terça-feira, 16 de outubro de 2012

Antonio Carlos de Faria (O Marceneiro e o Super-homem)


O Freitas devia ter desconfiado quando o marceneiro respondeu sua pergunta recorrendo a um ser imaginário, usando uma figura de linguagem.

- Como diria o The Flash, nós dois somos primos.

A única coisa que interessava ao Freitas era saber se o marceneiro poderia cumprir o prazo de 30 dias para a entrega do armário. No lugar de uma resposta direta, o contratado preferiu alegar parentescos célebres.

No dia marcado para a entrega, o marceneiro telefonou e pediu mais uma semana de prazo, enumerando uma série de contratempos. O Freitas ficou enfurecido, pois aquilo iria atrasar seu cronograma para a reforma do apartamento.

- O senhor não disse que era primo do The Flash?

- Não, o senhor entendeu mal. Disse que ambos somos primos, no sentido matemático. Divisíveis por nós mesmos e pelo número um, compreende?

A gracinha era descabida, reagiu o Freitas, que despejou algumas amabilidades, com a intenção de dividir ao meio aquele cara-de-pau. Mas no final da discussão, combinaram uma extensão do prazo para mais uma semana.

No dia marcado, o sujeito não apareceu e, novamente por telefone, explicou que precisava de mais três dias. O Freitas destratou o tratante com mais vigor. Mas ambos sabiam que estavam mutuamente presos. Para sossego do marceneiro, não havia mais tempo para substituí-lo sem atrasar o prazo final da obra.

Anteontem, o marceneiro apareceu, mas só trouxe metade do que haviam combinado. O resto, só na segunda-feira. Disposto a acabar de uma vez com aquele sofrimento, o Freitas esbravejou que iria chamar outra pessoa, que não se importava mais se a reforma fosse atrasar. O outro sujeito pediu licença para falar.

- O maior mal é necessário para o maior bem do homem.

Aquelas palavras deixaram o Freitas congelado. Estarrecido, constatou que tinha diante de si um marceneiro seguidor das idéias de Nietzsche. Calado, imaginava as conseqüências daquela descoberta. Foi o outro quem o despertou do torpor.

- Que tal se combinarmos para eu voltar na segunda-feira? Aí, sem falta, eu trago tudo e termino o serviço.

O Freitas reagiu com alguns palavrões, que mesmo enfáticos mostravam-se inofensivos naquela situação. O marceneiro voltou a falar.

- É melhor eu ir embora e só voltar na segunda-feira. Afinal nós não queremos que seja assim o nosso eterno retorno, não é?

O Freitas resolveu contra-atacar.

- O senhor disse que era primo do The Flash, não do super-homem nietzschiano.

- De certa forma, todos somos primos do super-homem.

O marceneiro tinha recursos para manter um bate-boca de longo curso, mas não era isso o que interessava ao Freitas. Ele só precisava de um armário.

- Não se preocupe, concluiu o marceneiro. Vou terminar o serviço na segunda-feira. Quanto ao resto, lembre-se que é virtuoso ter somente inimigos dignos de ódio e não de desprezo. Disso o senhor pode se orgulhar.

Fonte:
Folha On Line. 13 de setembro de 2004.

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