quinta-feira, 6 de maio de 2010

Rita Maria Félix da Silva (O Menino no Lago)


O Lago Sombrio

Algumas histórias sobreviveram à memória dos dias antigos – carregadas de um lado para o outro pela brisa que, vez por outra, toca o espírito de mulheres e homens, relembrando uma época de feitos assombrosos, eventos estranhos, magia, maravilhas e horrores. Esta é uma delas:

Dizem que havia um menino de quem os pais foram levados muito cedo, por uma das mais estúpidas guerras que os adultos já fizeram. De algum modo, ele sobreviveu e vagou por uma vida solitária até que encontrou um homem chamado Orlando.

Os outros adultos desprezavam Orlando, que tinha uma índole ruim e não merecia confiança, porém – embora aquele homem alega-se detestar crianças e maltrate-se o menino sempre que estava irritado ou entediado –- eles se tornaram companheiros de viagem nesse mundo, afinal nada tinham, exceto a companhia um do outro, e a solidão costuma permitir as alianças mais improváveis. E o tempo foi vagarosamente passando, enquanto tudo era exatamente assim.

Todavia, no começo de uma manhã, coberta de neblina –- enquanto o dia avançava junto com as reclamações e grosserias de Orlando -– eles chegaram a um lago sombrio, um lugar assombrado pelas memórias de horrores antigos.

Sentada em uma das margens, havia uma mulher perto de uma fogueira quase apagada, na qual as poucas brasas que ainda persistiam lançavam mais fumaça do que calor na carne assada de algum pássaro. Ela vestia trapos, seus cabelos eram de um amarelo muito suave, a brancura da pele imitava a palidez, o corpo era magro e, embora parecesse jovem, ninguém poderia, com certeza, determinar sua idade. Com a mão, ela remexia nas águas escuras do lago enquanto cantarolava uma música estranha.

Ao vê-los chegar, a mulher parou sua canção, afastou-se da água e os convidou para que se sentassem e comessem. Orlando, em seu orgulho de adulto, não admitiu, mas havia algo de assustador nela, o bastante para que alguns ossos daquele homem começassem a doer.

O menino – pois as crianças são mais sinceras – ficou assustado e quis recusar o convite. O homem recriminou seu companheiro de viagem, afinal estavam ambos com fome, e arrastou-o para compartilharem o café da manhã com aquela estranha.

A mulher – após os três comerem – se apresentou como Safira e perguntou-lhes seus nomes. Orlando indagou como ela havia conseguido capturar a refeição –- afinal os deuses daquela terra pareciam não ter piedade dos famintos, pois os animais dali eram difíceis demais de ser pegos.

Ela riu – o som era seco e estranho – e apenas disse:

– Magia.
– Magia? – ele questionou, pois nunca havia encontrado qualquer coisa mágica em sua vida.
– Sim, – ela respondeu – eu sou uma bruxa.

O menino, tomado por aquela sabedoria que é própria das crianças, quis fugir e implorou que eles fossem embora. Orlando gritou com ele, criticou-lhe por ser tão covarde e explicou:

– Ora, ela pode ser uma bruxa, mas tem comida para nos dar.

A bruxa sorriu da tolice do homem e os três ficaram juntos.

Os dias se passaram. Orlando e Safira apreciavam a companhia um do outro - afinal ela fora solitária por toda uma longa vida e ele recebia dela todo o alimento de que precisava. O homem, porém, não gostava que o menino ficasse por perto, por isso exigia que este se afastasse o tempo todo ("Vá brincar em algum canto, mas nos deixe em paz!" – gritava ele) e a criança, meio por tristeza por não receber qualquer atenção, meio por temer a fúria do adulto, ia para longe e ficava caminhando e inventando brincadeiras até a hora da próxima refeição.

Para Orlando também era agradável está com Safira, pois nunca uma mulher tão bonita havia lhe dado atenção. Em certo momento, ele questionou sobre a beleza dela e a feiticeira respondeu:

– Você ouviu sobre as bruxas serem más e feias, mas os contadores de histórias não sabem tanto quanto imaginam e somente uma bruxa muito tola seria feia.

Ele meditou por um instante, tentando forçar sua mente a abrigar aquele novo conceito, e depois perguntou: – Mas e sobre vocês serem más?

Ela sorriu novamente –- um sorriso de profunda malícia e que pareceu belo para aquele homem:
– Ora, meu querido, as histórias não estão inteiramente erradas, embora fiquem muito longe da verdade... E, seja sincero, quem é você para falar de maldade?

Pelo resto daquele dia e também por toda a noite que se seguiu, Orlando evitou falar com os outros, ponderando sobre as estranhas palavras de Safira, porém, quando o sol nasceu novamente, ele despertou e esqueceu-se desta questão.

Naquela manhã, Safira fez a proposta a ele.

Ela lhe explicou que já era uma bruxa por mais tempo do que ele poderia imaginar e disse que desejava se tornar apenas uma mulher humana, como todas as outras.

Orlando pensou em como a magia facilitava a vida e questionou por que Safira pensava em abrir mão de algo assim. Ela gargalhou, – com um tom de zombaria que quase fez o homem atirasse furioso sobre ela – recriminou-o por ele ser tolo o bastante para julgar coisas que não seria capaz de entender e acrescentou:

– Antes de abandonar a magia, eu providenciarei uma grande fortuna, o bastante para uma vida confortável até o meu último fôlego... Mas não só para mim: eu gostei de você, Orlando. Há uns cinco dias de viagem fica uma vila, por trás daquelas montanhas, uma terra de gente simples, tola e interesseira, que existe à sombra das ruínas de um grande e antigo castelo -– onde, quando teu tataravô ainda não tinha nascido, eu transformei em pedra a princesa daquele lugar e me diverti observando o príncipe vagar pelo mundo, inutilmente procurando uma forma de curá-la, até que o frio, a fome, a loucura e a velhice tomaram a vida dele... Quero que venha comigo e que fiquemos juntos até que a morte escolha levar um de nós -– e ela contemplou-o com o sorriso mais encantador que aquele homem já vira.

Orlando ficou exultante, pois Safira era bela e a perspectiva de uma vida próspera, longe da miséria e da fome, ia além do que seus sonhos lhe permitiam ver.

A bruxa estava satisfeita com a resposta dele, porém o riso sumiu da face da mulher quando ela disse:

– Há, porém, uma última coisa que preciso realizar, um feito de extrema malignidade, antes de deixar de ser uma bruxa: um ato que devo induzir alguém a fazer. E será você, Orlando.

Ela tirou de suas coisas uma bolsa feita do couro de algum animal já extinto, dentro da qual estavam uma corda não maior que o braço de um adulto, tecida nas fibras de um arbusto que não mais existe neste mundo, e uma adaga de fabricação rude, na qual estavam gravados símbolos esquecidos pela humanidade. Safira pôs os objetos no chão e falou – num tom que parecia tão sombrio quanto o lago... Não, mais ainda sombrio – o que Orlando teria de fazer...

O homem teve vontade de gritar, mas não conseguiu. Tremia e colocou as mãos sobre a face, escondendo seu choro. Safira continuava falando – sobre a riqueza que teriam, sobre a vida ao lado dela – ele desejou que ela se calasse, mas a ambição e o desejo fizeram-no continuar escutando... Antes de aquela manhã chegar ao fim, Orlando enxugou as lágrimas e disse que faria como a bruxa lhe tinha dito.

– Ótimo - disse Safira, e seu rosto pareceu-lhe demoníaco – Então, chame o menino.
A bruxa guardou aqueles objetos terríveis e Orlando obedeceu-a.

O menino voltou para perto do homem, tão inocente quanto qualquer criança, e estranhou a mudança em Orlando: nunca antes aquele adulto havia sido tão gentil, nunca tinha lhe dado tanta atenção quanto naquele momento. Como é próprio dos pequenos, o menino ignorou suas estranhezas e aproveitou aqueles instantes, os mais felizes que já tivera. Contudo, por mais que ele se esforçasse, não podia deixar de prestar atenção no fato de Orlando tremer em meio aos sorrisos e na forma severa com a qual Safira olhava para o homem, como se estivesse cobrando algo... E isso fazia Orlando tremer ainda mais, até que havia lágrimas escorrendo pelo rosto dele.

O menino perguntou o que estava acontecendo, mas o homem escolheu mentir e disse que não havia nada. A tarde se aproximava do final, quando Safira disse algo para Orlando, que pareceu a coisa mais estranha que o menino já escutara:

– Meu querido, logo a noite chegará, você terá falhado... E eu precisarei procurar um outro homem que possa me ajudar e que mereça minhas dádivas.

Ao escutar isto, Orlando estremeceu mais uma vez, parou de fingir e começou a chorar de uma forma que o menino nunca vira. O garoto abraçou-o tentando consolá-lo. Com a visão quase encoberta pelas lágrimas, Orlando olhou para a bruxa, que estava segurando aqueles dois objetos sangrentos, oferecendo-os a ele.

Como havia prometido a Safira, ele usou a corda para estrangular o menino e, quando não havia mais vida no corpo da criança, Orlando cortou-o em vários pedaços e atirou todos no lago.

Então, suas roupas cobertas por uma mistura de lágrimas e sangue, o homem murmurou uma maldição para si mesmo e olhou para Safira. Ela havia mudado. Ainda era bonita, porém aquela beleza mágica, que tanto o havia encantado, fora embora para sempre, deixando no lugar uma mulher como qualquer outra.

Ela apontou para um saco, feito de um tecido velho e sujo, que parecia ter acabado de surgir naquele lugar. Cheio de cobiça, Orlando abriu-o e enfiou as mãos, apenas para puxá-las de volta com moedas se derramando entre os dedos... Ouro, mais ouro do que ele poderia sonhar.

Ele esqueceu-se do menino e olhou satisfeito para a mulher. Com selvageria, rasgou as roupas dela e depois as suas próprias. Eles fizeram amor na margem daquele lago, por todo aquele tenebroso crepúsculo e por toda a maligna noite que se seguiu.

Pela manhã, felizes com sua cumplicidade, eles partiram para a vila próxima, deixando o lago sozinho, meditando sobre mais um de seus segredos sombrios.

Fonte:
Revista João do Rio. Ano 7 - Número 42. Abril / Maio de 2010

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