quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Faustino da Fonseca Júnior (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol.4) IV


EM VIAGEM

Noite de lua cheia, pura brisa
Agita caprichosamente o mar
Onde o navio rápido desliza,

Dentro da superfície circular
Formada pelas aguas buliçosas
Que a abobada celeste vem tapar.

As nuvens, em manadas caprichosas,
O vapor desafiam na carreira,
Passando em turbilhões vertiginosas.

Defendendo o navio, precavida,
As aguas vão tingir de rubra cor,
A lanterna vermelha, suspendida,

E faz correr do flanco do vapor
Um jato cor de sangue, qual baleia,
Ferida pela mão do trancador.

A proa corta a vaga que volteia.
Há um arfar gigantesco, convulsivo,
D'um imenso coração que bate e anseia.

E d'aquelle organismo, forte, vivo,
Saem soluços de estridor medonho,
Saem rugidos d'um toar altivo.

Esse gigante que se ri do oceano
É criação, quase milagre, sonho,
D'outro gigante, o pensamento humano!

LIRISMO

Quisera possuir a lira harmoniosa
Dos vates geniais, dos reis da poesia
De Camões ou do Tasso, o Dante ou Cimaros
A bela inspiração a doce melodia.

Para te descrever em rima caprichosa
O meu amor sem fim, ir com a moda queria,
Dedicar-te um poema e chamar-te formosa
Tratar-te por “Marília” em vez do teu “Maria”.

Mas os versos por mais que faça vão errados,
Não soam nunca bem e fogem á medida,
E por isso não quero estar com mais cuidados.

Gosto muito de ti, bem o sabes querida.
Mas não posso imitar os outros namorados
Piegas que em idílio arrastam toda a vida.

MINIATURA

O céu puro e sereno,
O mar auri-fulgente,
O ar tépido, ameno,
O campo sorridente,

A rama do arvoredo,
A frança dos salgueiros,
A voz do fraguedo,
Que límpidos ribeiros!

Ao fundo entre a folhagem
Beijada pela aragem
Risonha reclinada

Estavas tu, Elvira.
Eu empunhando a lira
Cantei a minha amada.

DESCRENÇA

Trabalho. E cada dia que decorre
Vem trazer-me maior desilusão.
É mais uma esperança que me morre,
É mais um fundo golpe ao coração.

E acreditava, louco, no direito!
E cria, visionário, na honradez!
Inda abrigava puras no meu peito
Ilusões que este pântano desfez!

A ganância, a ambição, a intriga vil,
Como sapos e rãs n'um lodaçal,
Asquerosos, vão tudo macular.

Vence o ladrão, o néscio, o imbecil
Oh! Quem tivesse o rir de Juvenal,
Um raio pr'a orgia fulminar!

LUAR

Como é linda esta noite de luar!
Nos raios de fulgor fosforescente
Vejo recordações do teu olhar!

Fico então a cismar. Mas de repente
Uma nuvem pesada, vagarosa,
Lembra-me de que estás saudosamente

Tanto longe de mim! E pesarosa
Fica minha alma a contemplar o céu
Enamorada, crente e desditosa.

E contudo diviso um sorrir teu
No puro azul d'estrelas cintilante
Onde vagueia o pensamento meu!

Tudo consola um coração amante.
A crença de que estás também fitando
O lindo céu de mundos fulgurante,

O nosso puro amor idealizando,
Isso me basta ao coração amante,
E me vai a saudade mitigando!

Fonte:
Faustino da Fonseca Júnior. Lyra da mocidade Primeiros versos. 
Angra do Heroismo/Portugal, 1892

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