sexta-feira, 21 de maio de 2010

Luis Dolhnikoff (Epistemologia da Pesca)


líquidos
os peixes
no vidro mole do mar

remotamente perto
a areia dos meus pés
no vidro moído da praia

e duas hipálages:
peixes não são líquidos
ou meus pés silício

mas carbono
e silêncio
moldados em sólidos macios

que solidez, porém
molda os insólitos vazios
de que os átomos são repletos

entre a nulidade do núcleo
e a distância astronômica
de sua névoa de elétrons?

mas se peixes não são líquidos
há, apesar dos vazios
solidez e, talvez, verdade

(se não a solidez da verdade
a verdade da solidez
dos peixes)

nada, entretanto, é sólido
por culpa, ou do capitalismo
("tudo se desmancha no ar...")

ou do dicionário
em que é sinônimo
(um outro nome) de maciço

e sólido não é isso:
pois um líquido
denso como o chumbo

derretendo
não parece menos
cheio de si mesmo

por outro lado
(ou pelo mesmo: de fora
para dentro)

não há sólidos
que não sejam penetráveis
por alguma radiação

(os transparentes são
transpassáveis pela luz:
sólida nudez)

raios
nas pequenas noites vazias
dos átomos

porém uma pedra
é impenetrável
por outra pedra

pelas fortes correntes
elétricas entre
as nuvens de elétrons

uma rede
de pesca talvez contenha
um bom modelo bidimensional:

a rede é um entrelaço
de nós e de fios
entre os nós

como os peixes
de átomos
e interações entre eles

uma linha
transversal a transpassa
como as ondas

eletromagnéticas
a água
e os peixes

duas redes abertas
uma sobre
a outra

não são, porém, permeáveis
apesar de feitas
na maior parte de vazios:

redes
não são penetráveis
por redes

a solidez
se impenetrabilidade mútua
entre redes íntegras

é um fato
palpável como um peixe
ou seja, uma verdade:

existe a solidez
apesar dos vazios
que a preenchem

daí ser prenhe
de sentido
falar em solidez, em peixes

e na impenetrabilidade
mas não na inexistência
da verdade

deus
diria um pescador
de homens e de sua dor

rede vazia
se não de pescarias
de si mesma

eu replicaria
não fora para ouvidos
de mercadejador:

cerrados
nós górdios que se cortam e
se desfazem

ou não se cortam e
se desfazem
em finas linhas finitas

a rede
a verdade
a impenetrabilidade

Fonte:
DOLHNIKOFF, Luis. Sobre Sisifo. Ateliê Editorial, 2007.

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