sábado, 8 de maio de 2010

Sylvia Beirute (Caravelas da Poesia)


AÇÚCAR-MATÉRIA

já ter acontecido:
à falta de um vício, ser-me proposto um exemplo
de não exemplo,
o projeto de ser uma mulher de açúcar,
e reverberar a personagem no meu rosto.
e nos anti-corpos da pré-exibição
ver um piazzolla, um piazzolla também de açúcar
e uma composição instantânea, o tango
de uma escalada em condição de cristal.
sim, já ter acontecido, já ter acontecido muitas vezes:
sermos feitos de açúcar, porque
assim que a dança começa, piazzolla,
sempre os corpos desabam.

CONOSCENZA

{o teu reconhecimento é a tua dependência},
não o deixes passar da fase da costura.
surge. insurge. inespera.
adquire expressões através do
eco difuso dos vegetais, coloca-te
nas ranhuras da madeira.
há uma vida imprópria algures.
pode não ser como aquela que espera
na plumagem de uma memória
por antecipação, mas protege o silêncio
e não deixa coagular o sangue.
{o teu reconhecimento é a tua dependência},
e quanto mais o memorizares
mais afastado estarás
dos lados obtusos de quem te deseja habitar
e da semântica temporal
das pessoas que te pedirão um
poema bonito,
e nada pior do que escrever
um poema bonito.

CIDADE-PONTO

{ao tiago gomes, com amizade}
não escrevi um livro em miniatura sob uma lupa falsa.
não pedi qualidade aos clássicos.
não pretendi reparar a eficácia de qualquer sistema humano.
não endossei poemas porque os poemas não são cartas.
não tenho um cativeiro de poetas.
não visitei cidades-poema.
não segui preceitos que se vejam.
não azuleci por pertencer ao céu.
não tive ilusão e coragem para crer na desistência.
não escrevi que o fingimento pode ser um ódio com casca.
não tenho maneiras puramente estéticas.
não tenho processos literários.
não tenho dois corações.
não li masaoka shiki ou matsuo bashō.
não li a crítica para não perder a liberdade e o meu
dom impreparado.
não peguei no tempo e o atirei para dentro do corpo
como células estaminais.
não escrevi sobre a revolução industrial.
não respeitei o meu passado enquanto índice temático.
não estimulei diagnósticos de subtileza grosseira.
não recuperei emoções com a cabeça.
não coloquei questões delicadas no campo da poesia suprema.
não transferi permissões de mim para mim.
não imaginei versos paralelos para prender significados.

DESENHO
{ao meu namorado}

vieste encorpar uma nuvem fria,
a mais convulsiva,
contar segredos às propensões
do corpo infinito, segredos
que eram como aqueles outros
em que resignei sua exaustividade
para fazer acontecer os braços irregulares
de camaleões semi-calmos de exaustão
até às reticências
das gotas.
vieste chover por baixo da minha
métrica maternal com lineares vindimas,
estrangular o ritmo da limpa concreção,
trepar um sujeito longe de algo
que o predicasse
como a paisagem predica
um dia mudo e maravilhoso, violento e
inesquecível.
nós somos nós, nada mais; quer haja
um prazer muito branco ou uma loucura
muito hábil,
quer haja uma primeira ou segunda
infâncias conscientes,
quer haja amor inconforme
ou um pedaço mútuo de razão
germinando numa nuvem muito alta.

IDIOMA

pedem-me que desperdice, que deixe estar,
que me desnomeie com um defeito do sono,
e que desse início desafie uma erudição
com um incêndio no idioma de dentro.
depois oferecem-me uma porta, uma porta
que quando bate sobrepõe
um silêncio de limão sobre a coxa, que
hetero-consome e auto-escurece. dizem-me:
desperdiça, sylvia, deixa {r}estar, põe
cada pé em cada prato da balança do
inacontecido saudável, prediletiza a partir
desse ponto até à humidez do teu ego de exposição.
por fim, deixam-me uma janela que ensina
o modo como os sujeitos procuram os predicados
que inutilizam, e
mostra explicando
a independência da incompletude
daqueles que crescem como flores.
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Sylvia Beirute (1984) é natural de Faro, Portugal.
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Fontes:
Colaboração da poetisa
http://sylviabeirute.blogspot.com/

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