segunda-feira, 14 de junho de 2010

Aparecido Raimundo de Souza (Consequências de um Esbarrão)

Imagem de Gutoliva (Guto de Oliveira)
Foi um encontro, aliás, uma trombada casual, muito ligeira, num dia em que faltou luz no prédio comercial onde o Eduardo e a Fernanda trabalhavam. Ela descia afoita, para um lanche de 15 minutos na padaria da esquina. Ele subia para o sexto piso, onde possuía um estúdio de fotografias.

Na pressa, Fernanda jogou longe uma caixa repleta de envelopes que o rapaz carregava com cuidado especial. Se sentindo culpada pela trombada inesperada e, conseqüentemente, vendo o desespero do moço para apanhar os invólucros que se espalharam, se abaixou, solícita, e o ajudou a recolher os pertences.

— Perdão, perdão. Nossa como sou desastrada. Não era intenção...

Eduardo, de cócoras, ia recebendo um a um os envoltórios e os colocando de volta na caixa, ao tempo que jogava a culpa para si próprio:

— Não há o que perdoar. Eu é que não olhava pra frente. Vinha com os pensamentos longe. Machuquei você?

Passando das palavras imediatamente à ação, depositou num canto os documentos — na verdade negativos de filmes — e acariciou o braço de Fernanda. Havia um minúsculo esfoladinho e brotava um filete pequeno de sangue.

—Está doendo?

Fernanda meneou a cabeça de modo negativo.

— Desculpe.

Os olhos de Eduardo, nesse instante, ficaram muito próximos da garota. Os lábios, perto demais, pareciam, na realidade, querer se juntar num beijo de intensidade voraz. Eduardo, contudo, era tímido para essas coisas do amor. Fernanda, por sua vez, nunca havia experimentado um trocar de salivas apaixonado, nem sentido um friozinho na barriga, como o que sentia naquele momento.

Não fosse um sujeito barrigudo com duas crianças pedir passagem, certamente os rostos de ambos teriam se unido no mesmo calor da emoção que os envolvia em cálida ternura.

— Você não me disse seu nome.

— Não! Sou o Eduardo.

Ela se abriu num sorriso largo e meigo.

— O meu é Fernanda. Qual é o seu andar?

— Sexto, 604.

— Décimo segundo, l.20l.

— O que você faz no 604?

— Sou fotógrafo. E você, no l.20l?

— Secretária de um consultório dentário.

Ficaram em silêncio por alguns minutos.

— Quer saber de um segredo? Estou precisando, não é de hoje, passar a mão em mim e fazer uma visitinha a uma cadeira de dentista. Meu sorriso anda meio desfalcado. Seu patrão por acaso é muito careiro?

— Não é patrão, é patroa. Boa de jogo. Faz qualquer coisa para segurar um cliente. A propósito: você me disse que é fotógrafo?

— Disse e confirmo.

— Lembrei de um detalhe interessante. Veja só como são as coisas. Mamãe, dias atrás, me disse que vai mandar fazer um book e me dar de presente no dia do meu aniversário.

— E quando é?

— Segredo. Não posso revelar...

— Nem pra mim?

Eduardo e Fernanda continuaram a jogar conversa fora e a trocar pequenos afagos e carícias. Pareciam colados no piso frio daquele lance de escadas. A pressa se dissipara como por encanto.

— Verei você de novo?

— Claro! Diga onde e quando?

— Calma! Dá pra mim o seu telefone?

— Não posso...

— E por que não?

— Se o der, ficarei sem.

Um sorriso cheio de graça bailou iluminado, no rosto dos dois jovens.

— Então, me dá só o número?

— Só se você me der o seu antes.

— Certamente que sim.

Quase Fernanda perde a hora de voltar ao serviço. Eduardo também se esqueceu de tudo, até das clientes que o esperavam na sala. Subiram juntos, vagarosamente, agarradinhos um no outro, trocando palavras melosas.

— Eu fico aqui. Não quer chegar? Um cafezinho, ao menos?

— Meu tempo esgotou. Amanhã, tudo bem. Se os elevadores estivessem funcionando...

— Olha só como as coisas acontecem na vida da gente. Graças a uma súbita falta de energia acompanhada de uma ligeira colisão de corpos, você cruzou o meu caminho.

— Não foi bem um caminho, mas uma escada enorme...

— Que me fez ficar literalmente preso nos seus degraus.

Dia seguinte, voltaram a se ver e a se falar. Desta vez, não no interior do edifício, ou no lance de escadas onde tudo começou, mas num restaurante aconchegante, perto dali, com música ao vivo e até uma garrafa de champanhe, para comemorar.

De mãos juntas, rostinhos colados, corações batendo descompassados, iniciaram um romance bonito que, meses depois, acabou, realmente, em namoro sério, oficializado na casa dos pais dela, com direito a troca de alianças, presentes, bolo, muita cerveja, churrasco e uma recepção inesquecível para confraternização dos parentes, amigos mais chegados e o anúncio, em primeira mão, da vinda de um lindo bebezinho.

— Vai ser um menino.

— Qual o quê! É menina. E será linda como a mãe...

Foi um encontro, aliás, uma trombada, um esbarrão casual, muito ligeiro, num dia em que faltou luz no prédio comercial onde o Eduardo e a Fernanda trabalhavam. Ela descia afoita, para um lanche de 15 minutos na padaria da esquina. Ele subia para o sexto piso, onde possuía um estúdio de fotografias.

Com esse casal, os desígnios de Deus seguem em frente. A história se repete e haverá de se renovar, indefinidamente. Na verdade, é o milagre da vida, através do seu cotidiano, dando continuidade ao essencial, promovendo a sua parcela de felicidade para que o dia a dia das pessoas não passe como o caracol que se desfaz em baba, ou como o feto abortivo que não viu a luz do sol.

Fonte:
Colaboração do Autor.

Um comentário:

Unknown disse...

Para que o amor aconteça basta apenas que duas pessoas estejam no lugar certo na hora certa...
nada acontece por acaso, nem mesmo o amor.
Lindo conto, parabéns