(Crônicas publicadas no
“Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no
“Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos
os jornais do Rio de Janeiro).
O tempo serenou; as nuvens abriram-se, e deixam ver a espaços
uma pequena nesga de céu azul, por onde passa algum raio de sol desmaiado, que,
ainda como que entorpecido com o frio e com a umidade da chuva, vem
espreguiçar-se indolentemente sobre as alvas pedras das calçadas.
Aproveitemos a estiada da manhã, e vamos, como os outros,
acompanhando a devota romaria, assistir à festividade de São Pedro de
Alcântara, que se celebra na Capela Imperial!
A igreja ressumbra a severa e impotente majestade dos templos
católicos. Em face dessas grandes sombras que se projetam pelas naves, da luz
fraca e vacilante dos círios lutando com a claridade do sai que penetra pelas
altas abóbadas, do silêncio e das pompas solenes de uma religião verdadeira,
sente-se o espírito tomado de um grave recolhimento.
Perdido no esvão de uma nave escura, ignorado de todos e dos
meus próprios amigos, que talvez condenavam sem remissão um indiferentismo
imperdoável, assisti com o espírito do verdadeiro cristão a esta festa
religiosa, que apresentava o que quer seja fora do comum.
Sob o aspecto contido e reservado daquele numeroso concurso,
elevando-se gradualmente do mais humilde crente até às últimas sumidades da
hierarquia social, transpareciam os assomos de uma curiosidade sôfrega e de uma ansiedade mal
reprimida. Qual seria a causa poderosa que perturbava assim a gravidade da
oração? Que pensamento podia assim distrair o espírito dos cismas e dos enlevos
da religião?
Não era de certo um pensamento profano, nem uma causa estranha
que animava aquele sentimento. Ao contrário: neste templo que a religião enchia
com todo o vigor de suas imagens e toda a poesia de seus mitos, neste recinto
em que as luzes, o silêncio e as sombras, as galas e a música representavam
todas as expressões do sentimento, só faltava a palavra, mas a palavra do
Evangelho, a palavra de uma inspiração sublime e divina, a palavra que cai do
céu sobre o coração como um eco da voz de Deus, e que refrange aos lábios para
poder ser compreendida pela linguagem dos homens.
Era isto o que todos esperavam. Os olhos se voltavam para o
púlpito onde havia pregado Sampaio, S. Carlos e Januário; e pareciam evocar dos
seus túmulos aquelas sombras ilustres para virem contemplar um dia de sua vida,
uma reminiscência de suas passadas glórias.
Deixai que emudeçam as orações, que se calem os sons da música
religiosa, e que os últimos ecos dos cânticos sagrados se vão perder pelo fundo
dos erguidos corredores ou pelas frestas arrendadas das tribunas.
Cessaram de todo as orações. Recresce a expectação e a
ansiedade; mas cada um se retrai na mudez da concentração. Os gestos se
reprimem, contêm-se as respirações anelantes. O silêncio vai descendo frouxa e
lentamente do alto das abóbadas ao longo das paredes, e sepulta de repente o
vasto âmbito do templo.
Chegou o momento. Todos os olhos estão fixos, todos os
espíritos atentos.
No vão escuro da estreita arcada do púlpito assomou um vulto. É
um velho cego, quebrado pelos anos, vergado pela idade. Nessa bela cabeça quase
calva e encanecida pousa-lhe o espírito da religião sob a tríplice auréola da
inteligência, da velhice e da desgraça.
O rosto pálido e emagrecido cobre-se desse vago, dessa
oscilação do homem que caminha nas trevas. Entre as mangas do burel de seu
hábito de franciscano cruzam-se os braços nus e descarnados.
Ajoelhou. Curvou a cabeça sobre a borda do púlpito, e,
revolvendo as cinzas de um longo passado, murmurou uma oração, um mistério
entre ele e Deus.
Que há em tudo isto que desse causa à tamanha expectação? Não
se encontra a cada momento um velho, a quem o claustro seqüestrou do mundo, a
quem a cegueira privou da luz dos olhos? Não há aí tanta inteligência que um
voto encerra numa célula, e que a desgraça sepulta nas trevas?
É verdade. Mas deixai que termine aquela rápida oração; esperai
um momento... um segundo... ei-lo!
O velho ergueu a cabeça; alçou o porte; a sua fisionomia
animou-se. O braço descarnado abriu um gesto incisivo; os lábios, quebrantando
o silêncio de vinte anos, lançaram aquela palavra sonora, que encheu o recinto,
e que foi acordar os ecos adormecidos de outros tempos.
Fr. Francisco de Monte Alverne pregava! Já não era um velho
cego, que a desgraça e a religião mandava respeitar. Era o orador brilhante, o
pregador sagrado, que impunha a admiração com a sua eloqüência viva e animada,
cheia de grandes pensamentos e de imagens soberbas.
Desde este momento o que foi aquele rasgo de eloqüência, não é
possível exprimi-lo, nem sei dize-lo. A entonação grave de sua voz, a expressão
nobre do gesto enérgico a copiar a sua frase eloqüente, arrebatava; e levado
pela força e veemência daquela palavra vigorosa, o espírito, transpondo a
distância e o tempo, julgava-se nos desertos de Said e da Tebaida, entre os
rochedos alcantilados e as vastas sáfaras de areia, presenciando todas as
austeridades da solidão.
De repente, em dois terços, com uma palavra, com um gesto,
muda-se o quadro; e como que a alma se perde naquelas vastas e sombrias
abóbadas do Mosteiro de São Justo, para ver com assombro Pedro de Alcântara em
face de Carlos V, o santo em face da grandeza decaída.
Aqueles que em outros tempos ouviram Monte Alverne, e que podem
comprar as duas épocas de sua vida cortada por uma longa reclusão, confessam
que todas as suas reminiscências dos tempos passados, apesar do prestígio da
memória, cederam a esse triunfo da eloqüência.
Entre as quatro paredes de uma célula estreita, privado da luz,
é natural que o pensamento se tenha acrisolado; e que a inteligência, cedendo
por muito tempo a uma força poderosa de concentração, se preparasse para essas
expansões brilhantes.
O digno professor de eloqüência do Colégio de Pedro II;
desejando dar aos seus discípulos uma lição de prática de oratória, assistiu
com eles, e acompanhado do respeitável diretor daquele estabelecimento, ao belo
discurso de Monte Alverne.
Não me animo a dizer mais sobre um assunto magnífico, porém
esgotado por uma dessas penas que com dois traços esboçam um quadro, como a
palavra de Monte Alverne com um gesto e uma frase.
Contudo, se este descuido de escritor carece de desculpas,
parece-me que tenho uma muito valiosa na importância do fato que preocupou os
espíritos durante os últimos dias da semana, e deu tema a todas as
conversações.
Parece, porém, que a chuva só quis dar tempo a que a cidade do
Rio de Janeiro pudesse ouvir o ilustre pregador, sem que o rumor das goteiras perturbasse
o silêncio da igreja.
À tarde o tempo anuviou-se, e a água caía a jorros. Entretanto
isto não impediu que a alta sociedade e todas as notabilidades políticas e
comerciais, em trajes funerários, concorressem ao enterro de uma senhora
virtuosa, estimada por quantos a
tratavam, conhecida pelos pobres e pelas casas pias.
A Sra. Baronesa do Rio Bonito contava muitas afeições, não só
pelas suas virtudes, como pela estimação geral de que gozam seus filhos. O
grande concurso de carros que acompanharam o seu préstito fúnebre em uma tarde
desabrida é o mais solene testemunho desse fato.
Entre as pessoas que carregaram o seu caixão notaram-se o Sr.
Presidente do Conselho, o Sr. Ministro do Império e alguns Diretores do Banco
do Brasil. É o apanágio da virtude, e o único consolo da morte. Ante os
despojos exânimes de uma alma bem
formada se inclinam sem humilhar-se todas as grandezas da terra.
Esses dois fatos, causa de sentimentos opostos, enchem quase
toda a semana. Desde pela manhã até a noite a chuva caía com poucas
intermitências, e parecia ter destinado aqueles dias para as solenidades e os
pensamentos religiosos.
Apesar da esterilidade e sensaboria que produz sempre esse
tempo numa cidade de costumes como os nossos, apesar dos dissabores dos
namorados privados dos devaneios da tarde, e dos ataques de nervos das moças
delicadas, os homens previdentes não deixavam de estimar essas descargas de
eletricidade, e essas pancadas d’água, que depuram e refrescam a atmosfera.
Na opinião (quanto a mim estou em dúvida), essas caretas que o
tempo fazia aos prognosticadores de moléstias imaginárias, valiam mil vezes
mais do que todas as discussões de todas as academias médicas do mundo.
Quanto mais, se soubessem que o Sr. Ministro do Império durante
esses dias se preocupava seriamente das medidas necessárias ao asseio da
cidade, mostrando assim todo zelo em proteger esta bela capital dos ataques do
diabo azul. Sirvo-me deste nome, porque estou decidido a não falar mais em
cólera, enquanto não resolverem definitivamente se é homem, se é mulher ou
hermafrodita.
Para este fim o Sr. Pedreira consultou o presidente da câmara
municipal, e incumbiu ao Sr. Desembargador chefe de polícia a inspeção do
serviço, cujo regulamento será publicado oportunamente.
Com as providências que se tomaram, e especialmente com a
medida da divisão dos distritos e da combinação da ação policial com o elemento
municipal, a fim de remover quaisquer obstáculos, creio que podemos esperar
resultados úteis e eficazes.
Fonte:
José de Alencar. Ao
Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.
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