domingo, 8 de julho de 2018

Malba Tahan (O Sinal de Ramanita)

Há poucos anos, quando visitei Calcutá, tomei para guia, a fim de melhor conhecer as curiosidades religiosas da índia, um brâmane chamado Marichipa, que me fora indicado pelo gerente do Hotel Dakka.

Uma tarde, quando percorríamos o templo de Parvati, passou junto de nós, acompanhada de diversos turistas ingleses, uma mulher loura, elegantemente trajada, e que despertava a atenção de todos pelas linhas incomparáveis de sua formosura.

— Quem será essa encantadora estrangeira? — perguntei ao guia. — Dificilmente poderíamos encontrar, sob o céu da Ásia, criatura mais sedutora!

— É uma das hóspedes do Grande Hotel — explicou-me Marichipa. — Disseram-me que veio da América e que pretende chegar, numa excursão de automóvel, até Alahabad. É rica, muito destemida e percorre o mundo à procura de ídolos exóticos para uma coleção.

Ao meu espírito de muçulmano causou não pequena admiração aquela criatura maravilhosa que abandonava o conforto da civilização para vir caçar manipansos entre os adoradores do Ganges. Parecia-me impossível que se me deparasse outra vez na vida tão original colecionadora de ídolos.

— Por Allah! — exclamei, com entusiasmo. — Essa americana do Grande Hotel é a verdadeira perfeição.

Marichipa sorriu, exibindo os seus dentes amarelos.

— Verdadeira perfeição... — repetiu ele. — Só mesmo um cego ou um apaixonado deixará de notar que aquela mulher traz no rosto o sinal de Ramanita!

Fitei o guia hindu sem disfarçar o grande interesse que as suas palavras haviam despertado em mim. Já não era a primeira vez que me acontecia ouvir referir-se alguém ao sinal de Ramanita. Declarei-lhe, pois, que não hesitaria em gastar meia libra para ouvir uma explicação minuciosa a tal respeito.

O ouro torna eloquente o indivíduo mais tímido e acanhado. A meia libra prometida operou o milagre. O guia contou-me, numa linguagem obscura, cheia de realismos grosseiros uma interessante lenda que poderia ser intitulada “O Sinal de Ramanita”.

Vou tentar traduzi-la.

No país de Navayanta vivia uma jovem chamada Ramanita, que possuía as sete virtudes, os quinze atributos e era, além do mais, de boa casta e de origem nobre.

Os brâmanes disseram-lhe um dia: — Queres agradar ao incomparável Indra (1), deus do ar? Vem servir no templo. Poderás acompanhar pelas ruas as vacas sagradas e receber, nos dias de festas, as dádivas dos fiéis.

A formosa Ramanita não atendeu ao convite dos sacerdotes. Para servir no templo de Indra seria ela obrigada a renunciar ao amor do jovem  Deybek,  príncipe  do  Adjimir. E a menina, embora venerasse Shiva e temesse Indra, não se sentia com coragem para tão grande sacrifício. Na Índia é assim: a mulher apaixonada põe o seu amor acima dos próprios deuses!

— Verdadeira perfeição!... — repetia ele. — Só mesmo um cego ou um apaixonado deixará de notar que aquela mulher no rosto o sinal de Ramanita!

E os deuses hindus são poderosos; alguns há que possuem quatro e até oito braços!

Vivem no mundo — assim afirmam os adeptos de Indra — certos seres gigantescos e perversos chamados Rakshassas (2). E aconteceu que o pai de Ramanita caiu gravemente enfermo, ferido pela maldade sem limites de um desses demônios.

Os brâmanes procuraram novamente a jovem:

— Ó Ramanita! O teu velho pai sofre a influência dos espíritos maus! Queres salvá-lo? Já vimos um Deityas rondando tua casa com o rosto coberto com véu preto!

— Que devo fazer? — perguntou Ramanita.

— Bem sei que os Deityas são mensageiros da morte!

— Vem servir em nosso templo durante um ano — aconselharam os brâmanes. — Intercederemos junto a Indra por teu pai e, é certo, ele ficará, em consequência de nossas preces, são e salvo. Pelas quatro faces de Brama, ó Ramanita, salva teu pai!

As palavras dos sacerdotes calaram fundo no coração da jovem. O apelo feito — pelas faces do Grande Deus — não foi em vão e Ramanita resolveu servir ao templo durante um ano e assim o fazia somente para livrar seu pai das garras impiedosas dos Rakshassas.

Como esquecer, porém, durante tão largo período, aquele que era o seu único amor?

E uma noite, quando Ramanita, já presa no templo, fiel à sua palavra, lamentava o seu triste destino, viu surgir na sua frente a figura deslumbrante de Laidasa, que é uma das muitas ninfas, — denominadas apsaras — que habitam o céu de Indra.

— Por que choras. Ramanita? — perguntou, com voz carinhosa, Laidasa. — Aqui estou, por ordem de Indra, para auxiliar-te. Dize, pois, o que desejas. Tudo farei para servir-te.

— Tenho saudades de meu noivo — soluçou Ramanita. — E, além dessa saudade vive dentro de mim um ciúme torturante. Assalta-me o receio de que as mulheres, durante a minha ausência roubem o coração daquele que será meu esposo.

 — Que queres que eu faça? — perguntou a ninfa.

    — Bondosa apsara — acudiu a jovem apaixonada. — sei que és dotada, como todos os gênios que pertencem ao paraíso de Indra, de um poder extraordinário. Só poderei permanecer tranquila neste templo se for atendida no pedido que te vou fazer. Não quero que apareça no mundo, enquanto eu estiver afastada do meu noivo, mulher alguma que seja dotada de uma beleza impecável. Deixarás, bem visível, em todas as mulheres, por mais formosas que sejam, um traço qualquer de imperfeição.

— Assim farei, minha filha — respondeu a enviada celeste. — Conserva em paz o teu coração, pois enquanto estiveres presa ao serviço de Indra, não aparecerá no mundo mulher alguma que possa dizer como Ramanita: “A minha formosura é impecável!”

E tendo pronunciado tais palavras, Laidasa desapareceu.

Alguns meses depois soube Ramanita que o príncipe Deybek havia perecido nas garras de um tigre, durante uma caçada.

A infeliz serva do templo não resistiu a esse golpe da fatalidade.

E quando ela morreu, o seu corpo adorável, conduzido pelos sacerdotes, foi atirado ao Ganges.

Desaparecia com Ramanita, nas ondas do rio sagrado, a última mulher perfeita do mundo.

E sabe por quê?

Porque o deus Indra, fiel à sua promessa, continuou a imprimir em todas as mulheres, por mais formosas que pretendam ser, um traço qualquer de imperfeição. Uma tem os olhos excessivamente pequenos; outras apresentam as faces descoradas; uma terceira não sabe disfarçar o nariz defeituoso. Esta tem o queixo saliente; envergonha-se aquela da pele toda manchada. Queixa-se uma da boca demasiadamente grande; lamenta a outra a pequenez ridícula do colo. Se algumas são baixas demais, outras há exageradamente altas. Vesga é uma; parece-nos gagá a outra. Uma é formosa e não tem caráter: outra e linda, mas estúpida e pouco inteligente. Ali encontramos uma que é deslumbrante, mas tem o grave defeito de ser fria e inexpressiva: acolá surge-nos outra que é interessante, cheia de encantos, mas é pérfida e desonesta. Todas têm, enfim, no corpo, ou resvalando para o espírito, o infalível sinal de Ramanita.

Quando o guia terminava a sua curiosa narrativa, passou novamente pelo lugar em que nos achávamos a sedutora americana do Grande Hotel — a original aventureira que caçava ídolos pela índia.

Olhei atentamente para o rosto da linda excursionista e reparei que ela tinha, realmente, sobre a face direita, uma pequena mancha escura que descendo do nariz vinha formar uma curva sinuosa junto ao lábio.

Era, com certeza, o sinal de Ramanita, — o sinal terrível que toma mil formas, um milhão de aspectos, mas que, felizmente para as mulheres, os homens apaixonados nunca chegarão a ver.
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NOTAS
1- Indra — Um dos deuses da mitologia hindu. Vide nota 3 incluída no conto “Minha vida querida”.

2 - Rakshassas — São gênios que só se preocupam com o mal que podem fazer aos mortais. São tidos, por isso, como verdadeiros demônios.

Fonte: 
Malba Tahan. Minha vida querida.

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