sábado, 28 de julho de 2018

Gonçalves Dias (Caldeirão Poético)


NÃO ME DEIXES!

Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
"Ai, não me deixes, não!

"Comigo fica ou leva-me contigo
"Dos mares à amplidão;
"Límpido ou turvo, te amarei constante;
"Mas não me deixes, não!"

E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
"Ai, não me deixes, não!"

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
"Ai, não me deixes, não!"

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
"Não me deixaste, não!”

OLHOS VERDES

Eles verdes são:
E têm por usança, 
na cor esperança, 
E nas obras não.
Cam. Rim.

São uns olhos verdes, verdes, 
Uns olhos de verde-mar, 
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança, 
Uns olhos por que morri;
Que ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como duas esmeraldas, 
Iguais na forma e na cor, 
Têm luz mais branda e mais forte, 
Diz uma — vida, outra — morte;
Uma — loucura, outra — amor.
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

São verdes da cor do prado, 
Exprimem qualquer paixão, 
Tão facilmente se inflamam, 
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do coração
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
depois que os vi!

São uns olhos verdes, verdes, 
Que podem também brilhar;
Não são de um verde embaçado, 
Mas verdes da cor do prado, 
Mas verdes da cor do mar.
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como se lê num espelho, 
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus;
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós, ó meus amigos, 
Se vos perguntam por mim, 
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos cor de esperança, 
De uns olhos verdes que vi!
Que ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós: Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes, 
uns olhos da cor do mar:
Eram verdes sem esp’rança,
Davam amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos, 
Que ai de mim!
Não pertenço mais à vida
Depois que os vi!

SOBRE O TÚMULO DE UM MENINO
25 de outubro de 1848.

O invólucro de um anjo aqui descansa, 
Alma do céu nascida entre amargores, 
Como flor entre espinhos! — tu, que passas,
Não perguntes quem foi. — Nuvem risonha
Que um instante correu no mar da vida;
Romper da aurora que não teve ocaso, 
Realidade no céu, na terra um sonho!
Fresca rosa nas ondas da existência, 
Levada à plaga eterna do infinito, 
Como of’renda de amor ao Deus que o rege;
Não perguntes quem foi, não chores: passa.

O QUE MAIS DÓI NA VIDA

I cannot but remember such things were,
And were most dear to me.
SHAKESPEARE

O que mais dói na vida não é ver-se
Mal pago um benefício,
Nem ouvir dura voz dos que nos devem
Agradecidos votos,
Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato,
Que as devera beijar!

Não! o que mais dói não é do mundo
A sangrenta calúnia,
Nem ver como s'infama a ação mais nobre,
Os motivos mais justos,
Nem como se deslustra o melhor feito,
A mais alta façanha!

Não! o que mais dói não é sentir-se
As mãos dum ente amado
Nos espasmos da morte resfriadas,
E os olhos que se turvam,
E os membros que entorpecem pouco e pouco,
E o rosto que descora!

Não! não é ouvir daqueles lábios,
Doces, tristes, compassivas,
Sobre o funéreo leito soluçadas
As palavras amigas,
Que tanto custa ouvir, que lembram tanto,
Que não s'esquecem nunca!

Não! não são as queixas amargadas
No triunfar da morte;
Que, se se apaga a luz da vida escassa,
Mais viva a luz rutila;
Luz da fé que não morre, luz que espanca
As trevas do sepulcro.

O que dói, mas de dor que não tem cura,
O que aflige, o que mata,
Mas de aflição cruel, de morte amara,
É morrermos em vida
No peito da mulher que idolatramos,
No coração do amigo!

Amizade e amor! — laço de flores,
Que prende um breve instante
O ligeiro batel à curva margem
De terra hospitaleira;
Com tanto amor se enastra, e tão depressa,
E tão fácil se rompe!

À mais ligeira ondulação dos mares,
Ao mais ligeiro sopro
Da viração — destrançam-se as grinaldas;
O baixel se afasta,
Veleja, foge, até que em plaga estranha
Naufragado soçobre!

Talvez permite Deus que tão depressa
Estes laços se rompam,
Por que nos pese o mundo, e os seus enganos
Mais sem custo deixemos:
Sem custo assim a brisa arrasta a planta,
Que jaz solta na terra!

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