quinta-feira, 6 de maio de 2010

Abílio Pacheco (Aquarela de Poesias)


NO PRELO

Se a minha palavra é a minha busca
de uma vida inteira, em todo mundo
e ela dorme encantada à sombra
de um livro raro, quiçá
encontrá-la-ei num alfarrábio,
num sebo, numa biblioteca pública...
Quem sabe minha resposta ainda
esteja no prelo.

ESCRITURA

A Eliton Moreira e Ademir Braz

Tecer versos é, por força, fazer sulcos em penedos,
Singrar as pedras todas do mar de si ao avesso,
Derramar suores em gotas no fero vigor do remo.

É ferir, à quilha da fragata, as artérias espumosas
Das altas internas vagas. É navegar por entre as rochas
E extrair exangues lascas — vergões por dentro e por fora.

É talhar a cerrados pulsos as pedras finas, mas duras.
E lapidar relevos pulcros em fendas pouco profundas.
É um árduo trabalho infruto, que só lega palmas sujas.

Mas é preciso fazê-lo! Alguém deve abrir as ostras
Abismadas em seu peito para juntá-las a outras
Iguais na casca e no meio, mesmo que estejam ocas.

Por fim: crer que vale a pena mineralizar as lavras
Como fulcros ao poema e inertes todas deixá-las
Inativas pelas fendas — palavras amortalhadas.

Para que tu, só tu possas sugar o cerne dos versos
Acumulados em poças pelos teus olhares tétricos
Que desmineram as horas e se desmentem eternos.

TESSITURA NOTURNA
A João Cabral de Melo Neto

Um latido apenas
não protege a rua
ele precisará sempre
que os cães o apanhem
e o lancem a outros cães
e a outros latidos
tal que somados todos
(latidos e cães) na noite
formem (no arca-
bouço da matilha)
uma redoma protetora
em torno da rua.

RETRATO II
A Cecília Meireles

Eu também não tinha este rosto
assim tenso, assim denso, assim calvo,
nem olheiras e rugas
nem cabelos alvos.

Eu não tinha estes olhos de agora
tão rubros, tão turvos, tão vagos,
nem esta mão incerta,
nem dedos fracos.

Mal venho notando esta mudança
que lenta, constante e suave
do espelho vem desbotando
a minha face.

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
(ou Pinóquio pós-moderno)

Minha fada cor de céu,
Por mil pares de anos
Repito-te o mesmo pedido:
Faze comigo o que fizeste
com o filho de Gepeto.

Mas, acima de nossas cabeças
Toda nova era glacial passou
E com ela os filhos de Japeto.

Por mil pares de anos te peço...
Para que me transformes no que sempre fui,
Sem que nunca tenha sido de verdade.

LUZES DA CIDADE
A Charles Chaplin

Deambulo em trapos pelas ruas...
E vejo você, serena e cega, alva e bela,
com uma cesta plena de flores claras.

Súbito amo-te! como uma criança a outra.
Simples como a rosa branca
que recebo e ponho na lapela.

Faço de tudo para que
— mesmo vendo-me trapalhão —
você contemple as luzes da cidade.

Fonte:
Revista João do Rio. Ano 7 - Número 42. Abril / Maio de 2010

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