira do século XIX. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1914.

Fontes:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1883.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Nenhum comentário: