domingo, 8 de julho de 2018

Augusto Gil (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol.3) IV


NOIVA
A João da Silva

«Anda a dor dissimulada
Mas ela dará seu fruto.»
Crisfal

«Vai ser pedida. Casa qualquer dia.»
     (Trecho duma carta)

Tive noticias hoje a teu respeito:
«Vai ser pedida. Casa qualquer dia».
E o coração tranquilo no meu peito
– Continuou a bater como batia...

Surpreso duma tal serenidade,
Todo eu, intimamente, me sondava:
Pois nem ciúme? Nem sequer saudade?!
– E nem ciúmes, nem saudade achava...

Saudades, não; que o teu amor antigo
Guardam-no as cinzas (neste coração)
Como em Pompeia aqueles grãos de trigo
Que após centenas d'annos deram pão...

Saudades! Mas de quê?! Pois não sei eu
A lei antiga como o próprio mundo
De que o prazer mal chega, já morreu,
E só a dor nas almas cava fundo?

Causei-te longas horas d'amargura,
Não consegues voltar a ser feliz;
A chaga que te abri não terá cura,
E se curar – lá fica a cicatriz.

Á luz dum juramento que traíste
Tu hás de ver-me toda a vida pois.
Ergueste-o a Deus num dia amargo e triste
E Deus casou-nos esse dia, aos dois...

Ciúmes também não, por te venderes.
Desgraçadinha! Antes te houvesses dado;
Não descerias tanto entre as mulheres,
Seria mais humano o teu pecado.

Porém, embora a tua falta aponte,
P'ra mim és a que foste (ou que eu supus);
O sol desaparece no horizonte
– E a gente vê-o ainda a dar-nos luz...

Pode a desgraça erguer em frente a mim
Altas montanhas d'elevados cumes.
O sol do amor doura-las-a, e assim,
Vendo-o tão alto, não terei ciúmes.

Ciúmes! - Ele - é que há de te-los, quando,
Em claras noites de luar silente,
Ouvir vibrar alguma voz, cantando
Os versos que te fiz devotamente.

Versos para te ungirem os ouvidos
E os lábios d'anêmica e de santa,
Tão pobres, tão ingênuos, tão sentidos,
Que o povo humilde os acolheu e os canta.

Então, se te olhar bem, logo adivinha...
Logo sombriamente se convence
De que a tua alma se fundiu na minha
– E apenas o teu corpo lhe pertence.

DE PROFUNDIS CLAMAVI AD TE DOMINE
À Léo

Ao charco mais escuso e mais imundo
Chega uma hora no correr do dia
Em que um raio de sol, claro e jocundo,
O visita, o alegra, o alumia;

Pois eu, nesta desgraça em que me afundo,
Nesta contínua e intérmina agonia,
Nem tenho uma hora só dessa alegria
Que chega ás coisas ínfimas do mundo!...

Deus meu, acaso a roda do destino
A movimentam vossas mãos leais
Num aceno impulsivo e repentino,

Sem que na cega turbulência a domem?!
Senhor! Não é um seixo o que esmagais;
Olhai que é – “o coração dum homem”!...

QUANDO AS ANDORINHAS PARTIAM...
A Cassianno Neves

Boca talhada em milagrosas linhas,
A luz aumenta com o seu falar.

Esta manhã um bando de andorinhas
Ia-se embora, atravessava o mar.

Chegou-lhes ás alturas, pela aragem,
Um adeus suave que ela lhes dissera,

– E suspenderam todas a viagem,
Julgando que voltara a primavera...

A PARÁBOLA DO PÚCARO D'ÁGUA

Acreditaram os românticos que a arte residia principalmente na disformidade. Se através das próprias dores descessem às profundas realidades da vida, teriam observado que... o viver do povo encerra em si uma poesia sagrada. Senti-la e mostra-la não é tarefa de maquinista; para tal, não é necessário juntar-lhe efeitos teatrais.

... O que é preciso é ter olhos para ver na sombra, na pequenez e na humildade, é um coração que auxilie a vista nestes recessos do lar, nestas sombras de Rembrandt.
(MICHELET. “O Povo”)

A Manuel Penteado

Buscava em algum assunto adrede
A versos que inculcassem novidade,
Quando uma intensa e irreprimível sede
Me fez voltar do sonho á realidade.

E pedi água (já se vê) que veio
Consoante é d'uso cá por entre o povo
Num púcaro de barro ingênuo e feio,
Servindo-lhe de salva um prato covo.

Bebi o liquido dum trago só;
E dito o «Deus te pague» habitual,
Subi de novo a escada de Jacó
No heroico intuito de escalar o ideal...

Mas o idealismo é como a névoa ondeante
Que os rios erguem pela madrugada;
O olhar distingue-a, quando está distante,
E da que nos rodeia – não vê nada...

De que serve afinal tentar a gente
Reter, dentro das mãos, fumo de palha,
Se aqui, aos nossos olhos, no existente,
Há tanta coisa que os atraia e valha?...

A água vinda neste vaso frágil
Que um ignorado artista modelou
Num gesto – já mecanizado e ágil -
Á força d'imitar o que encontrou,

É um assunto cheio de beleza,
Cheio de claro e alto ensinamento.
Assim na branda fala portuguesa
O desse eu, como o tenho em pensamento!...

A água é como a esp'rança
Que a tudo se sujeita...
Onde quer que se deita
Lá fica humildemente acomodada,
Seja a concha da mão duma criança,
Ou a taça lendária da balada...

Tanto sacia
Num vaso tirreno dos da antiga Roma
(Que um só valia
O rútilo ouro d'avaro banqueiro)
Como a que se toma
Na argila porosa,
Alegre trabalho dum simples oleiro...

E é
Até
Bem mais saborosa
No barro suarento
Deixado à janela,
Que num opulento
Copo lavrado
Que seja pertença de rica baixela
E sonho gentil, cinzel fantasista
Dalgum grande artista
Dos raros d'agora, ou do tempo afastado...

Bichos humanos, feras em pé,
Sede bondosos como a água o é...

No luzente alcantil da magnitude,
Ou no áspero declive da pobreza,
Nunca cerreis o espirito á virtude,
Nunca fecheis os olhos á beleza.
Que todo o coração,
Desde o sábio de gênio ao cavador,
Seja o Cálix de paz e de perdão
Contendo a água límpida e lustral
Dum irmanado e perpetuo amor...

Água que limpe a mácula do mal
E mitigue a miséria, a ânsia, a mágoa
Desta cruenta e impiedosa guerra
Em que tantas criaturas se consomem.

      Nem só da água
      Que vem da terra
      Tem sede o homem...

Nasce uma fonte
Rumorejante
Na encosta dum monte;

E mal que do seio
Da terra brotou,
Logo o seu veio
Transparente
E diligente
Buscou e achou
Mais baixo lugar...

E sempre descendo,
E sempre a cantar,
Vai andando,
Galgando,
Vencendo,
(Ou tenta vencer...)
Folha, raiz, areia, o que tolher
A sua descida...

Ao brotar da dura frágua
– É uma lágrima d'água...

Mas esse humilde fiozinho,
Que um destino bom impele,
Encontra pelo caminho
Um outro que é como ele...

Reúnem-se, fundem-se os dois,
Prosseguem de companhia,
E fica dupla depois
A força que os leva e guia...

Junta-se aos dois um terceiro,
Outros confluindo vão,
E o regato é já ribeiro
E o ribeiro é rio então...

E nada agora o domina
Ao fiozinho da fonte.
Entre colina e colina,
Ou entre um monte e outro monte,

Caminha sem descansar,
Circula através do mundo
– Até á beira do mar
Onipotente e profundo...

Da altura em que estejais (ou vos pareça;
A vaidade é uma amante enganadora)
Que o mais alto de vós se humilhe e desça
Como se humilde e pobre sempre fora...

E que os demais desçam também de todo
O orgulho e mando sobre escravas gentes
Até ao vale, de lágrimas e lodo
Onde a miséria brada e range os dentes.

E como as águas que se vão juntando
E juntas, e cantando, vão descendo,
Reuni o choro derramado, quando
Atravessardes esse vale horrendo.

E o atoleiro que se havia feito
No val, dantesco, pútrido, sombrio,
Mudar-se-ha no irrigante leito
Dum fertilizador e claro rio;

E o rio, andando, andando, há de alargar
– Com bilhões de lágrimas vertidas -
Num infinito e luminoso mar
De novas e amplas e cantantes vidas!

Fonte:
Augusto Gil. Luar de Janeiro. 
Lisboa/Portugal: A Lanterna, 1909

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