sexta-feira, 13 de julho de 2018

J. G. de Araújo Jorge (Poemas Seletos) I


AS CHAVES
A Fernando Torquato Oliveira

Felizes os homens que tem as chaves
porque só encontram portas abertas...


Como podem tantos homens dormir sossegados e felizes
de portas fechadas,
quando essas portas se fecham para tantos homens
que ficam sempre ao relento
e nunca podem entrar?

Neste mundo de tantas portas,
quando teremos cada um, a sua chave,
e a sua hora de voltar?...

A BANDA

Meu verso será como a banda
tocará música para o povo.

Irá para o coreto da praça fazer retreta
passará pelas ruas com um carneirinho branco
- é a mascote -,
as mulheres virão de avental à janela,
os homens pararão o trabalho e atravessarão a rua,
e os garotos, - ah, os garotos! - acompanharão a banda.. .

Tocarei o Hino da Liberdade, tocarei a Marcha do Socialismo,
às vezes uma valsa - Danúbio Azul -
e a Protofonia do Guarani.

De qualquer forma todos me ouvirão:
estarei no coreto da praça - os instrumentos brilhando-
e os garotos me acompanharão pela rua
até o futuro.

Se preciso - se preciso - estarei à frente das tropas
abrindo passagem para a bandeira.

A FESTA TRISTE

Não, o Natal não é uma festa alegre,
é uma festa triste.

De repente
as crianças (logo as crianças!)
separam o mundo em duas metades
desiguais:
- de um lado, a abastança, indiferente ou piedosa;
do outro, a necessidade, a mendigar seus restos
como há milênios faz...

As crianças (logo as crianças!)
Algumas com presentes, brinquedos, esperanças,
e as puras alegrias que o bom Velhinho
lhes traz do céu;
outras, sem terem nada, e mesmo tendo pais,
são "órfãos do Natal",
não tem Papai Noel...

Não. Neste mundo como está,
(neste mundo profano
que a um olhar mais humano
não resiste),
o Natal pode ser uma festa,
(quem contesta?)
mas é uma festa triste…

A GELADEIRA

Os capitalistas, os donos do mundo
não conhecerão esta pura alegria.

Esperar a geladeira nova
e a geladeira nova chegar.

O caminhão que para, o vulto branco que desce,
o cuidado do homem rude que nunca a possuirá,
uma faísca de sol nos metais de fecho de abrir,
os meninos que param em roda do caminhão, assistindo,
e eu, de camarote, da sacada do apartamento
assistindo.

Os capitalistas não conhecerão esta pura alegria:
esperar a geladeira
a geladeira de sete pés, branca e iluminada
que afinal chegou.

Agora haverá coca-cola, crush, e água gelada pra visita
e pavê de chocolate, e quanta coisa gostosa
que o frio preservará com seu sopro imortal.

O dial da geladeira  não faz jorrar música
mas fala inglês: "defrost, fast, freese, box";

Gosto de abrir a geladeira, 
ela se acende toda quando eu a toco,
fica festiva, bela e alegre, 
na sua brancura imaculada
e nos seus metais rebrilhando.

Sinto o hálito frio que me envolve o rosto
me apanha as mãos,
e uma emoção primária de conforto me dissolve
quando ela se abre para mim, feliz e sortida
nas suas entranhas burguesas.

Esta pura alegria, esta higiênica alegria
não sentirão os capitalistas,
é privilégio dos que vem de baixo, 
escalando a vida como alpinistas,
para encontrar a neve e o frio das alturas
na sua geladeira branca e cheia de sol!

A MESMA HISTÓRIA... 

A história continua a mesma:
- um dia, um soldado (ou será civil?)
também não faz diferença,
baterá à tua porta,
estarás almoçando, ou estarás escrevendo,
estarás amando, ou apenas dormindo, não importa,
e te dirá que a pátria precisa de ti.

Ninguém perguntará tua opinião. Não tens escolha:
- tens que ir, assim farão todos,
senão a pátria dirá que és um desertor, (ou quem sabe? um covarde)
e todos acreditarão e todos te perseguirão.

Largaras tua mulher na cama, deixaras teus filhos na mesa;
abandonarás teu arado, a receberás uma linda metralhadora.
No lugar da cátedra, do laboratório, da oficina,
dirigirás um poderoso tanque ou um superbombardeiro;
deixaras a máquina de escrever, o tear, e pincel, o linotipo,
e levaras um fuzil;
saltaras de pára-quedas - as imensas    medusas do espaço, -
ou descarregarás bombas H sobre outras mulheres e outros filhos
pois teus olhos não distinguirão os seres humanas
das pedras do chão.

Não te perguntarão se tens pais, esposa ou filhos
que dependem de tua presença
se sobreviverão para esperar-te
nem mesmo te garantirão se ficarão protegidos.

Tambores, cornetas, hinos e ordens marciais
não te deixarão pensar:
reaprenderás a marchar
enquanto o medo te espreitará todas as horas,
e, quem sabe? te tornará um futuro candidato
a paciente de um hospital psiquiátrico.

A história continuará a mesma:
- um dia, o Governo se lembrará que existes,
e te mandará buscar onde estiveres:
e te dará instrução militar, farda vistosa, armas modernas,
galões nos ombros, medalhas, homenagens,
tudo de graça,
para morrer pela pátria.
....................

Ah, meu Deus,
quando chegará aquele dia, em que os Governos
se lembrarão de nos chamar
para viver pela pátria?

ALGUM SENTIDO

Não falo das torres altas, das torres engradeadas,
isolado nas alturas, olhando tudo distante,
sem a exuberância, sem os detalhes insignificantes
que são as grandezas trágicas da vida...

Não estou longe, não sou reflexo, não sou eco,
não sou um som perdido que ninguém sabe a origem...

Sou a boca que grita, a boca que pronuncia o som,
a mão que se eleva, não o gesto irreconhecível,
o coração que bateu, não a pulsação anônima,
a alma que luta, não o espírito que se acovardou
num canto introvertido...

Não falo do meu quarto fechado onde me tranquei a sete chaves
para não ouvir a algazarra dos tempos,
e a agitação das ruas,
nem receio descer os degraus que me levam à multidão
porque em verdade a nossa revolta não tem degraus!

Não temo as suas explosões porque seus estilhaços nunca me ferirão
nem atingirão nunca os que tiverem coragem de ser justos
e os que não se atropelam com a própria consciência...

Falo das ruas e das praças, estou perdido no meio da multidão,
não tenho medo porque eu sou ela e porque ela está em mim,
seu corpo fala pela minha voz na hora da compreensão
sinto a responsabilidade de falar em nome de seu destino...

Não me fechei na torre alta, isolado e indiferente,
meus pés estão no chão
sei que todas as torres altas, ante a avalanche dos tempos
se destruirão…

Fonte: 
J. G. de Araújo Jorge. O Poeta na Praça. 1981.

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