quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Malba Tahan (A Filha do Muezim)

Lenda árabe

Conta-se que o famoso califa Al-Mamum chamou um dia o seu grão-vizir, o fiel e bondoso Abdel-Terik, e lhe disse:

    — Quero casar amanhã com uma jovem muçulmana de espírito esclarecido e notável talento. Encarrego-te, meu caro vizir, de ir aos mais suntuosos palácios, como às mais humildes choupanas procurar a moça que pelos seus dotes intelectuais possa superar todas as suas companheiras!

    — Escuto-vos e obedeço-vos! — respondeu o vizir, inclinando-se respeitoso.

    E nesse dia, ao cair da tarde, quando o pacato vizir regressava, como de costume, a casa, causava-lhe sérias apreensões o delicado encargo que lhe dera o sultão.

    Como iria ele descobrir, entre tantas jovens de seu pais, a mais viva e inteligente! Como escolher, afinal, com segurança e acerto, uma esposa digna do Emir dos Crentes?

    Caminhava o velho Abdel-Terik tão preocupado e absorto em seus pensamentos, que não deu atenção a um viajante desconhecido que lhe vinha ao lado.

    Em meio do caminho avistou um homem a colher trigo no campo.

    O desconhecido, que se conservava sempre ao lado do vizir, deixando o mutismo em que até então estivera, observou, em voz alta:

    — Ai está um bom camponês a enfeixar o seu trigo! Queira Allah que ele já não tenha comido todo o trigo que está agora colhendo!

    Abdel-Terik voltou-se para o seu companheiro de jornada e fitou-o, cheio de espanto. Aquela observação inesperada e absurda era de fazer rir o árabe mais ingênuo do Islã. Como poderia um homem comer o trigo antes da colheita?

    — É um insensato — pensou o vizir desconfiado. — O melhor que faço é não lhe dar resposta nem atenção.

    Momentos depois encontraram um cortejo fúnebre que se dirigia ao cemitério muçulmano.

    A frente vários homens conduziam, em silêncio, um caixão mortuário. Três mulheres — que pareciam viúvas — choravam, cheias de desespero.

    Novamente o desconhecido observou, em voz alta, com a maior naturalidade:

    — Ali vai um enterro pelo caminho de Allah! Quem sabe se aquele morto não estará ainda vivo entre nós?

    Aquela segunda observação causou ao grão-vizir não menor surpresa. Só mesmo um louco poderia formular ideia tão absurda!

    — Não resta dúvida — refletiu o digno ministro. — Este infeliz que vem comigo é um demente, um pobre desequilibrado. Estou certo de que um homem, em seu juízo perfeito, seria incapaz de formular tão desconchavada tolice!

    Depois de caminharem ainda algum tempo juntos, chegaram os dois viajantes a uma encruzilhada.

    Voltou-se o desconhecido para o grão-vizir e disse-lhe:

    — Antes que nos separemos devo dizer-vos, meu amigo, que poderíamos ter vindo pelo mesmo caminho, gasto o mesmo tempo, andado do mesmo modo, fazendo, porém, uma viagem mais curta!

     E sem mais palavra, afastou-se lentamente, deixando o grão-vizir mergulhado em profundo pasmo.

     Dias depois, com grande pompa, realizou-se o casamento da jovem Nadima...

   — Infeliz! — murmurou o bom do ministro, sinceramente penalizado. — Desafortunado filho de Adão! Esta última observação veio provar, bem claramente, que és um louco! Como seria possível, vindo pelo mesmo caminho, andando do mesmo modo, gastando o mesmo tempo, fazer uma viagem mais curta? É positivamente uma parvorice!

    Ao chegar a casa contou o grão-vizir à esposa o que lhe ocorrera em caminho, repetindo-lhe as três observações do seu original companheiro de jornada.

    Mal terminara o grão-vizir a sua narrativa, ouviu-se no aposento contíguo, alegre e viva risada feminina.

    — Quem está aí? — perguntou, intrigado, o ministro.

    — É uma pobre rapariga chamada Nadima — respondeu a esposa. — É a filha do muezim (1), veio hoje, casualmente, à nossa casa oferecer-me alguns trabalhos e bordados que pretende vender.

    — Quero falar a essa jovem — replicou o grão-vizir.

    Atendendo a esse chamado, surgiu a moça com o rosto coberto por espesso véu.

    — Minha filha — disse-lhe, carinhoso, o grão-vizir — por que motivo achaste tanta graça no caso extravagante que acabei de contar?

    — Allah que vos conserve, ó vizir! — replicou a jovem com humildade e respeito. — Notei (perdoai a minha audácia!) que muito vos iludistes, julgando louco o original muçulmano que foi vosso companheiro de viagem!

    — Como assim? Não reparaste nas observações descabidas que ele fez?

    — Reparai, sim, ó cheique venerável! — continuou Nadima com calma e modéstia. — A meu ver o vosso companheiro de jornada é um homem judicioso e de grande talento!

As três observações feitas revelam claramente uma inteligência invejável, um raciocínio claro e um juízo equilibrado e perfeito!

    E sem dar atenção ao grande espanto que invadia completamente a fisionomia do grão-vizir, a jovem assim falou:

    — A primeira observação: “Queira Allah que ele já não tenha comido o trigo que está colhendo!”, significa que podia acontecer já ter o camponês vendido antecipadamente a colheita e gasto o dinheiro assim obtido. Teria, portanto, comido o trigo que estava colhendo. Quanto à segundo observação, explica-se ainda mais facilmente. Ao dizer ele: “Quem sabe se aquele morto não está vivo ainda entre nós?”, quis significar que muitas vezes uma pessoa, pelas obras notáveis que deixa, continua, mesmo depois de morta, na recordação e no pensamento de todos, como se na verdade estivesse entre nós!

    — E a terceira observação? — interrogou o ministro. — Não vejo como justificar tão desarrazoada ideia.

    — É muito fácil — acrescentou, com um encantador sorriso, a filha do muezim. — Que disse o desconhecido ao chegar à encruzilhada? Que a viagem poderia ser mais curta, muito embora fosse feita durante o mesmo tempo, do mesmo modo e pelo mesmo caminho! E isso teria, realmente acontecido, se tivessem tido a felicidade de encontrar um terceiro companheiro que fosse capaz, em agradável palestra, de contar histórias e lendas maravilhosas que os distraíssem durante a jornada, suavizando-a!

Ao ouvir tão hábil e sensata explicação, exclamou o grão-vizir:

— Allah seja louvado! Encontrei na pessoa desta jovem a esposa ideal para o grande e generoso califa Al-Mamum, nosso amo e senhor!

Dias depois, com grande pompa, realizou-se o casamento da jovem Nadima, filha do muezim, com o poderoso Abdala III — Al-Mamum — Emir dos Crentes, califa de Bagdá e senhor do grande império muçulmano!
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Nota:
1- Muezim — Pregoeiro. O muezim chama do alto das almenaras (minaretes) os fiéis à oração. Os muezins, em geral são cegos.

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

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