sexta-feira, 7 de maio de 2010

Carlos Neto (A Morte do Cão)


Chamavam-no Gillet. Soberbo cão de raça
que um caçador famoso, um doido pela caça,
mandara vir de fora, a peso de dinheiro.
Era um ídolo o cão. E aos carinhos tão doces
dos agrados gentis, o cão acostumou-se
a consagrar, também, a vida ao companheiro.

Na época melhor das ótimas caçadas,
os dois partiam sós, à luz das alvoradas,
buscando o coração misterioso das matas.
E voltavam, depois, alegres e contentes,
despertando em redor os íncolas dormentes,
ao compassado som de estranhas serenatas.

Mas, depois de algum tempo, o cão envelhecido,
desdentado, sem forças, exausto, entorpecido,
já bem dificilmente acompanhava o dono.
Era um cão sem valor, inútil companhia,
que preciso se fazia, de dia para dia,
ir deixando ficar em mísero abandono.

A fortuna também girou, rapidamente,
e o velho caçador, tão rico, de repente
sentiu minguar-lhe o pão. Sentiu faltar-lhe o ouro.
A morte lhe roubara a esposa muito amada
e ele viu sua casa escura e abandonada,
tendo um filho só por último tesouro!

II

Um dia, disfarçando o peso da desgraça
que, aos poucos, lhe esmagava o triste coração,
ele partiu, cantando as emoções da caça.
Mas quis partir sozinho. E acorrentou o cão.

Do mísero cativo as pérolas do pranto
desceram. Mas, ao ver o caçador contente,
o pobre cão lá foi, resignado, a um canto
deitar-se, carregando o peso da corrente.

A noite que descia em silêncio e trevas
envolvia a casa. E eis que, repentinamente,
farejando a amplidão, faminto, um lobo avança...

(E lá no berço a criancinha dorme,
como dorme num berço uma criança.)

Escancarada a porta encontrava-se então.

O lobo se aproxima...
Nesse momento,
No turvo olhar do cão lucila um pensamento.
E eis que, grunhindo, uivando, o cão forceja, torce
retorce
e quebra, num ímpeto de amor,
os elos da corrente.

Travou-se, então, uma horrorosa luta,
no silêncio da noite, indiferente e bruta.

Surdo ranger de dente, ossos a estrelejar.
Mil contrações de dor. O sangue a borbulhar,
a relva machucada... o fogo do cansaço...
e baques pelo chão... Tudo espalha no espaço
em ímpeto fremente, um acre odor de guerra!
Depois... o baquear de um corpo em cheio em terra
Depois... um abafado e último gemido.
Um preito ao vencedor, por parte do vencido.

.x-.x-.x-

Depois daquele horror... depois... Depois mais nada.
Era a tragédia finda e a noite sossegada.

Mais tarde, ao despertar da fresca madrugada,
o caçador voltava.
Vendo a porta aberta,
a casa palmilhada
e toda salpicada, com o sangue do cão,
corre para o berço do filhinho.
Anseia, estua, pára...
ao vê-lo ensangüentado
e vazio.

Tonto de amor paterno, cego de vingança,
afaga junto ao peito o cabo de um punhal
e, vendo aos pés a festejar-lhe o cão,
atira um golpe rijo ao peito do animal
que, exânime, resvala em último suspiro.

Mas, nisso, ouve uma voz que chama o caçador.
"Papá, papá, papá!" Alucinado, incerto...
era a voz do filhinho - o filho estava perto -
correu desesperado... e - atônito, absorto -
o foi achar, contente e sossegado,
junto à casa do cão... e, ali bem perto, ao lado,
um lobo enorme, mas ensangüentado e morto!.

Fonte:
Jornal de Poesia

Um comentário:

mauro josé disse...

Aprecio por demais, esta poesia. Ela marcou-me, ao receber meu cão, companheiro de 13 longos anos, com uma visita de saudoso amigo que teve o cuidado de recitá-la, integralmente como alerta para mim. Gostaria de receber, se possível, a poesia COMPLETA como tive o prazer de ouvi-la em tempos idos.

grato,

Mauro José
maurojoseferreira@gmail.com