Astolfo Lima Sandy é autor do livro Mão de Martelo e outros contos (Fortaleza: Programas Editoriais Casa de José de Alencar/Coleção Alagadiço Novo – Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1998). Participou do Almanaque do conto cearense (Recife: Ed. Bagaço, 1997), da Antologia do Conto Nordestino ano 2000 (Recife: Ed. Micro, 2000) e da revista Caos Portátil: um almanaque de contos (Fortaleza: Letra & Música, 2007). Em 2002 recebeu o Prêmio da Biblioteca Nacional para escritores com obra em fase de conclusão, com o livro A Grande Fábrica de Brinquedos, inédito em 2007. Tem contos em suplementos literários e sites na internet. Vencedor de vários prêmios literários. Concluiu em 2007 o romance Exuberante pós-nada (vencedor do Edital de Literatura da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará/SECULT, em 2007).
Constituído de 23 narrativas curtas, Mão de Martelo e outros contos apresenta um painel de personagens e situações bastante variados, quase sempre localizados na zona urbana e num tempo histórico indefinido. A maioria das histórias se desenvolve no curto espaço de uma sala, de uma casa pequena. Em outras, o drama deixa estes espaços para alcançar a rua, como em “Bandeira Dois”. O protagonista se desloca de casa, onde promove uma baderna, para a rua, um táxi, e pratica um assalto. Assim, os demais personagens (como num filme) desaparecem do foco narrativo. Nesta linha (de denúncia da miséria, dos problemas sociais) se situa também “Os meninos”. A técnica utilizada neste, no entanto, é diversa daquele: toda a ação se desenrola na rua. Aliás, o conflito é narrado num só parágrafo, como se o narrador portasse uma câmera e focasse os personagens, um grupo de meninos de rua, em tempo restrito a uma ação rápida de assalto. Semelhante a este é “O grande salto”. Mais uma vez a rua como palco. As únicas falas são do protagonista – o palhaço, o contorcionista, sem nome – que tenta ganhar uns trocados dos transeuntes à custa de piruetas, saltos, malabarismos.
Os personagens de Astolfo são quase sempre disformes, tortos, grotescos, como caricaturas. O político descrito pelo narrador em “Tiro Certeiro” é um exemplo disso: “Elemento pernóstico, com seu crânio disforme afinando drasticamente para baixo, e que, de perfil, lembrou-me um cavalo com nariz de Pinóquio.” O mesmo ocorre quando o protagonista de “Mão-de-martelo” se descreve: “silhueta longa, grave inclinação para a esquerda, enquanto enorme nariz emoldura-me a face descorada.” Sandoval Balheiros, de “Teoria do equilibrista”, é descrito como semelhante a um faquir. Os “seios flácidos da índia velha”, da mulher do protagonista de “Bandeira dois”, aparecem algumas vezes, como a pintar a miséria em que viviam os personagens. A pintura distorcida de alguns personagens se mostra também em “O Debate”, no qual “senhores sisudos” debatem assunto da mais alta importância: a Constituição do País. Um, “muito magro, ares de intelectual”; outro, “meio estrábico”; um terceiro, “cara de pouca inteligência”. Além dos debatedores, personagens menores e também sem nome surgem e desaparecem como simples figurantes exóticos: “uma mulher muito loura enfeitada de batom e joias”, “um palhaço tomando coca-cola”, “uma garota sardenta”, “uma senhora gorda”.
O uso contínuo da narração, entremeada de breves diálogos e descrições físicas e psicológicas de personagens, dá vigor à linguagem dos contos de Astolfo. Em “Luz e Sombras” os movimentos narrados apresentam a linguagem do cinema, na visão de um homem paralisado, à espera de um ataque.
O ponto de vista nas narrativas de Astolfo é ora na primeira pessoa, ora na terceira. No conto que dá título ao livro o narrador é o protagonista, que vai se pintando ao longo da história: como adquiriu o codinome, como participa das rodas de samba, como se operou nele a transformação interior (o aperfeiçoamento de “alguns defeitos morais”, como a mentira, a hipocrisia, a inveja, o sadismo). A descrição que faz de si mesmo se mostra nos moldes do monólogo interior. Esta e outras descrições breves se apresentam dentro da narração, ausente de diálogos. Somente uma personagem menor surge de inopino, apenas mencionada – a mãe –, que não passa de simples adereço, complemento necessário à narração. No centro da trama está o narrador, o protagonista perfeito, porque personagem único. O mesmo se dá em “Barriga de Pano”. O personagem fantasiado de Papai Noel narra a sua breve história de aposentado em busca de uns trocados, até furtar um par de tênis e ser conduzido à polícia. Em “Tiro Certeiro” Astolfo alcança ponto mais alto, em relação aos dois primeiros contos, na maneira de narrar. Um homem indignado com a realidade se faz justiceiro em sua própria casa, como se o mundo se resumisse a uma tela de televisão. Ao se servir de expressões como “acionar o gatilho”, “mirar o distintivo prateado”, “atingir indiscriminadamente quem aparecesse à tela”, dá a ideia de uso de arma de fogo. Entretanto, ao correr da história, o leitor perceberá que o jogo verbal do contista conduz a uma leitura mais larga, mais funda, mais vertical. O protagonista “elimina” mentalmente os políticos que aparecem na tela, como num desabafo. Seria um louco, um esquizofrênico a agir e falar, como se os “personagens” da televisão, as figuras em movimento na tela fossem reais. O personagem lembra aqueles que veem nos personagens de novelas televisivas pessoas de carne e osso.
Poucas são as narrativas em que o ponto de vista é de narrador onisciente, como “Pequena História de Velhos”. Acompanham a narração a nomeação de móveis de uma casa: guarda-roupa, gancho da rede, lençóis, cadeiras, móveis do quarto, oratório. E nada de diálogo: “Há algum tempo, o ancião não discute mais. Perdeu o derradeiro fio de voz.” Em outro conto, “Teoria do equilibrista”, o foco narrativo se dá de duas maneiras, na terceira e na primeira pessoa. Naquela, a narração sai da pena ou da boca do escritor/narrador onisciente; nesta, constituída de falas, com travessão, o protagonista (o pai) se dirige a outro personagem (o filho), e este, em falas mais breves, ora contesta as lições do pai, ora lhe faz perguntas. No interior das falas mais longas, aqui e ali o narrador toma a palavra, como para quebrar a monotonia do diálogo. Semelhante a este conto, na forma, é “O Batom”, no qual médico e paciente conversam. A narração de pequenos incidentes é mero complemento da história lida nas falas dos personagens. Em outros contos se dá exatamente o inverso: a narração, mais longa, é intercalada de breves diálogos.
Em “O encontro” tudo gira em torno do tempo ou da psicologia do tempo. A imagem que o leitor vai formando é a de um homem desiludido com o tempo: “Até a comemoração dos meus aniversários esqueci.” Em “A carta”, desde os primeiros momentos o leitor é conduzido a ver na história em desenvolvimento a presença do ciúme: “o (envelope) farejei como se buscasse vestígios de um perfume.” Mais adiante outra pitada de ciúme: “Ela não tardaria em retornar de um tal curso que agora frequenta.” No final, o narrador confessa: “Antes que o demônio do ciúme envenenasse de vez minha alma” (...).
O choque entre personagens nem sempre significa conflito nos contos de Mão de Martelo, embora o leitor se prepare para um desenlace trágico. Leia-se “Escambo”, que pode ser visto como um conto fantástico. O narrador, cidadão urbano, depara um “desses povoados perdidos no meio do sertão” e, para espanto seu, encontra uma sociedade diferente da sua, espécie de sociedade alternativa, onde o escambo substituiu o comércio normal e, por consequência, tudo se transformou: a política, a religião, a segurança pública, a prática da educação e da saúde etc. Constituído de breves narrações e longo diálogo, esse conto pode ser visto como uma sátira. Essa singularidade pode ser encontrada também em “Meu tio Ambrósio e os poetas”, assim como em “Confissão”.
Ao término da leitura de Mão de martelo e outros contos, percebe-se em Astolfo Lima Sandy um contista “sisudo”, embora não lhe falte humor, aliado ao sarcasmo, dedicado a temas fundamentais da tragédia humana e voltado para a elaboração de narrativas em que as mais variadas técnicas se mesclem, dando origem a pequenas histórias simples, porém nada banais, e sem muitas arestas a serem aparadas.
Fontes:
Nilto Maciel. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza: Imprence, 2008. p. 277.
Constituído de 23 narrativas curtas, Mão de Martelo e outros contos apresenta um painel de personagens e situações bastante variados, quase sempre localizados na zona urbana e num tempo histórico indefinido. A maioria das histórias se desenvolve no curto espaço de uma sala, de uma casa pequena. Em outras, o drama deixa estes espaços para alcançar a rua, como em “Bandeira Dois”. O protagonista se desloca de casa, onde promove uma baderna, para a rua, um táxi, e pratica um assalto. Assim, os demais personagens (como num filme) desaparecem do foco narrativo. Nesta linha (de denúncia da miséria, dos problemas sociais) se situa também “Os meninos”. A técnica utilizada neste, no entanto, é diversa daquele: toda a ação se desenrola na rua. Aliás, o conflito é narrado num só parágrafo, como se o narrador portasse uma câmera e focasse os personagens, um grupo de meninos de rua, em tempo restrito a uma ação rápida de assalto. Semelhante a este é “O grande salto”. Mais uma vez a rua como palco. As únicas falas são do protagonista – o palhaço, o contorcionista, sem nome – que tenta ganhar uns trocados dos transeuntes à custa de piruetas, saltos, malabarismos.
Os personagens de Astolfo são quase sempre disformes, tortos, grotescos, como caricaturas. O político descrito pelo narrador em “Tiro Certeiro” é um exemplo disso: “Elemento pernóstico, com seu crânio disforme afinando drasticamente para baixo, e que, de perfil, lembrou-me um cavalo com nariz de Pinóquio.” O mesmo ocorre quando o protagonista de “Mão-de-martelo” se descreve: “silhueta longa, grave inclinação para a esquerda, enquanto enorme nariz emoldura-me a face descorada.” Sandoval Balheiros, de “Teoria do equilibrista”, é descrito como semelhante a um faquir. Os “seios flácidos da índia velha”, da mulher do protagonista de “Bandeira dois”, aparecem algumas vezes, como a pintar a miséria em que viviam os personagens. A pintura distorcida de alguns personagens se mostra também em “O Debate”, no qual “senhores sisudos” debatem assunto da mais alta importância: a Constituição do País. Um, “muito magro, ares de intelectual”; outro, “meio estrábico”; um terceiro, “cara de pouca inteligência”. Além dos debatedores, personagens menores e também sem nome surgem e desaparecem como simples figurantes exóticos: “uma mulher muito loura enfeitada de batom e joias”, “um palhaço tomando coca-cola”, “uma garota sardenta”, “uma senhora gorda”.
O uso contínuo da narração, entremeada de breves diálogos e descrições físicas e psicológicas de personagens, dá vigor à linguagem dos contos de Astolfo. Em “Luz e Sombras” os movimentos narrados apresentam a linguagem do cinema, na visão de um homem paralisado, à espera de um ataque.
O ponto de vista nas narrativas de Astolfo é ora na primeira pessoa, ora na terceira. No conto que dá título ao livro o narrador é o protagonista, que vai se pintando ao longo da história: como adquiriu o codinome, como participa das rodas de samba, como se operou nele a transformação interior (o aperfeiçoamento de “alguns defeitos morais”, como a mentira, a hipocrisia, a inveja, o sadismo). A descrição que faz de si mesmo se mostra nos moldes do monólogo interior. Esta e outras descrições breves se apresentam dentro da narração, ausente de diálogos. Somente uma personagem menor surge de inopino, apenas mencionada – a mãe –, que não passa de simples adereço, complemento necessário à narração. No centro da trama está o narrador, o protagonista perfeito, porque personagem único. O mesmo se dá em “Barriga de Pano”. O personagem fantasiado de Papai Noel narra a sua breve história de aposentado em busca de uns trocados, até furtar um par de tênis e ser conduzido à polícia. Em “Tiro Certeiro” Astolfo alcança ponto mais alto, em relação aos dois primeiros contos, na maneira de narrar. Um homem indignado com a realidade se faz justiceiro em sua própria casa, como se o mundo se resumisse a uma tela de televisão. Ao se servir de expressões como “acionar o gatilho”, “mirar o distintivo prateado”, “atingir indiscriminadamente quem aparecesse à tela”, dá a ideia de uso de arma de fogo. Entretanto, ao correr da história, o leitor perceberá que o jogo verbal do contista conduz a uma leitura mais larga, mais funda, mais vertical. O protagonista “elimina” mentalmente os políticos que aparecem na tela, como num desabafo. Seria um louco, um esquizofrênico a agir e falar, como se os “personagens” da televisão, as figuras em movimento na tela fossem reais. O personagem lembra aqueles que veem nos personagens de novelas televisivas pessoas de carne e osso.
Poucas são as narrativas em que o ponto de vista é de narrador onisciente, como “Pequena História de Velhos”. Acompanham a narração a nomeação de móveis de uma casa: guarda-roupa, gancho da rede, lençóis, cadeiras, móveis do quarto, oratório. E nada de diálogo: “Há algum tempo, o ancião não discute mais. Perdeu o derradeiro fio de voz.” Em outro conto, “Teoria do equilibrista”, o foco narrativo se dá de duas maneiras, na terceira e na primeira pessoa. Naquela, a narração sai da pena ou da boca do escritor/narrador onisciente; nesta, constituída de falas, com travessão, o protagonista (o pai) se dirige a outro personagem (o filho), e este, em falas mais breves, ora contesta as lições do pai, ora lhe faz perguntas. No interior das falas mais longas, aqui e ali o narrador toma a palavra, como para quebrar a monotonia do diálogo. Semelhante a este conto, na forma, é “O Batom”, no qual médico e paciente conversam. A narração de pequenos incidentes é mero complemento da história lida nas falas dos personagens. Em outros contos se dá exatamente o inverso: a narração, mais longa, é intercalada de breves diálogos.
Em “O encontro” tudo gira em torno do tempo ou da psicologia do tempo. A imagem que o leitor vai formando é a de um homem desiludido com o tempo: “Até a comemoração dos meus aniversários esqueci.” Em “A carta”, desde os primeiros momentos o leitor é conduzido a ver na história em desenvolvimento a presença do ciúme: “o (envelope) farejei como se buscasse vestígios de um perfume.” Mais adiante outra pitada de ciúme: “Ela não tardaria em retornar de um tal curso que agora frequenta.” No final, o narrador confessa: “Antes que o demônio do ciúme envenenasse de vez minha alma” (...).
O choque entre personagens nem sempre significa conflito nos contos de Mão de Martelo, embora o leitor se prepare para um desenlace trágico. Leia-se “Escambo”, que pode ser visto como um conto fantástico. O narrador, cidadão urbano, depara um “desses povoados perdidos no meio do sertão” e, para espanto seu, encontra uma sociedade diferente da sua, espécie de sociedade alternativa, onde o escambo substituiu o comércio normal e, por consequência, tudo se transformou: a política, a religião, a segurança pública, a prática da educação e da saúde etc. Constituído de breves narrações e longo diálogo, esse conto pode ser visto como uma sátira. Essa singularidade pode ser encontrada também em “Meu tio Ambrósio e os poetas”, assim como em “Confissão”.
Ao término da leitura de Mão de martelo e outros contos, percebe-se em Astolfo Lima Sandy um contista “sisudo”, embora não lhe falte humor, aliado ao sarcasmo, dedicado a temas fundamentais da tragédia humana e voltado para a elaboração de narrativas em que as mais variadas técnicas se mesclem, dando origem a pequenas histórias simples, porém nada banais, e sem muitas arestas a serem aparadas.
Fontes:
Nilto Maciel. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza: Imprence, 2008. p. 277.
Imagem de Giuseppe Maria Crespi.
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