domingo, 9 de maio de 2010

Nelson Saúte (O Marido Deixa-Andar e a Mulher Furiosa)



A mulher estava farta do marido deixa-andar. O homem não tinha como mudar. Todos lhe passavam à frente. Na rua olhavam-no desdenhosos. Até o panhonho da esquina comprara um carro. Ele, nada. Os filhos dos vizinhos andavam em escolas privadas, pavoneavam-se. O marido dela nada persistia na desgraça. Passara o tempo da balalaica, o que dera nele? Agora, quando todos estavam a evoluir, ele persistia. Quando lhe indagava, ele respondia, sussurrando:

- Eu sou coerente.

- Mas marido nós vamos comer coerência aqui em casa?

A verdade é que não faltava comida em casa. Esse era o argumento. Os filhos iam à escola pública. Por vezes não tinham carteiras, sentavam-se no chão. Os vidros eram partidos, as casas de banho fediam. Mas isso não era culpa do Estado. Quem vandalizava?

O homem não perdia a fleuma. Explicava com bons modos que ele não entrava na onda do novo-riquismo, não praticava nenhum tipo de falcatrua para enriquecer. Não iria satisfazê-la a todo o custo. Acreditava no mérido. Persistia no trabalho. Afinal, um homem de valores.

- Marido tu não queres evoluir mesmo!

- Até pode ser.

Ela foi previsível. Foi-se embora. Abandonou tudo: a casa, os haveres corroídos pelo tempo, os filhos assombrados com o infuturo, o marido. Aquilo que poderíamos chamar família.

Ele ficou com os filhos, continuou o mesmo. Ela vigiava-o. Ia sabendo do homem à distância ou através dos filhos. Quando queria dizer o que quer que fosse do pai, os filhos reprovavam com olhar. Ou diziam apenas:

- Mãe.

Nem ela, nem ele se engajaram noutra relação. Estavam separados. Mas algum os unia. Algo de invísivel.

Um dia soube que ele tivera direito a um carro de alienação no serviço. Era bom técnico e ganhou essa benesse.

A mulher ficou furiosa.

- O sacana enquanto esteve comigo nunca me quis dar um carro. Agora, que está sozinho anda de carro?

Num desses dias, ela abeirou-se da casa que habitara e munida de paus e pedra desfigurou o carro, descarregando sobre ele toda a sua bilis. O homem ouvia um barulho esquisito lá de dentro e vozes que se avolumavam. Saíu ainda de pijama e se defrontou com aquele insólito.

A mulher tresloucada à porta de casa, derrubando o carro novo. Como sempre, um grupo de vizinhos curiosos, que murmuravam.

O homem olhou para a mulher e não conseguiu pronunciar uma palavra que fosse. Estava incrédulo.

Ela fixou-o com aquele seu olhar felino, que o fazia estremecer, e disse, antes de irromper numa convulsão dos diabos:

- Toda a vida eu quis uma vida melhor. Agora que me fui embora é que compras um carro? Não, eu não vou permitir que vivas bem sem mim!

O homem caminhou em direção da mulher e amparou-a num abraço, abriu ala no meio dos que se aglomeravam e levou-a para dentro de casa.

Lá fora, ficou o espanto dos que assistiram à inusitada cena e um carro completamente espatifado.

Fonte:
http://www.pnetliteratura.pt/

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