sábado, 27 de outubro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) 3 de novembro: Máquinas de coser


(Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio de Janeiro).

Meu caro colega. – Acho-me seriamente embaraçado da maneira por que descreverei a visita que fiz ontem à fábrica de coser de M.me Besse, sobre a qual já os nossos leitores tiveram uma ligeira notícia neste mesmo jornal.

O que sobretudo me incomoda é o título que leva o meu artigo. Os literatos, apenas ao lerem, entenderão que o negócio respeita aos alfaiates e modistas. Os poetas acharão o assunto prosaico, e talvez indigno de preocupar os vôos do pensamento. Os comerciantes, como não se trata de uma sociedade em comandita, é de crer bem pouca atenção dêem a esse melhoramento da indústria.

Por outro lado, tenho contra mim o belo sexo, que não pode deixar de declarar-se contra esse maldito invento, que priva os seus dedinhos mimosos de uma prenda tão linda, e acaba para sempre com todas as graciosas tradições da galanteria antiga.

Aqueles lencinhos embainhados, penhor de um amante fiel, e aquelas camisinhas de cambraia destinadas a um primeiro filho, primores de arte e de paciência, primeiras delícias da maternidade, tudo isto vai desaparecer.

As mãozinhas delicadas da amante, ou da mãe extremosa, trêmulas de felicidade e emoção, não se ocuparão mais com aquele doce trabalho, fruto de longas vigílias, povoadas de sonhos e de imagens risonhas. Que coração sensível pode suportar friamente semelhante profanação do sentimento?...

Declarando-se as senhoras contra nós, quase que podemos contar com uma conspiração geral, porque é coisa sabida que desde o princípio do mundo os homens gastam a metade de seu tempo a dizer mal das mulheres, e a outra metade a imitar o mal que elas fazem.

Por conseguinte, refletindo bem, só nos restam para leitores alguns homens graves e sisudos, e que não se deixam dominar pela influência dos belos olhos e dos sorrisos provocadores. Mas como é possível distrair estes espíritos preocupados com altas questões do Estado de faze-los descer das sumidades da ciência e da política a uma simples questão de costura?

Parece-lhe isto talvez uma coisa muito difícil; entretanto tenho para mim que não há nada mais natural. A história, essa grande  mestra de verdades, nos apresenta inúmeros exemplos do grande apreço que sempre mereceu dos povos da antiguidade, não só a arte de coser, como as outras que lhe são acessórias.

Eu podia comemorar o fato de Hércules fiando aos pés de Onfale, e mostrar o importante papel que representou na antiguidade, a teia de Penépole, que mereceu ser cantada por Homero. Quanto à agulha de Cleópatra, esse lindo obelisco de mármore, é a prova mais formal de que os Egípcios votavam tanta admiração à arte da costura, que elevaram aquele monumento à sua rainha, naturalmente porque ela excedeu-se nos trabalhos desse gênero.

As tradições de todos os povos conservam ainda hoje o nome dos inventores da arte de vestir os homens. Entre os gregos foi Minerva, entre os lídios Aracne, no Egito Isis, e no Peru Manacela, mulher de Manco Capa.

Os chineses atribuem essa invenção ao Imperador Ias; e na Alemanha, conta a legenda que a fada Ave, tendo um amante muito friorento, compadeceu-se dele, e inventou o tecido para muito friorento, compadeceu-se dele, e inventou o tecido para vesti-lo. Naquele tempo feliz ainda eram as amantes que pagavam os gastos da moda; hoje, porém, este artigo tem sofrido uma modificação bem sensível. As fadas desapareceram, e por isso os homens vão cuidando em multiplicar as máquinas.

Só estes fatos bastariam para mostrar que importância tiveram em todos os tempos e entre todos os povos as artes que servem para preparar o traje do homem. Além disto, porém a tradição religiosa conta que já no Paraíso, Eva criara, com as folhas da figueira, diversas modas, que infelizmente caíram em desuso.

Já não falo de muitas rainhas, como Berta, que foram mestras e professoras na arte de coser e fiar; e nem das sábias pragmáticas dos Reis de Portugal a respeito do vestuário, as quais mostram o cuidado que sempre mereceu daqueles monarcas, e especialmente do grande Ministro Marquês de Pombal, a importante questão dos trajes.

Hoje mesmo, apesar do rifão antigo, todo o mundo entende que o hábito faz o monge; e se não vista alguém uma calça velha e uma casaca de cotovelos roídos, embora seja o homem mais relacionado do Rio de Janeiro, passará por toda a cidade incógnito e invisível, como se tivesse no dedo o anel de Giges.

Assim, pois, é justamente para os espíritos graves, dados aos estudos profundos e às questões de interesse público, que resolvi descrever a visita à fábrica de coser de M.me Besse, certo de que não perderei o meu tempo, e concorrerei quanto em mim estiver para que se favoreça este melhoramento da indústria, que pode prestar grandes benefícios, fornecendo não só à população desta côrte, mas também a alguns estabelecimentos nacionais. 

A fábrica está situada à Rua do Rosário, n.º 74. Não é uma posição tão aristocrática como a das modistas da Rua do Ouvidor; porém tem a vantagem de ser no centro da cidade; e, portanto, as senhoras do tom podem facilmente e sem derrogar aos estilos da alta fashion fazer a sua visita a M.me Besse, que as receberá com graça e a amabilidade que a distingue.

Era na ocasião de uma dessas visitas que eu desejaria achar-me lá para observar o desapontamento das minhas amáveis leitoras (se é que as tenho, visto que estou escrevendo para os homens pensadores). Dizem que o espírito da indústria tem despoetizado todas as artes, e que as máquinas vão reduzindo o mais belo trabalho a um movimento monótono e regular, que destrói todas as emoções, e transforma o homem num autômato escravo de outro autômato.

Podem dizer o que quiserem; eu também pensava o mesmo antes de ver aquelas lindas maquinazinhas que trabalham com tanta rapidez, e até com tanta graça. Figurai-vos umas banquinhas de costura fingindo charão, ligeiras e cômodas, podendo colocar-se na posição que mais agradar, e sobre esta mesa uma pequena armação de aço, e podeis fazer uma idéia aproximada da vista da máquina. Um pezinho o mais mimoso do mundo, um pezinho de Cendrillon, como conheço alguns, basta para fazer mover sem esforço todo este delicado maquinismo.

E digam-me ainda que as máquinas despoetizam a arte! Até agora, se tínhamos a ventura de ser admitidos no santuário de algum gabinete de moça, e de passarmos algumas horas e  conversar e a vê-la coser, só podíamos gozar dos graciosos movimentos das mãos; porém não se nos concedia o supremo prazer de entrever sob a orla do vestido um pezinho encantador, calçado por alguma botinazinha azul; um pezinho de mulher bonita, que é tudo quanto há de mais poético neste mundo.

Enquanto este pezinho travesso, que imaginareis, como eu, pertencer a quem melhor vos aprouver, faz mover rapidamente a máquina, as duas mãozinhas, não menos ligeiras, fazem passar pela agulha uma ourela de seda ou de cambraia, ao longo da qual vai-se estendendo com incrível velocidade uma linha de pontos que acaba necessariamente por um ponto de admiração (!).

Está entendendo que o ponto de admiração é feito pelos vossos olhos, e não pela máquina, que infelizmente não entende nada de gramática, senão podia-nos bem servir para  elucidar as famosas questões do gênero do cólera e da ortografia da palavra asseio. Questões estas muito importantes, como todos sabem, porque, sem que elas se decidam, nem os médicos podem acertar no curativo da moléstia, nem o Sr. Ministro do Império pode publicar o seu regulamento da limpeza da cidade.

Voltando, porém, à nossa máquina, posso assegurar-lhes que a rapidez é tal, que nem o mais cabula dos estudantes de São Paulo ou de medicina, nem um poeta e romancista a fazer reticências, são capazes de ganha-la a dar pontos. Se a deixarem ir à sua vontade, faz uma ninharia de trezentos por minuto; mas, se a zangarem, vai aos seiscentos; e então, ao contrário do que desejava um nosso espirituoso folhetinista contemporâneo, o Sr. Zaluar, pode-se dizer que quando começa a fazer ponto, nunca faz ponto.

Mau! Já me andam os calemburs  às voltas! É preciso continuar; mas, antes de passar adiante, sempre aconselharei a certos credores infatigáveis, a certos escritores cuja verve é inesgotável, que vão examinar aquelas máquinas a ver se aprendem delas a arte de fazer ponto. É uma coisa muito conveniente ao nosso bem estar, e será mais um melhoramento que deveremos a M.me Besse.

Aos Estados Unidos cabe a invenção das máquinas de coser, que hoje se têm multiplicado naquele país de uma maneira prodigiosa, principalmente depois dos últimos aperfeiçoamentos que se lhe têm feito. M.me Besse possui atualmente na sua fábrica seis destas máquinas, e tem ainda na alfândega doze, que pretende  despachar logo que o seu estabelecimento tomar o incremento que é de esperar.

M.me Besse corta perfeitamente qualquer obra de homem ou de senhora; e, logo que for honrada com a confiança das moças elegantes, é de crer que se torne a modista do tom, embora não tenha para isto a patente de francesa, e não more na Rua do Ouvidor.

Além disto, como ela possui máquinas de diversas qualidades, umas que fazem a costura a mais fina, outras próprias para coser fazenda grossa e ordinária, podem também muitos estabelecimentos desta corte lucrar com a sua fábrica um trabalho, não só mais rápido e mais bem acabado como mais módico no preço.

Presentemente a fábrica já tem muito que fazer; mas, quando se possui seis máquinas, e por conseguinte se dá três mil e seiscentos pontos por minuto, é preciso que se tenha muito pano para mangas.

Sou, meu caro colega, etc.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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