sexta-feira, 27 de julho de 2018

Camilo Pessanha (Caldeirão Poético)


CAMINHO I

Tenho sonhos cruéis; n'alma doente 
Sinto um vago receio prematuro. 
Vou a medo na aresta do futuro, 
Embebido em saudades do presente... 

Saudades desta dor que em vão procuro 
Do peito afugentar bem rudemente, 
Devendo, ao desmaiar sobre o poente, 
Cobrir-me o coração dum véu escuro!... 

Porque a dor, esta falta d'harmonia, 
Toda a luz desgrenhada que alumia 
As almas doidamente, o céu d'agora, 

Sem ela o coração é quase nada: 
Um sol onde expirasse a madrugada, 
Porque é só madrugada quando chora. 

ESTÁTUA

Cansei-me de tentar o teu segredo: 
No teu olhar sem cor, - frio escalpelo, 
O meu olhar quebrei, a debatê-lo, 
Como a onda na crista dum rochedo. 

Segredo dessa alma e meu degredo 
E minha obsessão! Para bebê-lo 
Fui teu lábio oscular, num pesadelo, 
Por noites de pavor, cheio de medo. 

E o meu ósculo ardente, alucinado, 
Esfriou sobre o mármore correto 
Desse entreaberto lábio gelado... 

Desse lábio de mármore, discreto, 
Severo como um túmulo fechado, 
Sereno como um pélago quieto.

PAISAGENS DE INVERNO I

Ó meu coração, torna para trás. 
Onde vais a correr, desatinado? 
Meus olhos incendidos que o pecado 
Queimou! - o sol! Volvei, noites de paz. 

Vergam da neve os olmos dos caminhos. 
A cinza arrefeceu sobre o brasido. 
Noites da serra, o casebre transido... 
Ó meus olhos, cismai como os velhinhos. 

Extintas primaveras evocai-as: 
- Já vai florir o pomar das maceiras. 
Hemos de enfeitar os chapéus de maias.- 

Sossegai, esfriai, olhos febris. 
-E hemos de ir cantar nas derradeiras 
Ladainhas...Doces vozes senis...-

PAISAGENS DE INVERNO II

Passou o outono já, já torna o frio... 
- Outono de seu riso magoado. 
Álgido inverno! Oblíquo o sol, gelado... 
- O sol, e as águas límpidas do rio. 

Águas claras do rio! Águas do rio, 
Fugindo sob o meu olhar cansado, 
Para onde me levais meu vão cuidado? 
Aonde vais, meu coração vazio? 

Ficai, cabelos dela, flutuando, 
E, debaixo das águas fugidias, 
Os seus olhos abertos e cismando... 

Onde ides a correr, melancolias? 
- E, refratadas, longamente ondeando, 
As suas mãos translúcidas e frias…

MADALENA

...e lhe regou de lágrimas os pés e os enxugou com os cabelos da sua cabeça. 
Evangelho de S. Lucas. 

Ó Madalena, ó cabelos de rastos, 
Lírio poluído, branca flor inútil... 
Meu coração, velha moeda fútil, 
E sem relevo, os caracteres gastos, 

De resignar-se torpemente dúctil... 
Desespero, nudez de seios castos, 
Quem também fosse, ó cabelos de rastos, 
Ensanguentado, enxovalhado, inútil, 

Dentro do peito, abominável cômico! 
Morrer tranquilo, - o fastio da cama... 
Ó redenção do mármore anatômico, 

Amargura, nudez de seios castos!... 
Sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama, 
Ó Madalena, ó cabelos de rastos!

FONÓGRAFO

Vai declamando um cômico defunto. 
Uma plateia ri, perdidamente, 
Do bom jarreta... E há um odor no ambiente. 
A cripta e a pó, - do anacrônico assunto. 

Muda o registo, eis uma barcarola: 
Lírios, lírios, águas do rio, a lua... 
Ante o Seu corpo o sonho meu flutua 
Sobre um paul, - extática corola. 

Muda outra vez: gorjeios, estribilhos 
Dum clarim de oiro - o cheiro de junquilhos, 
Vívido e agro! - tocando a alvorada... 

Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas 
Quebrou-se agora orvalhada e velada. 
Primavera. Manhã. Que eflúvio de violetas!

SONETO

Desce em folhedos tenros a colina: 
- Em glaucos, frouxos tons adormecidos, 
Que saram, frescos, meus olhos ardidos, 
Nos quais a chama do furor declina... 

Oh vem, de branco, - do imo da folhagem! 
Os ramos, leve, a tua mão aparte. 
Oh vem! Meus olhos querem desposar-te, 
Refletir virgem a serena imagem. 

De silva doida uma haste esquiva. 
Quão delicada te osculou num dedo 
Com um aljôfar cor de rosa viva!... 

Ligeira a saia... Doce brisa impele-a... 
Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo! 
Alma de silfo, carne de camélia…

OLVIDO

Desce por fim sobre o meu coração 
O olvido. Irrevocável. Absoluto. 
Envolve-o grave como véu de luto. 
Podes, corpo, ir dormir no teu caixão. 

A fronte já sem rugas, distendidas 
As feições, na imortal serenidade, 
Dorme enfim sem desejo e sem saudade 
Das coisas não logradas ou perdidas. 

O barro que em quimera modelaste 
Quebrou-se-te nas mãos. Viça uma flor... 
Pões-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste... 

Ias andar, sempre fugia o chão, 
Até que desvairavas, do terror. 
Corria-te um suor, de inquietação…

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