terça-feira, 17 de julho de 2018

Alexei Bueno Finato (Poemas Avulsos)


DE TANTO VER

De tanto ver o que se perde e ser assim
O meu olhar é o se lembrar seco de um lago
Onde este quarto e este meu ser afundo e apago
No haver dos mortos feitos tela e próprio fim.

E o vento leva em meu armário o que há de mim,
O que nas roupas do que é morto sou um vago
Rosto de bronze que vomita um mar aziago
No qual me esqueço de onde vou pelo que vim.

Taça de vinho sem o vinho e sem a taça,
Segunda sombra que não vibra mas me vela
Quando em memória até o haver de hoje se passa...

E como um louco lembro ser o que é agora
Igual aos mortos recordando-me na tela
Em seu silêncio que é o meu Deus e a nossa hora.

LEVANTO-ME EM MEU QUARTO

Levanto-me em meu quarto, escuto as teias
Soprando, e abro a janela num impulso...
Lá embaixo a lua estranha toma o pulso
Do lago que tem febre em suas veias...

O vento então abraça-me as candeias,
E as chamas a chorar um choro insulso
Transformam-me as paredes num convulso
Festim de mais de mil sombras alheias.

Jamais eu fui tão só! Em torno a mim
Vultos riem e bebem, mas nas águas
Cabelos vão ao fundo, e tudo rui!

Barcos choram rondando o próprio fim.
Oh! lua! Oh! meu festim de tantas mágoas!
Ah! sombras dos luzeiros que eu não fui!

O MAGO

Eu amo os bosques e as ruínas e os conventos
E toda parte onde o mistério nos destrua,
Pois nada vale ir decifrar com gestos lentos
A mão sem causa que fez tudo e a tudo estua.

Era impossível que algo houvesse, e tais tormentos
Vêm de ainda assim este algo haver, enquanto a lua
Que por verdade não nascera assopra os ventos
Aos nossos olhos também falsos desta rua.

Oh! alamedas, catedrais, sombras pendentes,
Por ser sem fruto ainda buscar nos entregamos
De uma só vez a este mistério que encarnamos,

Numa volúpia de esquecer, da noite ausentes,
Como o mendigo que sem forças para a sorte
Se entrega inteiro à sua garrafa e à sua morte!

ORGULHO

De entre essas tantas faces cruas
Que nunca viste e nem te viram,
Desses pés todos que feriram
Num sonho oculto as pedras tuas,

Dessas mil mãos que à luz das luas
Atrás de alguém por ti seguiram
E em ti com outras mãos fremiram
Por sob os magros tetos, nuas,

Desses milhões de olhos sem brilho
Apenas eu, teu mais vil filho,
Fui quem te ergueu, Cidade informe,

Porque és em mim, enquanto afundas
Junto às legiões de que te inundas,
Morta, vivente, eterna, enorme!

O VENTO E AS ERVAS

O vento e as ervas que não sonham nunca,
Que há anos se encontram, mas não se conhecem;
O vento e as ervas que jamais se esquecem
Pois nem recordam do que o chão se junca;

O vento e as ervas que há um milênio tecem
Em se enfrentando uma imutável voz
Sem nunca ouvi-la, e que dão medo aos pós
Com gestos vãos que nem lhes obedecem,

A eles pertence a glória e o reino eterno
Pois não são nada, e nada dói ao nada,
Nem vão tão longe as maldições do inferno...

Rindo entre os gritos, se enforcando ao chão
Como bufões cuja alma foi roubada...
O vento e as ervas permanecerão.

POBRES PORTAS

Pobres portas negras das carpintarias
Recendendo a cedro... portas das quitandas
Pondo sacos sujos no ar entre as lavandas
Que sobem das portas das perfumarias...

Cheiros a sangrar tão cedo quanto os dias
Das portas dos talhos, a alma das viandas,
Perfumes de pães se erguendo em nuvens brandas
Lácteas quais lençóis, portas das leiterias

Com o odor da aurora, portas dos bazares
A barbante e a pano, dedos dos manjares
Nas portas de pasto, anônimas fragrâncias

De outro mundo e mofo a vir dos antiquários,
Portas do além, velas, cera, e sob os vários
Umbrais, o ar do porto, a porta das distâncias!

QUANDO A MANHÃ

Quando a manhã traspassa os ventres dos vitrais
Reis e rainhas de ninguém, sangrando as bocas,
Lembram com sede das suas taças... sons, cristais...
Onde o vazio é hoje o licor das cortes ocas.

Mas estas que ardem num museu, nem sabem mais
Dos seus senhores que não são, mas que usam toucas,
Pois, vinho ou vida, o nada é um só, a estranha paz
Que causa espanto nos cadáveres das loucas.

Ah! condenados a fingir... quando anoitece
Vítrea e menor uma outra morte apaga a dor
Dos seus semblantes de detrás, nunca esquecidos...

As mesmas faces onde um ódio enorme cresce
Se sopra alguma tempestade, e têm no alvor
Débeis sorrisos sem depois, desiludidos.

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