André o escutava, sem dar uma palavra, mas patenteando no rosto enorme interesse pelo que ouvia.
Era a primeira vez que se achava assim, em comunicação amistosa com um seu semelhante; era a primeira vez que alguém o escolhia para confidente, para íntimo. E sua alma teve com a surpresa deste fato o mesmo gozo de impressões que experimentara ainda há pouco o seu paladar com os saborosos doces até aí desconhecidos para ele.
E o Coruja, a quem nada parecia impressionar, começou a sentir afeição por aquele rapaz, que era a mais perfeita antítese do seu gênio e da sua pessoa.
Quando Salustiano veio abrir-lhes a porta à hora do jantar, encontrou Teobaldo de pé, a discursar em voz alta, a gesticular vivamente, defronte do outro que, estendido na cadeira, toscanejava meio tonto.
— Então? Exclamou o homem das barbas longas. — Que significa isto?
— Isto quê, ó meu cara de quebra-nozes? Interrogou Teobaldo soltando-lhe uma palmada na barriga.
— Menino! Repreendeu o homem; não quero que me falte ao respeito!
— E um pouco de Madeira, não queres também?
— O senhor bem sabe que aqui no colégio é proibido aos alunos receberem vinho.
— Para os outros, não duvido! Eu hei de receber sempre, se não digo ao velho que não empreste mais um vintém ao diretor.
— Não fale assim... O senhor não se deve meter nesses negócios.
— Sim, mas em vez de estares aí a mastigar em seco e a lamber os beiços, é melhor que mastigues um pouco de requeijão com aquele doce.
— Muito obrigado.
— Não tem muito obrigado. Coma!
E Teobaldo, com sua própria mão, meteu-lhe um doce na boca.
— Você é o diabo! Considerou Salustiano, já sem nenhum sinal de austeridade. E, erguendo a garrafa à altura dos olhos: — Pois os senhores dois beberam mais de meia garrafa de vinho?!.
André ao ouvir isto, começou a rir a bandeiras despregadas, o que fazia talvez pela vez primeira em sua vida. Pelo menos, o fato era tão estranho que tanto Salustiano como Teobaldo caíram também na gargalhada.
— E não é que estão ambos no gole?... Disse homem, a cheirar a boca da garrafa e, sem lhe resistir ao bom cheiro, despejou na própria o vinho que restava.
— Que tal a pinga? Perguntou Teobaldo.
— É pena ser tão mal empregada... Responde o barbadão a rir.
— Este Salustiano é um bom tipo! Observou o menino, enchendo as algibeiras de frutas e doces.
— Ora, quando o diretor não pode com o senhor eu é que hei de poder...
E, querendo fazer-se sério de novo:
— Vamos! Vamos! Aviem-se, que está tocando a sineta pela segunda vez!
— Não vou à mesa, respondeu Teobaldo — daqui vou para o jardim; diga ao doutor que estamos indispostos.
E, voltando-se para o Coruja.
— Oh! André! Toma conta de tudo isso e vamos lá para baixo ouvir a flauta do Caixa-d’óculos.
Desde então os dois meninos fizeram-se amigos.
Foi justamente a grande distância, o contraste, que os separava, que os uniu um ao outro.
As extremidades tocavam-se.
Teobaldo era detestado pelos colegas por ser muito desensofrido e petulante; o outro por ser muito casmurro e concentrado. O esquisitão e o travesso tinham, pois, esse ponto de contato — o isolamento. Achavam--se no mesmo ponto de abandono, viram-se companheiros de solidão, e é natural que se compreendessem e que se tornassem afinal amigos inseparáveis.
Uma vez reunidos, completavam-se perfeitamente. Cada um dispunha daquilo que faltava no outro; Teobaldo tinha a compreensão fácil, a inteligência pronta; Coruja o método, e a perseverança no estudo; um era rico; o outro econômico; um era bonito,
débil e atrevido; o outro feio, prudente e forte. Ligados, possuiriam tudo. E, com o correr do ano, por tal forma se foram estreitando entre os dois os laços da confiança e da amizade, que afinal nenhum deles nada fazia sem consultar o camarada. Estudavam juntos e juntos se assentavam nas aulas e à mesa.
Por fim, era já o André quem se encarregava de estudar pelo Teobaldo; era quem resolvia os problemas algébricos que lhe passavam os professores; era quem lhe arranjava os temas de latim e o único que se dava à maçada de procurar significados no dicionário Em compensação o outro, a quem faltava paciência para tudo isso, punha os seus livros, a sua vivacidade intelectual à disposição do amigo, e dividia com este os presentes e até o dinheiro enviado pela família, sem contar as regalias que a sua amizade proporcionava ao Coruja, fazendo-o participar da ilimitada consideração que lhe rendia todo o pessoal do colégio, desde o diretor ao cozinheiro.
De todas as gentilezas de Teobaldo, a que então mais impressionara ao amigo foi o presente de uma flauta e de um tratado de música, que lhe fez aquele volta de um passeio com o diretor do colégio. Coruja trabalhava à sua mesa de estudo quando o outro entrou da rua.
— Trago-te isto, disse-lhe Teobaldo apresentando-lhe os objetos que comprara.
— Uma flauta! Balbuciou André no auge da comoção. — Uma flauta!
— Vê se está a teu gosto.
Coruja ergueu-se da cadeira, tomou nas mão instrumento, e experimentou-lhe o sopro, e ficou tão satisfeito com o presente do amigo que não encontrou uma só palavra para lho agradecer.
— Que fazias tu? Perguntou-lhe Teobaldo.
Mas correu logo os olhos pelo trabalho que estava sobre a mesa e acrescentou:
— Ah! É ainda o tal catálogo!
— É exato.
— Gabo-te a paciência! Não seria eu!
E, tomando a bocejar uma das folhas escritas o outro tinha defronte de si.
— Isto vem a ser?...
— Isto é a numeração das obras, respondeu André.
— Ah! Vai numerá-las...
— Vou. Para facilitar.
— E isto aqui? [interrogou Teobaldo, tomando outra folha de pape].
— Isto é uma lista dos títulos das obras.
— E isto?
— O nome dos autores.
— Depois reúnes tudo?
— Reuno.
— Melhor seria fazer tudo de uma mais prático. Assim, não é tão cedo que te verás livre dessa maçada!
— Há de ficar pronto.
Mas estava escrito que o célebre catálogo não teria de ficar acabado nas férias deste ano. Urna circunstância extraordinária veio alterar completamente os planos do autor.
Logo ao entrar das férias, o pai de Teobaldo apresentou-se no colégio para ir em pessoa buscar o filho.
Entrou desembaraçadamente a gritar pelo rapaz desde a porta da rua.
— Ah! É V. Exa. exclamou o diretor com espalhafato, logo que o viu. E correu a tornar-lhe o chapéu e a bengala.
— Bela surpresa! Bela surpresa, Sr. Barão! Tenha a bondade de entrar para o escritório!
— Vim buscar o rapaz. Como vai ele?
— Muito bem, muito bem.! Vou chamá-lo no mesmo instante. Tenha a bondade V. Exa. de esperar alguns segundos.
E, como se a solicitude lhe dera sebo às canelas, o Dr. Mosquito desapareceu mais ligeiro que um rato. O Sr. Barão do Palmar, Emílio Henrique de Albuquerque, era ainda nos seus cinqüenta e tantos anos uma bela figura de homem. A vida acidentada e revessa, a que o condenara sempre o seu espírito irrequieto e turbulento não conseguira alterar-lhe em nada o bom humor e as gentilezas cavalheirescas de sua alma romântica e afidalgada. Como brasileiro, ele representava um produto legítimo da época em que veio ao mundo.
Nascera em Minas, quando ferviam já os prelúdios da independência, e seu pai, um fidalgo português dos que emigraram para o Brasil em companhia do Príncipe Regente e de cujas mãos se passara depois para o serviço de D. Pedro I, dera-lhe por mãe uma formosa cabocla paraense, com quem se havia casado e de quem não tivera outro filho senão esse.
De tais elementos, tão antagônicos, formou-se-lhe aquele, caráter híbrido e singular, aristocrata e rude a um tempo, porque nas veias de Emílio de Albuquerque tanto corria o refinado sangue da nobreza, como o sangue bárbaro dos tapuias. Crescera entre os sobressaltos políticos do começo do século, ouvindo roncar em torno do berço a tempestade revolucionaria, que havia de mais tarde lhe arrebatar a família, os amigos e as primeiras e mais belas ilusões políticas. Desde muito cedo destinado às armas, matriculou-se na Escola Militar, fez parte da famosa guarda de honra do primeiro Imperador, e, com a proteção deste e mais a natural vivacidade do seu temperamento mestiço, chegou rapidamente ao posto de capitão.
Teve, porém, de interromper os estudos para fazer a lamentável guerra de Cisplatina, donde voltou seis meses depois, sem nenhuma dar ilusões com que partira, nem encontrar os pais e amigos, que sucumbiram na sua ausência, e nem mais sentir palpitar-lhe no coração o primitivo entusiasmo pelos defensores legais da integridade nacional. Orfanato, pois, ao vinte e dois anos, senhor de uma herança como bem poucos de tal procedência apanhavam nessas épocas, pediu baixa do Exército e levantou o vôo para a Europa, fazendo-se acompanhar por um criado que fora de seu pai, o Caetano, aquele mesmo criado que, trinta e tantos anos depois, apareceu no colégio do Dr. Mosquito vestido de libré cor de rapé, com botões amarelos.
Ah! Se esse velho quisesse contar as estroinices que fez o querido amo pelas paragens européias que percorreu! Se quisesse dizer quantas vezes não expôs a pele para livrá-lo em situações bem críticas! Quantas vezes por causa de alguma aventura amorosa ou por alguma simples questão de rua ou de café não voltaram os dois, amo e criado, para o hotel com o corpo moído de pauladas e os punhos cansados de esbordoar!
Durante essas viagens levaram eles a vida mais aventurosa e extravagante que é possível imaginar; só voltaram para o Brasil no período da regência, depois da abdicação do Sr. D. Pedro I, por quem o rapaz não morria de amores. Tornando à província, Emílio, talvez na intenção de refazer os seus bens já minguados, casou-se, a despeito da oposição do Caetano, com uma rapariga de Malabar, filha natural de um negociante português que comerciava diretamente com a Índia.
Atirou-se então a especular no comércio, mas o seu temperamento não lhe permitia demorar-se por muito tempo no mesmo objeto e, achando-se viúvo pouco depois de casado, lançou as vistas para Diamantina, que nessa ocasião atraía os ambiciosos, e lá se foi ele,. sempre acompanhado pelo Caetano, explorar o diamante. Tão depressa o viram em 1835 na Diamantina como em 1842 em Santa Luzia na revolução ao dos liberais mineiros, lutando contra a célebre reação conservadora manifestada pela lei de 3 de Dezembro.
A galhardia e valor com que se houve nessas conjunturas valeu-lhe a estima de Teófilo Otoni e outros importantes chefes do seu partido. Dessa estima e mais dos bens particulares que então gastou na política foi que se originou o título, com que mais tarde o agraciaram. A sua atitude política, a sua riqueza e os seus dotes naturais haviam-lhe já conquistado na corte as melhores relações deste tempo.
Uma vez, por ocasião de trazer para aí uma excelente partida de diamantes, travou conhecimento com um importante fazendeiro de café, em cuja fazenda se hospedou por acaso. Esse homem, mineiro da gema, era no lugar a principal influência do partido conservador e, sem dúvida, um dos que primeiro explorou a famosa Mata do Rio, que então começava a cobrir-se de novas plantações. O fazendeiro tinha uma filha e Emílio cobiçou-a para casar. Mas o encascado político, descendente talvez dos antigos emboabas que avassalaram o centro de Minas, não cedeu ao primeiro ataque, e Emílio teve de lançar mão de todos os recursos insinuativos da sua raça para conseguir captar a confiança do pai e o coração da filha. Quando lá tornou segunda vez, deixou o casamento ajustado.
Então foi ainda a Diamantina liquidar os seus negócios e, voltando à Mata, recebeu por esposa a mulher que, mal sabia ele, estava destinada a ser a mais suave consolação e o melhor apoio do resto de sua vida. Foi desse enlace que nasceu Teobaldo, logo um ano depois do casamento. Emílio só reapareceu na corte em 1847, onde os seus correligionários, então no poder, o agraciaram com o titulo de Barão do Palmar; mas voltou logo para Minas e tratou de estabelecer com os seus capitais uma fazenda na vizinhança da do sogro, que acabava de falecer.
Foi esse o melhor tempo de sua vida, o mais tranqüilo e o mais feliz. Só depois de casado, Emílio pode avaliar e compreender deveras a mulher com quem se unira; só depois de casado descobriu os tesouros de virtude que ela lhe trouxe pura casa, escondidos no coração.
Laura, assim se chamava a boa esposa, era um destes anjos, criados para a boa segurança do lar doméstico; uma dessas criaturas que nascem para fazer a felicidade dos que a cercam. Em casa, senhores chamavam-lhe "Santa". E este doce tratamento conduzia com os seus atos e com a sua figura.
— Esta, sim! Exclamava o Caetano, entusiasmado Esta, sim, é uma esposa de conta, peso e medida!
Pouco a pouco, Emílio fui amando a mulher, ao ponto de chegar a estremecê-la, o que até aí lhe parecia impossível.
No meio de toda essa felicidade, Teobaldo deu os seus primeiros passos pela mão do pai, da Santa e do fiel Caetano, que já o adorava tanto como os outros. O pequeno era o mimo do casa; era o cuidado, o enlevo, a preocupação de quantos o viam crescer.
Com que sacrifício não consentiu, pois, o Barão do Palmar que o filho, daí a seis anos, seguisse sozinho para um colégio de Londres, donde havia de passar a Coimbra.
Mas assim era necessário, porque Emílio, então comprometido no tráfico dos negros africanos, viu-se atrozmente perseguido por Euzébio de Queiroz, terror dos negreiros e seu inimigo político.
Eis aí quem era e donde vinha o pai de Teobaldo.
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continua…
Era a primeira vez que se achava assim, em comunicação amistosa com um seu semelhante; era a primeira vez que alguém o escolhia para confidente, para íntimo. E sua alma teve com a surpresa deste fato o mesmo gozo de impressões que experimentara ainda há pouco o seu paladar com os saborosos doces até aí desconhecidos para ele.
E o Coruja, a quem nada parecia impressionar, começou a sentir afeição por aquele rapaz, que era a mais perfeita antítese do seu gênio e da sua pessoa.
Quando Salustiano veio abrir-lhes a porta à hora do jantar, encontrou Teobaldo de pé, a discursar em voz alta, a gesticular vivamente, defronte do outro que, estendido na cadeira, toscanejava meio tonto.
— Então? Exclamou o homem das barbas longas. — Que significa isto?
— Isto quê, ó meu cara de quebra-nozes? Interrogou Teobaldo soltando-lhe uma palmada na barriga.
— Menino! Repreendeu o homem; não quero que me falte ao respeito!
— E um pouco de Madeira, não queres também?
— O senhor bem sabe que aqui no colégio é proibido aos alunos receberem vinho.
— Para os outros, não duvido! Eu hei de receber sempre, se não digo ao velho que não empreste mais um vintém ao diretor.
— Não fale assim... O senhor não se deve meter nesses negócios.
— Sim, mas em vez de estares aí a mastigar em seco e a lamber os beiços, é melhor que mastigues um pouco de requeijão com aquele doce.
— Muito obrigado.
— Não tem muito obrigado. Coma!
E Teobaldo, com sua própria mão, meteu-lhe um doce na boca.
— Você é o diabo! Considerou Salustiano, já sem nenhum sinal de austeridade. E, erguendo a garrafa à altura dos olhos: — Pois os senhores dois beberam mais de meia garrafa de vinho?!.
André ao ouvir isto, começou a rir a bandeiras despregadas, o que fazia talvez pela vez primeira em sua vida. Pelo menos, o fato era tão estranho que tanto Salustiano como Teobaldo caíram também na gargalhada.
— E não é que estão ambos no gole?... Disse homem, a cheirar a boca da garrafa e, sem lhe resistir ao bom cheiro, despejou na própria o vinho que restava.
— Que tal a pinga? Perguntou Teobaldo.
— É pena ser tão mal empregada... Responde o barbadão a rir.
— Este Salustiano é um bom tipo! Observou o menino, enchendo as algibeiras de frutas e doces.
— Ora, quando o diretor não pode com o senhor eu é que hei de poder...
E, querendo fazer-se sério de novo:
— Vamos! Vamos! Aviem-se, que está tocando a sineta pela segunda vez!
— Não vou à mesa, respondeu Teobaldo — daqui vou para o jardim; diga ao doutor que estamos indispostos.
E, voltando-se para o Coruja.
— Oh! André! Toma conta de tudo isso e vamos lá para baixo ouvir a flauta do Caixa-d’óculos.
Desde então os dois meninos fizeram-se amigos.
Foi justamente a grande distância, o contraste, que os separava, que os uniu um ao outro.
As extremidades tocavam-se.
Teobaldo era detestado pelos colegas por ser muito desensofrido e petulante; o outro por ser muito casmurro e concentrado. O esquisitão e o travesso tinham, pois, esse ponto de contato — o isolamento. Achavam--se no mesmo ponto de abandono, viram-se companheiros de solidão, e é natural que se compreendessem e que se tornassem afinal amigos inseparáveis.
Uma vez reunidos, completavam-se perfeitamente. Cada um dispunha daquilo que faltava no outro; Teobaldo tinha a compreensão fácil, a inteligência pronta; Coruja o método, e a perseverança no estudo; um era rico; o outro econômico; um era bonito,
débil e atrevido; o outro feio, prudente e forte. Ligados, possuiriam tudo. E, com o correr do ano, por tal forma se foram estreitando entre os dois os laços da confiança e da amizade, que afinal nenhum deles nada fazia sem consultar o camarada. Estudavam juntos e juntos se assentavam nas aulas e à mesa.
Por fim, era já o André quem se encarregava de estudar pelo Teobaldo; era quem resolvia os problemas algébricos que lhe passavam os professores; era quem lhe arranjava os temas de latim e o único que se dava à maçada de procurar significados no dicionário Em compensação o outro, a quem faltava paciência para tudo isso, punha os seus livros, a sua vivacidade intelectual à disposição do amigo, e dividia com este os presentes e até o dinheiro enviado pela família, sem contar as regalias que a sua amizade proporcionava ao Coruja, fazendo-o participar da ilimitada consideração que lhe rendia todo o pessoal do colégio, desde o diretor ao cozinheiro.
De todas as gentilezas de Teobaldo, a que então mais impressionara ao amigo foi o presente de uma flauta e de um tratado de música, que lhe fez aquele volta de um passeio com o diretor do colégio. Coruja trabalhava à sua mesa de estudo quando o outro entrou da rua.
— Trago-te isto, disse-lhe Teobaldo apresentando-lhe os objetos que comprara.
— Uma flauta! Balbuciou André no auge da comoção. — Uma flauta!
— Vê se está a teu gosto.
Coruja ergueu-se da cadeira, tomou nas mão instrumento, e experimentou-lhe o sopro, e ficou tão satisfeito com o presente do amigo que não encontrou uma só palavra para lho agradecer.
— Que fazias tu? Perguntou-lhe Teobaldo.
Mas correu logo os olhos pelo trabalho que estava sobre a mesa e acrescentou:
— Ah! É ainda o tal catálogo!
— É exato.
— Gabo-te a paciência! Não seria eu!
E, tomando a bocejar uma das folhas escritas o outro tinha defronte de si.
— Isto vem a ser?...
— Isto é a numeração das obras, respondeu André.
— Ah! Vai numerá-las...
— Vou. Para facilitar.
— E isto aqui? [interrogou Teobaldo, tomando outra folha de pape].
— Isto é uma lista dos títulos das obras.
— E isto?
— O nome dos autores.
— Depois reúnes tudo?
— Reuno.
— Melhor seria fazer tudo de uma mais prático. Assim, não é tão cedo que te verás livre dessa maçada!
— Há de ficar pronto.
Mas estava escrito que o célebre catálogo não teria de ficar acabado nas férias deste ano. Urna circunstância extraordinária veio alterar completamente os planos do autor.
Logo ao entrar das férias, o pai de Teobaldo apresentou-se no colégio para ir em pessoa buscar o filho.
Entrou desembaraçadamente a gritar pelo rapaz desde a porta da rua.
— Ah! É V. Exa. exclamou o diretor com espalhafato, logo que o viu. E correu a tornar-lhe o chapéu e a bengala.
— Bela surpresa! Bela surpresa, Sr. Barão! Tenha a bondade de entrar para o escritório!
— Vim buscar o rapaz. Como vai ele?
— Muito bem, muito bem.! Vou chamá-lo no mesmo instante. Tenha a bondade V. Exa. de esperar alguns segundos.
E, como se a solicitude lhe dera sebo às canelas, o Dr. Mosquito desapareceu mais ligeiro que um rato. O Sr. Barão do Palmar, Emílio Henrique de Albuquerque, era ainda nos seus cinqüenta e tantos anos uma bela figura de homem. A vida acidentada e revessa, a que o condenara sempre o seu espírito irrequieto e turbulento não conseguira alterar-lhe em nada o bom humor e as gentilezas cavalheirescas de sua alma romântica e afidalgada. Como brasileiro, ele representava um produto legítimo da época em que veio ao mundo.
Nascera em Minas, quando ferviam já os prelúdios da independência, e seu pai, um fidalgo português dos que emigraram para o Brasil em companhia do Príncipe Regente e de cujas mãos se passara depois para o serviço de D. Pedro I, dera-lhe por mãe uma formosa cabocla paraense, com quem se havia casado e de quem não tivera outro filho senão esse.
De tais elementos, tão antagônicos, formou-se-lhe aquele, caráter híbrido e singular, aristocrata e rude a um tempo, porque nas veias de Emílio de Albuquerque tanto corria o refinado sangue da nobreza, como o sangue bárbaro dos tapuias. Crescera entre os sobressaltos políticos do começo do século, ouvindo roncar em torno do berço a tempestade revolucionaria, que havia de mais tarde lhe arrebatar a família, os amigos e as primeiras e mais belas ilusões políticas. Desde muito cedo destinado às armas, matriculou-se na Escola Militar, fez parte da famosa guarda de honra do primeiro Imperador, e, com a proteção deste e mais a natural vivacidade do seu temperamento mestiço, chegou rapidamente ao posto de capitão.
Teve, porém, de interromper os estudos para fazer a lamentável guerra de Cisplatina, donde voltou seis meses depois, sem nenhuma dar ilusões com que partira, nem encontrar os pais e amigos, que sucumbiram na sua ausência, e nem mais sentir palpitar-lhe no coração o primitivo entusiasmo pelos defensores legais da integridade nacional. Orfanato, pois, ao vinte e dois anos, senhor de uma herança como bem poucos de tal procedência apanhavam nessas épocas, pediu baixa do Exército e levantou o vôo para a Europa, fazendo-se acompanhar por um criado que fora de seu pai, o Caetano, aquele mesmo criado que, trinta e tantos anos depois, apareceu no colégio do Dr. Mosquito vestido de libré cor de rapé, com botões amarelos.
Ah! Se esse velho quisesse contar as estroinices que fez o querido amo pelas paragens européias que percorreu! Se quisesse dizer quantas vezes não expôs a pele para livrá-lo em situações bem críticas! Quantas vezes por causa de alguma aventura amorosa ou por alguma simples questão de rua ou de café não voltaram os dois, amo e criado, para o hotel com o corpo moído de pauladas e os punhos cansados de esbordoar!
Durante essas viagens levaram eles a vida mais aventurosa e extravagante que é possível imaginar; só voltaram para o Brasil no período da regência, depois da abdicação do Sr. D. Pedro I, por quem o rapaz não morria de amores. Tornando à província, Emílio, talvez na intenção de refazer os seus bens já minguados, casou-se, a despeito da oposição do Caetano, com uma rapariga de Malabar, filha natural de um negociante português que comerciava diretamente com a Índia.
Atirou-se então a especular no comércio, mas o seu temperamento não lhe permitia demorar-se por muito tempo no mesmo objeto e, achando-se viúvo pouco depois de casado, lançou as vistas para Diamantina, que nessa ocasião atraía os ambiciosos, e lá se foi ele,. sempre acompanhado pelo Caetano, explorar o diamante. Tão depressa o viram em 1835 na Diamantina como em 1842 em Santa Luzia na revolução ao dos liberais mineiros, lutando contra a célebre reação conservadora manifestada pela lei de 3 de Dezembro.
A galhardia e valor com que se houve nessas conjunturas valeu-lhe a estima de Teófilo Otoni e outros importantes chefes do seu partido. Dessa estima e mais dos bens particulares que então gastou na política foi que se originou o título, com que mais tarde o agraciaram. A sua atitude política, a sua riqueza e os seus dotes naturais haviam-lhe já conquistado na corte as melhores relações deste tempo.
Uma vez, por ocasião de trazer para aí uma excelente partida de diamantes, travou conhecimento com um importante fazendeiro de café, em cuja fazenda se hospedou por acaso. Esse homem, mineiro da gema, era no lugar a principal influência do partido conservador e, sem dúvida, um dos que primeiro explorou a famosa Mata do Rio, que então começava a cobrir-se de novas plantações. O fazendeiro tinha uma filha e Emílio cobiçou-a para casar. Mas o encascado político, descendente talvez dos antigos emboabas que avassalaram o centro de Minas, não cedeu ao primeiro ataque, e Emílio teve de lançar mão de todos os recursos insinuativos da sua raça para conseguir captar a confiança do pai e o coração da filha. Quando lá tornou segunda vez, deixou o casamento ajustado.
Então foi ainda a Diamantina liquidar os seus negócios e, voltando à Mata, recebeu por esposa a mulher que, mal sabia ele, estava destinada a ser a mais suave consolação e o melhor apoio do resto de sua vida. Foi desse enlace que nasceu Teobaldo, logo um ano depois do casamento. Emílio só reapareceu na corte em 1847, onde os seus correligionários, então no poder, o agraciaram com o titulo de Barão do Palmar; mas voltou logo para Minas e tratou de estabelecer com os seus capitais uma fazenda na vizinhança da do sogro, que acabava de falecer.
Foi esse o melhor tempo de sua vida, o mais tranqüilo e o mais feliz. Só depois de casado, Emílio pode avaliar e compreender deveras a mulher com quem se unira; só depois de casado descobriu os tesouros de virtude que ela lhe trouxe pura casa, escondidos no coração.
Laura, assim se chamava a boa esposa, era um destes anjos, criados para a boa segurança do lar doméstico; uma dessas criaturas que nascem para fazer a felicidade dos que a cercam. Em casa, senhores chamavam-lhe "Santa". E este doce tratamento conduzia com os seus atos e com a sua figura.
— Esta, sim! Exclamava o Caetano, entusiasmado Esta, sim, é uma esposa de conta, peso e medida!
Pouco a pouco, Emílio fui amando a mulher, ao ponto de chegar a estremecê-la, o que até aí lhe parecia impossível.
No meio de toda essa felicidade, Teobaldo deu os seus primeiros passos pela mão do pai, da Santa e do fiel Caetano, que já o adorava tanto como os outros. O pequeno era o mimo do casa; era o cuidado, o enlevo, a preocupação de quantos o viam crescer.
Com que sacrifício não consentiu, pois, o Barão do Palmar que o filho, daí a seis anos, seguisse sozinho para um colégio de Londres, donde havia de passar a Coimbra.
Mas assim era necessário, porque Emílio, então comprometido no tráfico dos negros africanos, viu-se atrozmente perseguido por Euzébio de Queiroz, terror dos negreiros e seu inimigo político.
Eis aí quem era e donde vinha o pai de Teobaldo.
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continua…
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