terça-feira, 16 de outubro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) 1 de Outubro : Fatis Agimur, Credite Fatis


(Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio de Janeiro).

Meu caro redator. – Faço idéia do seu desapontamento quando receber esta carta em vez da nossa Revista costumada do domingos; mas tenha paciência, e lembre-se que o acaso é  um menino cheio de caprichos que nos dirige a seu modo, sem ter ao menos a delicadeza de nos consultar de vez em quando.

Fatis agimur, cedite fatis.

Sei que há de ficar maçadíssimo comigo, que me acusará de remisso e negligente, e acumulará sobre a minha cabeça uma série de sinônimos de igual jaez de envergonhar qualquer Cícero provinciano dos mais afamados na oratória.

É já prevenindo esta eventualidade que tomo o prudente alvitre de escrever-lhe, e não ir verbalmente desfiar o longo rosário de desculpas que a minha imaginação, sem que lho recomendasse eu, teve o cuidado de ir preparando apenas pressentiu os primeiros pródromos da preguiça.

O que vale é que a borrasca há de passar. Quanto maior for a zanga, tanto maior graça há de achar depois no logro que lhe preguei involuntariamente, está entendido; a por fim de contas, quando se lembra do seu tempo de folhetinista, estou certo que me há de dar carradas de razões. Previno-o, porém, desde já que não é preciso mandar-me à casa as tais carradas de razões; isto pode importar-lhe uma grande despesa de carretos sem necessidade.

Decidi contar-lhe confidencialmente a minha vida desta semana, para que não lhe reste a menor dúvida sobre a boa-fé com que procedi em todo este negócio, e para assim habilitá-lo a redigir uma daquelas desculpas da rotina, com que ordinariamente os jornais (compreendido o nosso por política) embaçam os leitores, logo pela manhã, e em jejum, ocasião esta em que naturalmente os carapetões são de mais fácil digestão.

Os nossos velhos da era antiga diziam que não havia domingo sem missa, sem segunda-feira sem preguiça. A primeira parte deste provérbio tem sofrido nos últimos tempos alguma modificação, principalmente a respeito dos redatores dos grandes jornais, que substituíram à missa o folhetim. Mas em compensação ninguém ainda se animou a contestar a segunda e última parte do anexim, e pó isso na segunda-feira redatores, folhetinistas, leitores e leitoras, todos desejariam poder saborear as delícias do dolce farniente.

Como isto não é possível a todos, o que se segue é que muitas vezes o corpo parece que trabalha, enquanto a mente, como uma sultana favorita, se embala molemente nas doces recordações do domingo e de toda a semana passada.

O redator estende a folha de papel para escrever o seu artigo de fundo; mas, quando procura pelo pensamento, vai descobri-lo no fundo de algum boudoir elegante, donde não há forças que o possam arrancar. Resulta daí que, depois de algumas horas de esforço baldado, o tal artigo de fundo fica no fundo do tinteiro.

A mocinha com os olhos quebrados e corpinho lânguido toma o seu bordado e começa a trabalhar. Pensa que está fazendo ponto de crochê! Qual! está fazendo namoro a crochê. Os olhos e a boquinha são os ganchos; cada ponto é um olhar provocador; cada malha um jogo vivo de sorrisos à direita e à esquerda. Quando a agulha fere-lhe um dos dedinhos rosados, sou capaz de apostar que lembrou-se de um despeito, ou de um arrufo no baile.

A respeito do folhetinista não falemos. Na segunda-feira tem a cabeça que é um caos de recordações, de faros, de anedotas e observações curiosas. A imaginação toma ares de pintor chinês, e começa a desenhar-lhe flores e arabescos de um colorido magnífico. As idéias dançam uma contradança no Cassino. A memória passeia no meio do salão, de braço dado com a ironia, gracejando e fazendo reflexões a propósito.

Enfim os cinco sentidos põem-se ao fresco, e largam-se a passear cada um para seu lado. O ouvido a Flâner recorda a cabaleta do Trovatore. O paladar e o olfato sentam-se comodamente à mesa da ceia. O olhar erige-se em dagueorreotipeiro e diverte-se em tirar retratos d’après nature. E o tato vai estudar praticamente o magnetismo, para descobrir as causas misteriosas dos estremecimentos que produz a pressão doce e tépida de uma mãozinha delicada.

À vista disto, meu caro redator, já vê que a segunda-feira é um dia inteiramente perdido, e que só vem na folhinha para encher o número dos sete que formam a semana, assim como sucede nas listas tríplices para senador. Acredite que não se faz nada, nem mesmo quando se possui a receita infalível, que eu tenho sobre a mesa, de um libelo ou de uns provarás, cujo efeito poderoso o senhor deve conhecer.

Os antigos tinham razão. E estou certo que, se Josué vivesse no nosso século, havia de adotar o anexim português, e, pedindo licença a Galileu, todos os domingos à meia-noite  faria parar o sol até terça-feira, para assim poder bem saborear o dia consagrado à preguiça, sem temer a claridade importuna que de madrugada, isto é, às desoras, vem bater-nos nas pálpebras, como um credor impertinente que não compreende a verdadeira organização do crédito.

Ora, eu sei que me podem objetar que a Bíblia manda trabalhar seis dias e descansar no sétimo. Mas aquele preceito foi inventado na primeira semana, isto é, quando não se tinha trabalho antes; e por isso podia haver preguiça na segunda-feira. Além de que, como ainda não se sabia ao certo o peso do trabalho da semana, julgou-se, que era bastante um só dia de descanso. Veja o senhor, que é deputado, o inconveniente de fazer leis sem primeiro estudarem-se profundamente as necessidades públicas.

Logo que os homens aprenderam por experiência própria quanto custavam os tais seis dias de trabalho, assentaram que era preciso pelo menos dois ou três dias de descanso. Daí veio que os antigos, pensando sobre a gravidade do caso, inventaram os dias santos para iludirem o preceito da Bíblia; e modernamente se instituiu nas semanas em que não há dias santos, o feriado da quinta-feira para estudantes e lentes, porém especialmente para estes. 

Enfim o nosso amável redator sabe que a própria astronomia confirma a convicção profunda em que estou de que pelas leis divinas e humanas a segunda-feira deve ser completamente consagrada à preguiça. A segunda-feira é o dia da lua, e ninguém ignora a influência poderosa que exerce esta senhora sobre os pobres mortais, a quem ela persegue como uma velha cheia de flatos e medeixes. Ora, não podendo o corpo assim indisposto entregar-se ao trabalho, é evidente que as próprias leis físicas, que  regulam a harmonia e o equilíbrio do mundo, destinaram a segunda-feira para a calaçaria.

Parece-me que tenho provado o ponto controvertido, com argumentos dignos de figurar em uma conclusão magna. Está a segunda-feira, portanto, fora de toda a questão; e por isso, tranqüilo na minha consciência, não tenho o menor escrúpulo em confessar-lhe que naquele dia não trabalhei.

Passei o dia, como faço-lhe a justiça de acreditar que passou o seu, sem dar atenção às misérias deste mundo; e tratando de realizar aquele dito de Marcial, que apesar de poeta (com perdão de V.S.) disse um dia uma coisa boa, talvez mesmo por não se muito forte na poesia: Vivere bis, vita posse priore fruire

Acho escusado dizer-lhe que, apesar de ser o dia inteiramente contemplativo, não me descuidei da carne, e tive o cuidado de almoçar, jantar e cear. À noite fui ao Teatro Lírico ouvir ainda uma vez o Trovatore e ver Leonora morrer depois de nos ter dado algumas horas de vida deliciosa.

Desejava trazer alguma idéia boa para o nosso folhetim. Mas o senhor sabe o que é uma idéia; é a coisa mais bandoleira e mais volúvel que eu conheço. As idéias são as borboletas do espírito; são, como diz um provérbio oriental a respeito das mulheres, a sombra do nosso corpo que nos acompanha sempre, e que nos foge apenas as queremos apanhar.

Esperei por conseguinte pela terça-feira, em que verdadeiramente devia começar o trabalho da semana, segundo os princípios que já tive a honra de lhe expender. Entretanto, servindo-me eu daqueles mesmos princípios com que provei que os antigos tinham toda a razão de destinar a segunda-feira para o santo ócio, sucedeu que tive na terça-feira ao acordar uma lembrança luminosa, cujo peso deixo ao seu alto critério.

Se os antigos, que não tinham baile, nem teatros líricos, nem concertos, nem clubes, nem corridas, e que se contentavam com algum sarau de vez em quando, inventaram os dias santos para filarem assim dois dias de descanso, nós, que temos durante a semana todo esse enorme acréscimo de trabalho imposto pela sociedade, nós que já fomos privados dos dias santos, devemos em todo o rigor da justiça lograr mais um dia de descanso, e juntar a terça-feira à segunda, a fim de poder na quinta encerrar o trabalho, com o espírito calmo e o corpo bem disposto.

Este argumento sem réplica calou-me no ânimo a convicção inabalável de que seria anti-racional e anti-filosófico trabalhar na terça-feira, principalmente estando todo preocupado com o baile do Cassino, que devia ter lugar à noite.

Por conseguinte, levei o dia literalmente a esperar pela noite, e a ler as notícias da Europa, chegadas pelo Maria 2.ª.

Tive um alegrão quando vi aquele carapetão da tomada de Sebastopol, inventado pelos passageiros do Candiá, que podem ser taxados de mentirosos, mas que pelo menos mostraram ser mais hábeis em estratégia e tática militar do que os generais franceses e ingleses, pois tomaram uma praça forte sem armas e sem soldados, somente com o auxílio da língua e de algum jeito para a petalogia.

Com este fato tinha eu base para um artigo brilhante sobre o futuro da guerra do Oriente; mas o meu contentamento foi passageiro, porque no dia seguinte li o desmentido do Jornal do Comércio, que nem sequer deixou à pobre notícia o tempo de correr.

A noite que eu esperava ansiosamente, chegou.Às 9 horas entrei no Cassino, onde tive o sumo prazer de encontra-lo, o que unicamente (espero terá a bondade de o acreditar) fez-me  passar algumas horas bem agradáveis.

Se a falta do nosso folhetim de amanhã, a qual deploro igualmente com o senhor, não o traz ainda atordoado a esta hora, deve lembrar o baile magnífico pela elegância das senhoras, e pela sociedade que aí se reuniu.

Havia naturalmente de notar, com o seu conhecido bom gosto, a justeza de uma observação que fez Arséne Houssae, provavelmente ao meio de algum baile como aquele: - Il y a des femmes qui sont roses, il y a des femmes qui sont épines, il y a des femmes qui sont des sourires, il y a des femmes qui sont des grimaces.

A este pensamento eu acrescentaria que há mulheres que são verdadeiras rosas, e que por isso têm para aqueles que se chegam um perfume e um espinho ao mesmo tempo.

Também havia de ver, como eu, surgir naquela noite uma estrela suave a deslizar docemente num céu de azul. Era uma verdadeira estrela, bela como suas irmãs, brilhando no céu; porque o céu é a pátria da candura e  da inocência.

Se não teve a felicidade de ver esta serena aparição no baile, tome o meu conselho. Vá a casa do Reis, na rua do Hospício n.º 72. É a melhor loja de instrumentos de óptica e de física que  há nesta cidade: aí encontrará um sortimento magnífico de binóculos, de telescópios e lunetas.

Escolha a melhor jumelle eliptique que ele  tiver, vá esta noite beneficiar os italianos ouvindo música italiana, e lá examine o céu do Teatro Lírico, que talvez tenha ocasião de ver a estrela de que lhe falei. Não fite muito o óculo; uma estrela é tudo o  que há mais puro e de mais casto neste mundo.

Voltando ao baile, creio que não estranhará se durante toda aquela noite nem sequer me lembrasse do folhetim. A uma hora despedi-me como os outros até a noite seguinte, na qual nos devíamos encontrar no baile militar, ou nos salões de um estrangeiro distinto, que recebia em sua casa a sociedade elegante desta corte.

Enfim veio a quarta-feira, o dia em que sensatamente se deve dar princípio ao trabalho. Não comece já a pensar que vou apelar para algum sofisma, a fim de inutilizar também este dia. Não: a quarta-feira é um dia muito útil, o mais útil talvez da semana

A quarta-feira é destinada para se dispor o homem a começar os seus afazeres. Depois de três dias de descanso, é impossível que se tenha disposições para encetar de chofre o trabalho. Seria mesmo anti-higiênico passar repentinamente do repouso ao movimento.

Motus est causa caloris. Consulte um bom médico, e verá que ele lhe diz que isto importa tanto como as transições rápidas do  frio para o calor e vice-versa, e que por conseguinte pode originar graves moléstias.

Não sei que sábio antigo disse que  a natureza não vai aos saltos: Natura non facit saltus. Todas as línguas vivas e mortas que eu conheço têm um rifão que, despida a forma, contém aquele mesmo pensamento.

Ora, logo que a sabedoria, a higiene e a experiência popular consagram um princípio inconcusso, não é possível deixar de aderir principalmente quando há uma atração irresistível para ele. Foi o que  me sucedeu, levei toda a quarta-feira a fazer tenções e cálculos de trabalho para o dia seguinte. A fim de melhor dispor o espírito, não deixei de ir à reunião de que lhe falei, e tive ocasião de apreciar a amabilidade dos hóspedes e a graça das lindas convivas.

Na quinta-feira, resolvi logo pela manhã por-me de ponto em branco, isto é, todo de preto, para ir ao convento de Santo Antônio, assistir a um ofício fúnebre que os estudantes de medicina fizeram celebrar pela alma de seu colega José Cândido de Almeida.

Embora já habituado a estas cenas de luto e de tristeza, a memória deste causa-me dolorosa impressão. Não me posso lembrar com indiferença daquele moço, cheio de vida e de talento, colhendo o germe da morte justamente quando, levado pelo amor do estudo, investigava com o escalpelo na mão os segredos da ciência.

O que consola o espírito quando me recordo deste fato é a efusão e a espontaneidade de sentimentos com que seus colegas demonstraram a mágoa que lhes deixou aquela morte prematura. Os estudantes de medicina deram nesta ocasião um exemplo, bem raro hoje, de espírito de classe; e nas demonstrações de sua dor substituíram quase para seu colega, morto longe do seio materno, as lágrimas sublimes de mãe.

A hora, que correu mais rapidamente do que eu pensava, obstou a realização do meu intento. Entretanto fiquei sempre debaixo daquela impressão, o que contudo não me afastava da idéia de começar decididamente o trabalho na quinta.

No correr do dia, refletindo melhor, assentei em duas coisas. Primeiro, que num clima tão doentio como é o do Rio de Janeiro todo mundo tem o direito incontestável de declarar-se doente pelo menos um dia por semana, ainda que não seja senão para poupar a saúde e não gasta-la toda de uma vez. Segundo, que todo o homem que cumpre exatamente os seus deveres durante todo o ano pode lá uma semana fazer um extra e destinar o dia para ir passar no campo e não fazer absolutamente nada, senão distrair-se.

E agora, meu caro redator, confesse francamente, não acha que é um impossível físico e moral fazer uma semana inteira com um dia somente, quando para isto é necessário em toda a folhinha sete dias e sete noites?

Como estou certo que não me responderá negativamente a esta pergunta, desde já me tenho por plenamente justificado para com a redação do jornal; lá quanto aos leitores, isto é coisa que lhe diz respeito, e na qual eu lavo as mãos.

Entretanto é pena que isto sucedesse, porque havia bastante que dizer-se sobre esta semana. Além dos divertimentos que lhe falei, do baile do Campestre, da chegada de um literato cego que nos veio pedir hospitalidade acompanhado de sua Antígone, houve um fato que interessa muito a população desta cidade.

O desembargador Figueira de Melo foi nomeado Chefe de Polícia desta corte, e deve tomar posse hoje, dia de São Jerônimo, seu patrão.

Não acha que esta coincidência é um presságio feliz para esta nomeação, e que o novo chefe de polícia continuará as tradições deixadas pelo Sr. Siqueira que durante a sua curta administração adquiriu títulos ao reconhecimento público? Eu inclino-me a crer que sim, e não estou longe de supor que nisso vamos de acordo. 

A empresa lírica começa a ser administrada pela nova diretoria, e também há razões de esperar das pessoas que a compõem, se não todos, ao menos alguns dos melhoramentos que exige o nosso Teatro para poder elevar-se ao estado que comporta a civilização e os recursos desta corte.

Veja que pena! Com tanta notícia importante, não temos artigo  hebdomadário! Mas console-se; a semana que vem não se anuncia menos brilhante. Teremos um baile esplêndido na Fileuterpe, e no Teatro de São Pedro um concerto vocal e instrumental, de música alemã e clássica, o que deve ser uma novidade artística digna de atrair todo aquele que se prezar de bom gosto. A  orquestra será regida por um jovem professor nacional, o Sr. Stockemeyer, que já tem dado provas do seu talento.

Não se amofine por conseguinte, e creia na minha boa vontade.

Seu, etc.
S.C. 30 setembro.   
Al.

P. S. Agora, quase ao fechar esta, lembrei-me de um expediente aproveitável em tão críticas circunstâncias. A liberdade do folhetinista é ilimitada, a carta longa: portanto escreva-lhe em cima o nosso título – Ao correr da pena – e mande para a composição. Não deixe transpirar coisa alguma; e amanhã o leitor com toda a sua finura pensará que isto foi uma idéia original que tivemos. Há de ver, que, no fim de contas, o negócio arranja-se às mil maravilhas.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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