domingo, 29 de julho de 2018

Contos e Lendas do Mundo (Inuit: Pássaro negro, Céu resplandecente)

Hoje, a terra dos esquimós canadianos (Inuit) tem luz do dia durante metade do ano e noite durante a outra metade. Porém, segundo um mito esquimó, não foi sempre assim. Era um lugar de noite eterna.

Outrora, na bruma do tempo, a terra dos esquimós era um lugar de completa escuridão. Era um local ermo de desertos gelados, onde o frio cortante trespassava as peles usadas pelos esquimós e cravava os seus dentes até ao tutano. Mas pior do que o frio era a interminável noite. Meia-noite ou meio-dia, o céu era negro como os vultos das focas a nadar por baixo do gelo.

Nesta escuridão, nasciam crianças, construíam-se iglus e caçavam-se animais. O tempo parecia não ter significado, porque não havia dias para contar. O povo deste deserto terrível tinha apenas as suas lamparinas de óleo de foca para iluminar a escuridão.

Para passar o tempo, os esquimós passavam a maior parte das suas vidas dentro dos iglus a contar histórias uns aos outros, mas um dos mais populares contadores de histórias não era um humano. Era um corvo.

Ao contrário dos esquimós, este pássaro viajara por toda a parte. Numa hora, as suas asas podiam levá-lo a uma distância que um homem ou uma mulher só conseguiam cobrir ao fim de um dia de caminhada sobre o gelo traiçoeiro sem a luz do Sol para os guiar. No entanto, as horas e os dias não significavam nada para os esquimós canadianos.

O Corvo falava-lhes de todas as outras terras que vira e de uma coisa chamada Luz do Dia.

–  O que é essa Luz do Dia de que falas? - indagou um jovem caçador. - Não compreendo.

–  E mais brilhante do que o relâmpago que ilumina o céu numa trovoada - disse o Corvo. - Porém, ao contrário do relâmpago, não desaparece num piscar de olhos.

–  Queres dizer que o céu fica brilhante? - perguntou o jovem caçador.

–  Sim - disse o Corvo. - Em vez do céu ser escuro como as pupilas dos teus olhos, é claro como o branco que as rodeia.

 –  Como é que isso é possível? - perguntou uma velhota. - Já vivi mais do que qualquer um que está sentado neste círculo, e nunca vi essa coisa a que chamas Luz do Dia.

 –  Nunca nenhum de nós viu algo com nitidez! - gritou o jovem caçador. - Vivemos num mundo de sombras... num mundo iluminado pelo brilho amarelado das nossas lamparinas de óleo de foca. Sem isso, seríamos completamente cegos.

 –  Então traz-nos um pouco dessa Luz do Dia, Corvo, para nos ajudar nas nossas vidas diárias - suplicou a velhota. - Não para provar a verdade do que dizes, pois não duvidamos da tua palavra, mas para nos ajudar.

 O Corvo estava sempre ansioso por ajudar os esquimós. Não tinha nenhum motivo para visitar a terra deles, mas eles eram seus amigos e era por isso que voltava sempre para eles.

 –  Sim - acrescentou o jovem caçador. - Importas-te de ir até ao mundo da Luz do Dia e de nos trazer um pouco dela?

 –  Vou tentar - disse o Corvo.

 Na manhã seguinte - embora ninguém pudesse afirmar que era manhã, pois o céu ainda estava negro - o Corvo partiu para a sua viagem. Uma multidão de pessoas juntara-se na escuridão para o ver partir.

 –  Boa sorte! - gritaram, mas no momento em que ele voou para o céu, deixaram de ver o seu amigo, pois as suas penas eram tão negras como o ar que o rodeava.

 Voou até avistar uma luz bruxuleante no horizonte. Chegara finalmente à terra da Luz do Dia e então - e só então - pousou, completamente esgotado, para dormir.

 Quando o Corvo acordou, pensou na missão que tinha pela frente. Os esquimós eram boas pessoas. Como a comida era escassa na sua terra, partilhavam sempre com prazer o pouco que tinham entre si. O Corvo sabia que nem todas as pessoas se comportavam assim, e que aqueles que possuíam a Luz do Dia não estariam dispostos a dar-lhe um pouco dela, por mais pequeno que fosse esse pouco. Teria de a roubar.

 O Corvo voou até uma aldeia e procurou a casa do chefe, porque sabia que a pessoa mais importante da aldeia estaria encarregue da Luz do Dia. Pousou no peitoril da janela e viu uma criança a engatinhar em cima de um tapete de pele de urso, sob a vigilância do seu amado avô, o chefe.

 O Corvo viu pela expressão do chefe que adorava o seu neto e que faria tudo por ele. O rapaz poderia pedir qualquer coisa que o avô, para o fazer feliz, lha daria - o Corvo não tinha qualquer dúvida a esse respeito.

 Uns dizem que o Corvo se transformou num grão de poeira e entrou na orelha do rapazinho. Outros dizem que o Corvo falou com o rapaz quando o chefe saiu de casa para ajudar a filha a transportar um balde de água. Fosse como fosse, o Corvo suspirou para o rapaz:

 –  Pede ao teu avô um bocado de Luz do Dia... um bocadinho chegará, com um fio para a segurar.

 O rapaz, excitado, gritou:

 –  Vovô! Vovô! Deixe-me brincar com um bocadinho de Luz do Dia. Mas a Luz do Dia era demasiado preciosa para se poder brincar com ela, por isso o chefe tentou distrair o neto.

 –  Agora não, criança - disse ele. - Deixa-me contar-te a história de Nanook, o urso branco.

Pegou num pequeno urso feito de dente de morsa e pô-lo num tapete ao lado do rapaz. Depois, começou a contar ao neto a sua história favorita - o conto esquimó de como um urso-polar salvou a vida de um homem aquecendo-o com o seu corpo e pescando peixe para ele comer, e de como ele ensinou ao homem que os ursos e os homens eram irmãos.

Porém, pela primeira vez, a história perdeu a sua magia. O rapaz só pensava na Luz do Dia. Era só um bocadinho de Luz do Dia que ele queria para brincar e, depois de começar a chorar, foi um bocadinho de Luz do Dia que lhe foi dado - com um fio para a segurar.

–  Obrigado, vovô! - O rapaz sorriu, segurando a brilhante orbe.

Antes que alguém soubesse o que estava a acontecer, o Corvo bateu as asas desde o sítio onde estivera escondido e agarrou no fio.

Fugiu então pela porta que fora aberta pelo pai do rapaz, que regressava de uma caçada.

O Corvo voou em direção ao céu, esquivando-se a uma torrente de setas disparadas contra ele pelo chefe e os seus aldeões. Com ele, levava o bocado de Luz do Dia, brilhante como uma bola cor de laranja. Continuou a voar, sem nunca se atrever a parar, enquanto levava a Luz do Dia aos seus amigos, os esquimós.

Era apenas um bocadinho, naturalmente, porque o Corvo não teria conseguido transportar algo muito maior, mas era suficientemente grande para fornecer luz e calor aos seus amigos durante meio ano. Pela primeira vez, tinham luz natural. A velhota, o jovem caçador e todos os outros esquimós ficaram muito gratos por aquilo que o Corvo fizera, arriscando a vida para lhes trazer a Luz do Dia.

–  Obrigado - disseram. - Nunca esqueceremos o que fizeste por nós. As tuas façanhas serão contadas em histórias pelos nossos filhos e netos. O teu nome perdurará entre o nosso povo para sempre.

Numa terra onde a caça é ainda difícil e a comida é ainda escassa, os esquimós canadianos nunca matam corvos. São amigos dos pássaros, e agora sabeis porquê.

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