CAMINHO I
Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...
Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...
Porque a dor, esta falta d'harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,
Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.
ESTÁTUA
Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, - frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.
Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.
E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correto
Desse entreaberto lábio gelado...
Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.
PAISAGENS DE INVERNO I
Ó meu coração, torna para trás.
Onde vais a correr, desatinado?
Meus olhos incendidos que o pecado
Queimou! - o sol! Volvei, noites de paz.
Vergam da neve os olmos dos caminhos.
A cinza arrefeceu sobre o brasido.
Noites da serra, o casebre transido...
Ó meus olhos, cismai como os velhinhos.
Extintas primaveras evocai-as:
- Já vai florir o pomar das maceiras.
Hemos de enfeitar os chapéus de maias.-
Sossegai, esfriai, olhos febris.
-E hemos de ir cantar nas derradeiras
Ladainhas...Doces vozes senis...-
PAISAGENS DE INVERNO II
Passou o outono já, já torna o frio...
- Outono de seu riso magoado.
Álgido inverno! Oblíquo o sol, gelado...
- O sol, e as águas límpidas do rio.
Águas claras do rio! Águas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cansado,
Para onde me levais meu vão cuidado?
Aonde vais, meu coração vazio?
Ficai, cabelos dela, flutuando,
E, debaixo das águas fugidias,
Os seus olhos abertos e cismando...
Onde ides a correr, melancolias?
- E, refratadas, longamente ondeando,
As suas mãos translúcidas e frias…
MADALENA
...e lhe regou de lágrimas os pés e os enxugou com os cabelos da sua cabeça.
Evangelho de S. Lucas.
Ó Madalena, ó cabelos de rastos,
Lírio poluído, branca flor inútil...
Meu coração, velha moeda fútil,
E sem relevo, os caracteres gastos,
De resignar-se torpemente dúctil...
Desespero, nudez de seios castos,
Quem também fosse, ó cabelos de rastos,
Ensanguentado, enxovalhado, inútil,
Dentro do peito, abominável cômico!
Morrer tranquilo, - o fastio da cama...
Ó redenção do mármore anatômico,
Amargura, nudez de seios castos!...
Sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama,
Ó Madalena, ó cabelos de rastos!
FONÓGRAFO
Vai declamando um cômico defunto.
Uma plateia ri, perdidamente,
Do bom jarreta... E há um odor no ambiente.
A cripta e a pó, - do anacrônico assunto.
Muda o registo, eis uma barcarola:
Lírios, lírios, águas do rio, a lua...
Ante o Seu corpo o sonho meu flutua
Sobre um paul, - extática corola.
Muda outra vez: gorjeios, estribilhos
Dum clarim de oiro - o cheiro de junquilhos,
Vívido e agro! - tocando a alvorada...
Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas
Quebrou-se agora orvalhada e velada.
Primavera. Manhã. Que eflúvio de violetas!
SONETO
Desce em folhedos tenros a colina:
- Em glaucos, frouxos tons adormecidos,
Que saram, frescos, meus olhos ardidos,
Nos quais a chama do furor declina...
Oh vem, de branco, - do imo da folhagem!
Os ramos, leve, a tua mão aparte.
Oh vem! Meus olhos querem desposar-te,
Refletir virgem a serena imagem.
De silva doida uma haste esquiva.
Quão delicada te osculou num dedo
Com um aljôfar cor de rosa viva!...
Ligeira a saia... Doce brisa impele-a...
Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo!
Alma de silfo, carne de camélia…
OLVIDO
Desce por fim sobre o meu coração
O olvido. Irrevocável. Absoluto.
Envolve-o grave como véu de luto.
Podes, corpo, ir dormir no teu caixão.
A fronte já sem rugas, distendidas
As feições, na imortal serenidade,
Dorme enfim sem desejo e sem saudade
Das coisas não logradas ou perdidas.
O barro que em quimera modelaste
Quebrou-se-te nas mãos. Viça uma flor...
Pões-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste...
Ias andar, sempre fugia o chão,
Até que desvairavas, do terror.
Corria-te um suor, de inquietação…
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