RESUMO: Há de se reconhecer o vasto mundo que se criou de manifestações que nos fazem rir. Em várias expressões artísticas, há uma procura incessante, tanto por parte de quem produz, quanto por parte de quem as procura, pelo trabalho que envolve a comicidade. Nesse sentido, o presente estudo terá como alvo um breve estudo histórico ligado ao riso, dentro da literatura, focalizando, principalmente, as expressões atuais como representantes de um movimento que ganha forças na contemporaneidade, representado aqui pelo contista Moacyr Scliar.
Segundo Viana Moog, em Heróis da decadência (1964), não há vestígios de textos ou obras literária humorísticas na Antigüidade, haja vista que existem dois elementos próprios da atualidade que não era possível de serem encontrados na antigüidade: “a ânsia doentia de tudo compreender e a dúvida torturada” (MOOG,1964:26). Os antigos, diz o autor, tiveram o privilégio de não se torturarem com a dúvida que assola a contemporaneidade e que é a grande geradora do humor.
O momento inicial provável para o aparecimento do humor na literatura é a época da decadência de Roma. Tempo em que os escritores começaram a destilar seu cepticismo e a se ocupar das coisas em geral, tanto do passado quanto do presente, com um certo ar de enfado, de incredulidade, de zombaria e de irreverência.
Na primeira fase da Idade Média não havia também espaço para o humor, já que a Inquisição condenava à fogueira qualquer manifestação desse tipo. A literatura dessa época gira em torno de duas entidades: os santos e os cavaleiros. Não se poderia fazer humor sobre nenhuma das duas, haja vista que, em ambos os casos,o únicos sentimentos possíveis era o orgulho e a admiração.
Esse tipo de literatura tem seu fim com Orlando Furioso, de Ariosto, permitindo um repontar do humor na literatura. Alguns nomes europeus com Chaucer e Rabelais marcaram essa época como bons humoristas. Porém, é no século XVI que surge na Espanha um humorista insuperável, talvez o maior de todos os tempos: Cervantes. “Com ele o humour se integra em todos os caracteres com que ainda hoje se apresenta. Antes, ninguém foi igual, depois, ninguém o excede”. O autor continua dizendo que Cervantes serve como marco divisório na literatura humorística: “Até então só se conheciam humoristas como os da decadência romana, que riam do mundo, mas como simples espectadores, sem incorporar a própria pessoa ao número de sêres aproveitáveis como matéria prima de humour [...]. no Cervantes, há, porém, mais que isso: há o que Pirandello denomina o sentimento do contrário” (ibid:74).
Ainda num período de transição entre a decadência do trovadorismo e o advento do “Século de Ouro Português” (séculos XIV a XVI), destaca-se o nome do escritor português Gil Vicente, que fez uso do humor através da sátira social em seus Autos. Usando o texto escrito em versos, o escritor fez uso de uma variedade de sugestões e tendências anteriores e/ou contemporâneas do teatro – milagres, mistérios, moralidades, a farsa, entre outros –, retratando o cotidiano português da Alta Idade Média e denunciando as práticas abusivas de grupos sociais como o clero, a nobreza e a justiça. Por isso, Gil Vicente teve sua obra bastante prejudicada pela repressão exercida pelos tribunais da Santa Inquisição.
Na literatura brasileira, os primeiros vestígios da produção humorística talvez estejam na segunda geração dos poetas românticos, também chamada de “cancioneiro alegre” pelas produções que, juntamente com os temas relacionados à solidão, à morte, à melancolia, aos enganos amorosos, também faziam surgir a paródia, a sátira e a pornografia. “Tais poemas formam um conjunto impressionante (...) não só pelo volume, que não é pequeno, mas também e principalmente pela qualidade literária” (FRANCHETTI, 1987:7).
Outro momento importante para o humorismo brasileiro deu-se no período transitório do regime monarquista para o republicano. Dentro da história literária, esse período corresponde ao movimento da Belle Époque, que, concomitantemente com as mudanças políticas e sociais por que passava o país, propunha mudanças no âmbito estético-literário, como forma de igualar o Brasil aos países desenvolvidos através da cultura. Nesse período, os humoristas encontraram um vasto campo de atuação e, ao mesmo tempo, uma intolerância muito grande por parte dos circuitos da cultura culta e da crítica literária.
Inserido num contexto em que emergia a racionalidade política da nação e em que se questionava a respeito do conceito de nacionalismo, o humor encontra nas arestas deixadas tanto pelos políticos quanto pelos literatos, seu corpus de trabalho, contra o qual expressava sua rebeldia, sua sátira e rechaçamento.
Diante desses meios de expansão da comicidade, os humoristas da época provaram sua capacidade de trânsito e de experimentação através de inúmeras formas cômicas, “adaptando-as à rapidez e à variedade dos modos de difusão e, por extensão, às formas peculiares de representação da história brasileira”. A paródia apresentou-se como a mais peculiar de todas e também a mais amplamente utilizada, revelando-se “um mecanismo ou uma técnica de representação da própria realidade brasileira” (SALIBA,2002:96). Seus autores parodiavam os versos parnasianos ou simbolistas, imitando seus formatos, porém de forma a ironizar o regime republicano de uma forma menos polida e mais direta que os seus antecessores.
Estando sempre à margem da literatura oficial e sendo reconhecido num grau menor, o humorista da virada do século mostrou-se competente e hábil para bem representar a realidade brasileira de uma época tão conturbada como essa. Dessa forma, pode-se dizer que, além dessa representação histórica brasileira, o humorismo também deu espaço para que o indivíduo pudesse afirmar-se diante de uma espécie de vazio que pairava sobre todos.
Através desses humoristas anônimos, de certa forma, no que concerne a um reconhecimento da corrente literária vigente, é que, como que num movimento de eco, o riso pôde expandir-se de tal forma que transformou o que era margem em centro: surge o Modernismo. Suas formas de representação – concisão, brevidade, circunstancialidade e subitaneidade – já estavam presentes nas expressões humorísticas de algumas décadas anteriores, apesar de não reconhecidas como literárias.
Então, com a chegada do modernismo, o humor realmente se expandiu nos diversos gêneros literários; o uso da paródia, da sátira, do exagero em suas várias nuances mudaram a cara da literatura séria e sisuda dos séculos anteriores. Muitos são os nomes brasileiros que se engendraram por esse caminho. E muito maior ainda é o número dos que ainda o fazem. O humor literalmente alastrou-se pelo mundo literário.
Surgindo como o movimento da inovação estética, o Modernismo caracterizou-se primeiramente pelo anarquismo e pela atitude desafiadora. Dentro de suas manifestações artísticas está a instauração do “feio” e a suspensão do “belo”. Dessa forma, o cômico e o grotesco foram também incluídos nessa fase, principalmente pelo gênero lírico. Foi através do humor que os modernistas desmistificaram muitos conceitos até então vistos como sérios e intocáveis; trouxeram, no lugar do academicismo sério ou metafísico, a ingenuidade, o culto da infância, o primitivismo, a simplicidade do cotidiano.
Nesse contexto, o humor foi usado, em sua maioria, como repúdio às formas artísticas anteriores e como expressão da consciência crítica acerca dos acontecimentos sociais. Um dos maiores exemplos dessa criticidade é Macunaíma, de Mário de Andrade. É através da figura do anti-herói e suas aventuras que o autor revela sua consciência crítica e seu engajamento no tocante à identidade nacional – tema muito trabalhado nessa época – de forma alegre e bem humorada.
Outro recurso largamente utilizado pelos modernistas, principalmente na poesia, é a paródia, que “aponta um caminho para a poesia criativa e acaba por caracterizar satiricamente o ‘status quo’ literário”. Parodiar para os modernistas era revelar “uma consciência prática a ironizar a linguagem poética anti-funcional” (COSTA, 1982:103). O poema mais parodiado nessa época é “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, revelando elemento de destruição e de reconstrução e como exemplo de um novo jeito de falar num e para um novo tempo.
Trazendo o humor e a irreverência como herança do Modernismo, as várias manifestações artísticas contemporâneas usam e abusam desses recursos em suas obras.Ao contrário, esse fenômeno não se restringe apenas a uma ou outra arte, ou em uma ou outra obra; o humor está impregnado em (quase) tudo, e tudo é passível de se transformar em objeto do riso.
Atentemo-nos para os diversos programas televisivos. Boa parte deles se dedica ao humor: “A praça é nossa” (SBT), “Casseta e Planeta” (GLOBO), “A escolinha do professor Raimundo” (GLOBO), “Os normais” (GLOBO), “Sai de baixo” (GLOBO), “A grande família” (GLOBO), “Pânico” (REDE TV), entre outros. Observemos as piadas, as crônicas e os quadrinhos inseridos em jornais e revistas; muitos filmes no cinema ou na televisão; alguns programas de rádio; a tempestade de charges que surgiram em quase todos os meios de comunicação; a Internet, que está carregada de páginas dedicadas somente ao humor. Notamos, nesse contexto, uma tendência muito forte a satirizar tudo e todos. Não há o que escape das garras da comicidade (nem os seres supremos de antes); desde acontecimentos banais do cotidiano até grandes tragédias, como guerras, desastres, atentados terroristas. É só o momento de passar a comoção do acontecido que já aparecem as piadas, as charges, uma tirada sobre o assunto. Então, o que era trágico passa a ser cômico.
Esse fenômeno já foi descrito por Bergson quando afirma que o riso depende da indiferença do espectador. Afirma ainda que numa “sociedade de puras inteligências provavelmente não mais se choraria, mas ainda se risse” (BERGSON,2001:3), já que o riso se liga à inteligência pura. É a inquietação do saber e a falta de comoção que gera o riso. Podemos perceber na sociedade contemporânea esses dois aspectos: nunca se descobriu tanto e nunca se importou tão pouco com o próximo. A correria diária e a luta com uma concorrência acirrada por um lugar ao sol levam o homem a se isolar em seu micro-mundo, deixando a coletividade (macro-mundo) e seus problemas, seus dissabores ou suas alegrias para segundo plano. Além disso, há, no nosso tempo, uma genérica descrença em uma solução grandiosa para as diversas agruras que invadem a sociedade. A dúvida é o mal da contemporaneidade. Duvida-se do caráter de uns, do amor de outros. Duvida-se dos políticos, da igreja, dos pais, dos filhos, do professor e do aluno. Para Slavutzky (apud KUPERMANN,2003:15), a contemporaneidade seria caracterizada pelo espectro da derrota do sujeito: “em lugar das paixões, a calmaria, em lugar do desejo, a ausência do desejo, em lugar do sujeito, o nada, e em lugar da história, o fim da história”.
Diante de todos esses conflitos que se cercam do homem moderno, resta-lhe rir de tudo e de todos, e mais: fazer também os outros rirem. Como se a ordem fosse: “Já que não podemos vencê-los, rimos deles”. A procura pela comicidade em suas várias manifestações aumenta a cada dia, talvez como uma forma de defesa, como já se referiu Freud, no que se refere a não ter soluções para os diversos problemas. Rir para não chorar. Do mesmo modo também afirma Gilles Lipovetsky, em A era do vazio (1989), que vivemos em uma “sociedade humorística”, em que há um desenvolvimento generalizado do código e do estilo humorístico. Esse fenômeno é claramente percebido em campos bastante heterogêneos: na publicidade, nos slogans de manifestações políticas, na moda, na arte, nos meios de comunicação de massa e, sobretudo nas relações interpessoais; o clima de irreverência e espontaneidade passa a ter um valor privilegiado, como se nada devesse ser levado a sério.
Daniel Kupermann, em Ousar rir (2003:15-16) diz que, à medida que uma fase de depressão, de um “mau humor crônico” assola a sociedade contemporânea (acompanhada por decepções nos diversos campos possíveis ao longo de sua história e sem uma aparente esperança também diante do futuro), é bastante natural que se tenha tantas manifestações humorísticas. “Trata-se agora de evitar qualquer litígio, em nome do bem-estar definido por uma cultura na qual a adaptação e o sucesso pessoal são os alvos almejados”. Assim, o humor passa a dominar as várias instâncias da sociedade com a mesma tônica: “ausência de conflitos; impossibilidade de revolta;descrença”; é o humor descontraído que se apresenta, quando ninguém acredita na importância das coisas. Ele se apresenta, de acordo com as idéias de Kupermann (2003:16-17) como um humor acrítico e gratuito, ‘humor de massa’ próprio da sociedade hedonista na qual é o instrumento privilegiado para a promoção de uma proximidade cordial e de uma atmosfera de comunhão liberta de tensões. O humor pós-moderno é, assim, uma espécie de lubrificante social.
Ainda segundo o psicanalista, essa descontração generalizada remete-se e é proporcional “à falência de projetos comuns e ao desinteresse das possibilidades de transformação social” (KUPERMANN,2003:17), ou seja, ele é a prova da descrença pós-moderna perante as mudanças coletivas. Nesse sentido, diz ele, o humor contemporâneo é, acima de tudo, cínico, pois reflete alguém que ri de si mesmo e de suas próprias desgraças; é um riso amarelo, constrangido. É o humor da “descontração e do cinismo desencantado”, em que vigora “a desvitalização e a banalização esterilizante”. Por isso, o homem pós-moderno tem dificuldades em “rebentar de riso”, em sair de si, em sentir-se entusiasmado perante aos acontecimentos. “O humor de massa seria, assim, a pálida atualização da risada entusiasmante que, da Antigüidade ao Renascimento, acompanhou festividades populares, e na qual o Romantismo buscou inspiração para a libertação do espírito” (KUPERMANN,2003:21).
Sob uma outra perspectiva, Luiz Carlos Travaglia (1990:55), aponta o humor contemporâneo como crítico e engajado, usado como uma espécie de arma de denúncia, de instrumento de manutenção do equilíbrio social e psicológico; uma forma de revelar e de flagrar outras possibilidades de visão do mundo e das realidades naturais ou culturais que nos cercam e, assim, de desmontar falsos equilíbrios.
Segundo o lingüista, partindo do ponto de vista social e político, o humor desempenha um papel fundamental na sociedade no que concerne ao ataque à censura, ao que é pré-estabelecido, ao controle social e ao estabelecimento de outras possibilidades nesses mesmos âmbitos. Com o intuito de desafiar a autoridade do discurso oficial, através de críticas e de denúncias depreciativas, o humor torna possível o que pela via do sério seria considerado “crime” e desacato.
Mesmo o humor veiculado pelos meios de comunicação de massa não é visto por Travaglia como alienado e “pálido” como afirma Kupermann. Ele é, ao contrário, uma forma criativa, uma arma, um meio utilizado em todas as sociedades para “descobrir (através da análise crítica do homem e da vida) e revelar verdades escondidas e falsificadas, permitindo uma visão especial da vida, uma nova visão do mundo pela transposição de conceitos, uma ampliação dos contatos com nossas realidades.” O mesmo autor ainda coloca o humor como responsável por ser “o senso das proporções e da verdade escondida” e por revelar “a alegria da descoberta” de forma “não-convencional, sinuosa, intuitiva” gerando um compromisso entre humor e riso, e entre esses e a sociedade (TRAVAGLIA,1990:67).
Em meio a essa divergência de idéias a respeito do humor contemporâneo, resta-nos refletir a respeito do conceito de engajamento e de crítica social utilizada pelo movimento Pós-moderno e em que temática o humor dos nossos dias estaria inserido, sem no entanto enquadrá-lo em sistemas e características pré-estabelecidos. Para exemplificar essa reflexão, dois contos do autor Moacyr Scliar foram selecionados. Dessa forma, podemos pensar a questão da criticidade ou passividade de uma forma mais concreta.
O primeiro deles é “Ofertas na Casa Dalila”; conto narrado em primeira pessoa, que relata a inquietação do filho de um comerciante perante o concorrente de seu pai, com uma loja igualmente pequena a sua, desarrumada, mas com uma clientela muito maior. A proprietária da loja é descrita pelo narrador como “uma velha de cabelos oxigenados e olhos pintados que, da porta, me encara desafiadora” (SCLIAR, 1976: 49). A partir desse questionamento, o narrador se propõe a ser, ele mesmo, o investigador para descobrir a causa do grande movimento na loja de sua concorrente.
Entende rapidamente o que se passa: “as notas de compra dão direito à freqüência de certas sessões cinematográficas realizadas nas noites de sexta-feira, no fundo da própria Casa Dalila” (SCLIAR,1976: 50). Com o intuito de resolver esse mistério, o narrador obtém algumas notas e vai disfarçado à sessão da sexta-feira. Já no ambiente improvisado entre as caixas e manequins, vê o título do filme “Aventura de Dalila” e percebe que se trata de um antigo filme pornográfico de terceira categoria, com uma mulher muito bonita.
Quando o filme termina, e todos saem, o filho do comerciante tenta destruir a fita, mas desiste perante um pedido da velha de rever o filme mais uma vez. Enquanto os dois assistem, ela revela ao rapaz que é Dalila e ele percebe que os traços realmente são os mesmos. Ele, rendido aos encantos da velha, mantém uma relação sexual com ela e convence seus pais a venderem a loja para ela. Promete nunca mais voltar ali.
Nesse conto, a presença do cinema é marcante. Primeiramente, não se trata aqui de um lugar específico e até apropriado para uma sessão cinematográfica. Antes, era um ambiente com poucos recursos, em meio a um depósito da loja.
“(...) sou conduzido a uma sala mal iluminada nos fundos da loja. Ali, entre manequins sorridentes e caixotes de mercadoria, estão os espectadores.” (SCLIAR,1976:50).
Outro dado bastante interessante é o preço do ingresso, ou mesmo, como este era conseguido. Em razão da propaganda que a velha Dalila queria fazer de sua loja, numa promoção muito sutil, só entrava no “cinema” quem obtivesse notas de compras do seu estabelecimento. Como a loja era exclusivamente masculina, não foi difícil induzir os espectadores para as sessões da sexta-feira. Esse fato marca no conto o poder da propaganda que é, como dizem: “a alma do negócio”. Foi a partir dela e, conseqüentemente do prêmio concedido através da compra que a proprietária conseguiu vencer seus concorrentes, que até então “era a única loja da zona, com sua fiel clientela de funcionários públicos e pequenos comerciantes” (SCLIAR, 1976: 49).
Quando o narrador-personagem vai à sessão cinematográfica nos fundos da “casa Dalila”, percebe que se trata de um filme pornográfico. Esse tipo de filme era muito comum no final da década de 60, época em que o cinema teve um dos maiores incentivos governamentais. Porém, sua qualidade era muito baixa e se baseava em roteiros pornográficos e pornochanchadas. Este que nos anos 40 e 50 simbolizava uma manifestação de afirmação cultural da burguesia, com a importação do cinema americano, decai consideravelmente por não conseguir acompanhar a tecnologia estrangeira.
Dalila se orgulha de ter sido atriz “pornô”, dizendo já ter feito muito sucesso na Europa. Esse orgulho é comum entre os brasileiros. O sucesso no estrangeiro parece ter mais peso do que a fama nacional, mesmo que seja para ser um artista de filmes de baixa categoria. Ser aceito pelo público internacional representa um respaldo muito grande. Como se fosse uma espécie de aprovação globalizada. Isto é, como se um continente pudesse dar conta da preferência de um grupo muito maior.Como ela mesma diz: “Eu mesma, na Europa fui muito famosa...”
Dizer que foi famosa na Europa, pressupõe sucesso em todos (ou a grande maioria) os países que a compõem. Talvez isso não seja tal verdadeiro quanto aparenta ser. Além disso, a frase pode ter um tom irônico no que se refere à questão da nacionalidade ou brasilidade, já que “fazer sucesso” significa para muitos ser conhecido em outros países.
Além disso, percebemos uma entronização da cultura européia em nosso meio. A existência desse fenômeno muito deve à presença dos meios de comunicação que tornam os espaços menores por seu poder de rapidez e de expansão geográfica.
Afirmar a existência de uma memória internacional-popular é reconhecer que no interior da sociedade de consumo são forjadas referencias culturais mundializadas. Os personagens, imagens, situações, veiculadas pela publicidade, historias em quadrinhos, televisão, cinema constituem-se em substratos desta memória (ORTIZ,1996: 126).
No conto aqui mencionado, percebemos exemplos da cultura mundializada. No primeiro, a atriz que fez sucesso na Europa fazendo filmes pornográficos. Essa globalização não se dá de forma desinteressada pois, quando se importa um produto, importa-se também a cultura nele embutida. Ainda mais em se tratando de bens culturais, muita da ideologia do exportador vem juntamente com o produto importado. Nesses casos, os países desenvolvidos têm uma grande vantagem sobre os subdesenvolvidos, visto que são os provedores da maior parte das importações.
“Ofertas na Casa Dalila” traz um outro aspecto muito importante: o simulacro. Isso porque, se entende simulação por uma reconstrução da realidade. Segundo Jean Baudrillard (1991:9) “trata-se de uma substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de todo o processo real pelo seu duplo operatório (...). O real nunca mais terá oportunidade de se produzir”. Continua dizendo que:
A simulação parte, ao contrário da utopia, do princípio de equivalência, parte da negação radical do signo como valor, parte do signo como reversão aniquilamento de toda a referência (BAUDRILLARD,1991:13).
De acordo com as idéias acima, os meios de comunicação podem ser vistos com veiculadores do simulacro, pois reinventam a realidade e a transmitem uma versão distorcida da mesma, transformando o mundo em mera imagem, pseudo-eventos e espetáculos (JAMESON, 1996).
No conto aqui analisado, o simulacro se evidencia pela imagem que o narrador-personagem vê na tela.
De fato, a primeira cena já mostra uma cama; e dentre peles e plumas emerge o rosto da devassa: olhos pintados de pretos, boca em coração – linda, a diaba, apesar de tudo (SCLIAR, 1976: 50).
Mais adiante ele se depara com o real e o simulacro frente a frente. Isso acontece quando o filho do comerciante aceita ver o filme novamente, por intermédio da suplica da velha Dalila. Enquanto assistem à tela, a mulher lhe confessa ser ela a bela moça do filme.
Olho-a. De fato, parece-me reconhecer no rosto gordo os traços da mulher da tela.
(...)
Não há dúvida: os mesmos olhos, a mesma boca” (SCLIAR,1976:52).
Nesse momento, as duas Dalilas (a atual velha e a antiga jovem), se fundem e o espectador se confunde com as duas. Nesse momento, ele se deixa seduzir (ou seduz) por ela e caem no chão, ali mesmo, entre os manequins. O jovem concorrente se entrega à velha comerciante. Cede ao modelo ou ao simulacro ? Isso não é possível saber, pois o rapaz não deixa transparecer se ficará fascinado por uma das duas. Ou seria pelas duas ao mesmo tempo ? O que se pode afirmar que a fascinação somente se deu quando reviu o modelo (a velha), a partir do simulacro (a jovem).
O segundo conto é intitulado “O clube dos suicidas” e narra um programa de entrevistas numa estação pobre de rádio. O objetivo dessas entrevistas era saber o motivo pelo qual as pessoas que ali estavam tentaram suicídio. Assim, o entrevistador passa o programa todo perguntando os detalhes das tentativas de morte e orientando cada participante a não pisar no fio do microfone.
A fragmentação do conto acima é um aspecto bastante interessante e comumente encontrado na ficção contemporânea. No caso de “O clube dos suicidas” esse recorte chega ao extremo de não apresentar narrador, nem uma forma tradicional da prosa ficcional. O que se tem aqui é o próprio programa de rádio. Como se o leitor estivesse ouvindo (lendo) a uma entrevista. A única diferença é que não há a voz do entrevistado. O entrevistador (narrador) fala por ele, relatando as ações os motivos que as desencadearam: “A senhora – o que foi que tomou? Valium. Muitos? (...) Quantos comprimidos de Valium? Doze? (...)” (SCLIAR, 1995:426).
Ainda em relação à estrutura, nota-se que o conto é apresentado num único parágrafo, marcando, além da brevidade da narrativa, o recorte de apenas um instante, assemelhando-se a uma fotografia, como se referiu Julio Cortázar. O enfoque em um único instante transmite a idéia de velocidade do conto (e do programa de rádio). Além disso, em se tratando do programa, a rapidez com que as pessoa são entrevistadas, faz o leitor imaginar que há no estúdio fictício muitos outros à espera do locutor: “O próximo quem é? O senhor? O primeiro homem de hoje, pessoal. Palmas! Mais palmas! (...) Senta ali, meu caro, junto com as mulheres” (SCLIAR,1995:427).
Como já foi dito, as entrevistas são interrompidas com pedidos e orientações do entrevistador para que não pisem no fio. Primeiramente, pode-se observar que se trata de uma estação de rádio muito pobre, como ele mesmo diz: “Cuidado com o microfone. A rádio é pobre, não tem dinheiro para comprar microfone sem fio, então tem que cuidar” (SCLIAR,1995:426).
Esse tipo de rádio existiu ( e ainda existe) num imenso esforço para sobreviver em meio as grandes redes. Para isso, inventa programas absurdos para chamar a atenção do público. Programas sensacionalistas com “artistas” anônimos e suas adversidades. Note-se que nenhum dos entrevistados possui nome, nem mesmo entrevistador, retomando novamente a idéia que Jameson faz do anonimato, ou seja, indivíduos sem nome representando grupos coletivos.
"O grotesco(...) é apresentado como signo excepcional, como um fenômeno desligado da estrutura da sociedade – é visto como o signo do outro. A intenção do comunicador é sempre colocar-se diante de algo que está entre nós, mas que ao mesmo tempo é exótico, logo sensacional”(SODRÉ, 1983:73).
Até o locutor se irrita com a situação precária em que trabalha. E essa irritação se dá de forma gradativa, criando a tensão do conto. Chega a um momento, em que não se sabe se o assunto principal do conto são os suicídios não realizados, ou se é o medo do entrevistador de quebrarem o fio do microfone. No início ele diz:
“Cuidado com o fio, pelo amor de Deus.”
“Cuidado com o fio, minha amiga, cuidado com o fio” (SCLIAR,1995:426).
Mais adiante, ele continua:
“Cuidado com o fio, diabo!”
“Olha o fio merda! Desculpe” (SCLIAR,1995:427).
(...)
E a senhora tão velhinha? Quis se enforcar? Com o fio de ferro elétrico? (...) e dá? Dá para se enforcar? Mostra para gente. Pode usar o fio do microfone (SCLIAR,1995:427).
Esse objeto tão mencionado pelo entrevistador representa não só a precariedade da rádio, mas também pode ser visto como o fio condutor da narrativa, em que o apresentador vai expondo as histórias dos outros e a sua própria história. Esse fio vai denotando uma tensão muito grande tanto no entrevistador quanto no leitor, marcando uma especificidade do conto: a intensidade.
A tensão vai crescendo, à medida em que o conto (programa) vai se apresentando. Ao fim, as histórias dos entrevistados e a história do entrevistador se fundem. Essa fusão é mais evidente na última frase do conto: “Pode usar o fio do microfone”; quando pede a uma senhora para demonstrar o enforcamento mal-sucedido com o fio do ferro elétrico.
O exótico presente em “O clube dos suicidas” está exatamente na criação de um programa, em que a grande atração são os suicidas em potencial, porém, decepcionados com suas tentativas fracassadas. São as pessoas comuns que estão ali, na expectativa de sair do anonimato através de histórias grotescas.
Por outro lado, vê-se um veículo da comunicação de massa aproveitando-se desse desejo para conseguir o que quer: o consumidor/ouvinte. Esse, por sua vez, tem verdadeiro fascínio por fatos catastróficos, em que as mazelas humanas são colocadas em pauta.
Esse fenômeno de intenções tripartidas resulta em programas de baixa qualidade, onde o que parece ser aos olhos humanos uma atrocidade, passa a significar apenas mais um espetáculo que os mesmos olhos aplaudem num programa de entrevistas.“A reciclagem de matrizes tradicionais como o melodrama, o cômico e o grotesco é o que muitas vezes permite a interação íntima dos produtos midiáticos com o cotidiano das classes populares”(BORELLI, 1994:34).
São histórias relacionadas a problemas comuns entre as pessoas. E essa predileção por programas de sensacionalismo pode ser justificada pelo fato de que o ser humano tem uma tendência a se atrair pelas agruras do outro, talvez para minimizar seu próprio sofrimento.
Nesse caso, o programa vai ao encontro das necessidades das classes menos privilegiadas, pois torna público o drama de muitos: desemprego, violência, etc. Além das formas que cada um encontra para fugir de seus próprios problemas: o suicídio.
A senhora o que tomou mesmo? Valium.
E o que foi que ela tomou? Querosene? Mas que coisa, tão novinha, tão miúda. Ah, tomou porque a senhora batia nela?
O que foi que tomou? Raticida? (...) E por quê? (...) Porque está desempregado.
E essa moça? Se jogou na frente do carro?
E a senhora, tão velhinha? Quis se enforcar? Com o fio do ferro elétrico?
E assim o locutor vai expondo os motivos e as formas das tentativas dos suicídios não bem sucedidos. O melodrama dos detalhes é o que fascina o ouvinte que ele quer atingir. Mesmo que para conseguir os entrevistados a rádio tenha que dar pequenos brindes em troca da divulgação das histórias.
Percebe-se, explicitamente, como as pessoas procuram cada vez mais os veículos comunicativos para conseguir o que não encontram nas instituições mais tradicionais, como a igreja , os sindicatos , a escola. O espectador procura ser ouvido, ser importante, aprender coisas da vida, se informar, ou até encontrar algo (ou alguém) que se assemelhe a ele – em suas aflições, anseios ou alegrias. E isso, encontrará na comunicação massiva, como foi observado por Beatriz Sarlo (1997: 102): “Onde quer que cheguem os meios de massa, não passam incólumes as crenças, os saberes e as lealdades”.
Esse fato é visto claramente no conto, pois o próprio entrevistador revela de forma implícita que o clube dos suicidas é um lugar de desabafo, onde as pessoas se lamentam por não terem conseguido sucesso nas tentativas. Ele próprio lamenta. Talvez porque a morte fosse proporcionar à rádio maior audiência, já que é isso que o público espera ver e ouvir dos meios de comunicação social; o drama passado de forma mais realista e grotesca possível, como são suas vidas na realidade. Eis o fascínio do espectador.
Crítico ou não, o humor está presente nos diversos gêneros e formas de lazer (cinema, teatro, televisão, etc.), e nesse contexto, a literatura também dá sua contribuição; são diversos autores que incluem em suas obras uma pequena parcela de comicidade ou ainda trabalham exclusivamente com ela. Um gênero estreitamente relacionado com o aspecto cômico e que também surgiu com maior ênfase na contemporaneidade é a crônica. Vários são os cronistas e, quase sem exceção, todos usam o humor para se referirem ao aspecto social que objetivam. Temos vários nomes como: Rubem Braga, Sergio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Luiz Fernando Veríssimo (que também utiliza o humor em seus contos), Moacyr Scliar, entre outros.
Em outros gêneros, percebemos também algumas passagens ou até obras completas dedicadas ao humorismo. Contistas como Rubem Fonseca, que se caracteriza pelo apelo à violência nua e crua, recorre à ironia como recurso cômico; romancistas como Inácio de Loyola Brandão usam o humor para fazer suas críticas ao sistema social e político vigente; poetas como José Paulo Paes também buscam no humor uma forma de expressar seus pensamentos; enfim são muitos os autores que, através do recurso humorístico, procuram permear suas obras com originalidade e criatividade, convergindo para um movimento que faz do humor uma de suas características básicas.
Fonte:
SOUZA, E.N.F.; TOLLENDAL, E.J.; TRAVAGLIA, Luiz Carlos (orgs.). Literatura: Caminhos e descaminhos em perspectiva. Uberlândia: UFU, 2006.
Segundo Viana Moog, em Heróis da decadência (1964), não há vestígios de textos ou obras literária humorísticas na Antigüidade, haja vista que existem dois elementos próprios da atualidade que não era possível de serem encontrados na antigüidade: “a ânsia doentia de tudo compreender e a dúvida torturada” (MOOG,1964:26). Os antigos, diz o autor, tiveram o privilégio de não se torturarem com a dúvida que assola a contemporaneidade e que é a grande geradora do humor.
O momento inicial provável para o aparecimento do humor na literatura é a época da decadência de Roma. Tempo em que os escritores começaram a destilar seu cepticismo e a se ocupar das coisas em geral, tanto do passado quanto do presente, com um certo ar de enfado, de incredulidade, de zombaria e de irreverência.
Na primeira fase da Idade Média não havia também espaço para o humor, já que a Inquisição condenava à fogueira qualquer manifestação desse tipo. A literatura dessa época gira em torno de duas entidades: os santos e os cavaleiros. Não se poderia fazer humor sobre nenhuma das duas, haja vista que, em ambos os casos,o únicos sentimentos possíveis era o orgulho e a admiração.
Esse tipo de literatura tem seu fim com Orlando Furioso, de Ariosto, permitindo um repontar do humor na literatura. Alguns nomes europeus com Chaucer e Rabelais marcaram essa época como bons humoristas. Porém, é no século XVI que surge na Espanha um humorista insuperável, talvez o maior de todos os tempos: Cervantes. “Com ele o humour se integra em todos os caracteres com que ainda hoje se apresenta. Antes, ninguém foi igual, depois, ninguém o excede”. O autor continua dizendo que Cervantes serve como marco divisório na literatura humorística: “Até então só se conheciam humoristas como os da decadência romana, que riam do mundo, mas como simples espectadores, sem incorporar a própria pessoa ao número de sêres aproveitáveis como matéria prima de humour [...]. no Cervantes, há, porém, mais que isso: há o que Pirandello denomina o sentimento do contrário” (ibid:74).
Ainda num período de transição entre a decadência do trovadorismo e o advento do “Século de Ouro Português” (séculos XIV a XVI), destaca-se o nome do escritor português Gil Vicente, que fez uso do humor através da sátira social em seus Autos. Usando o texto escrito em versos, o escritor fez uso de uma variedade de sugestões e tendências anteriores e/ou contemporâneas do teatro – milagres, mistérios, moralidades, a farsa, entre outros –, retratando o cotidiano português da Alta Idade Média e denunciando as práticas abusivas de grupos sociais como o clero, a nobreza e a justiça. Por isso, Gil Vicente teve sua obra bastante prejudicada pela repressão exercida pelos tribunais da Santa Inquisição.
Na literatura brasileira, os primeiros vestígios da produção humorística talvez estejam na segunda geração dos poetas românticos, também chamada de “cancioneiro alegre” pelas produções que, juntamente com os temas relacionados à solidão, à morte, à melancolia, aos enganos amorosos, também faziam surgir a paródia, a sátira e a pornografia. “Tais poemas formam um conjunto impressionante (...) não só pelo volume, que não é pequeno, mas também e principalmente pela qualidade literária” (FRANCHETTI, 1987:7).
Outro momento importante para o humorismo brasileiro deu-se no período transitório do regime monarquista para o republicano. Dentro da história literária, esse período corresponde ao movimento da Belle Époque, que, concomitantemente com as mudanças políticas e sociais por que passava o país, propunha mudanças no âmbito estético-literário, como forma de igualar o Brasil aos países desenvolvidos através da cultura. Nesse período, os humoristas encontraram um vasto campo de atuação e, ao mesmo tempo, uma intolerância muito grande por parte dos circuitos da cultura culta e da crítica literária.
Inserido num contexto em que emergia a racionalidade política da nação e em que se questionava a respeito do conceito de nacionalismo, o humor encontra nas arestas deixadas tanto pelos políticos quanto pelos literatos, seu corpus de trabalho, contra o qual expressava sua rebeldia, sua sátira e rechaçamento.
Diante desses meios de expansão da comicidade, os humoristas da época provaram sua capacidade de trânsito e de experimentação através de inúmeras formas cômicas, “adaptando-as à rapidez e à variedade dos modos de difusão e, por extensão, às formas peculiares de representação da história brasileira”. A paródia apresentou-se como a mais peculiar de todas e também a mais amplamente utilizada, revelando-se “um mecanismo ou uma técnica de representação da própria realidade brasileira” (SALIBA,2002:96). Seus autores parodiavam os versos parnasianos ou simbolistas, imitando seus formatos, porém de forma a ironizar o regime republicano de uma forma menos polida e mais direta que os seus antecessores.
Estando sempre à margem da literatura oficial e sendo reconhecido num grau menor, o humorista da virada do século mostrou-se competente e hábil para bem representar a realidade brasileira de uma época tão conturbada como essa. Dessa forma, pode-se dizer que, além dessa representação histórica brasileira, o humorismo também deu espaço para que o indivíduo pudesse afirmar-se diante de uma espécie de vazio que pairava sobre todos.
Através desses humoristas anônimos, de certa forma, no que concerne a um reconhecimento da corrente literária vigente, é que, como que num movimento de eco, o riso pôde expandir-se de tal forma que transformou o que era margem em centro: surge o Modernismo. Suas formas de representação – concisão, brevidade, circunstancialidade e subitaneidade – já estavam presentes nas expressões humorísticas de algumas décadas anteriores, apesar de não reconhecidas como literárias.
Então, com a chegada do modernismo, o humor realmente se expandiu nos diversos gêneros literários; o uso da paródia, da sátira, do exagero em suas várias nuances mudaram a cara da literatura séria e sisuda dos séculos anteriores. Muitos são os nomes brasileiros que se engendraram por esse caminho. E muito maior ainda é o número dos que ainda o fazem. O humor literalmente alastrou-se pelo mundo literário.
Surgindo como o movimento da inovação estética, o Modernismo caracterizou-se primeiramente pelo anarquismo e pela atitude desafiadora. Dentro de suas manifestações artísticas está a instauração do “feio” e a suspensão do “belo”. Dessa forma, o cômico e o grotesco foram também incluídos nessa fase, principalmente pelo gênero lírico. Foi através do humor que os modernistas desmistificaram muitos conceitos até então vistos como sérios e intocáveis; trouxeram, no lugar do academicismo sério ou metafísico, a ingenuidade, o culto da infância, o primitivismo, a simplicidade do cotidiano.
Nesse contexto, o humor foi usado, em sua maioria, como repúdio às formas artísticas anteriores e como expressão da consciência crítica acerca dos acontecimentos sociais. Um dos maiores exemplos dessa criticidade é Macunaíma, de Mário de Andrade. É através da figura do anti-herói e suas aventuras que o autor revela sua consciência crítica e seu engajamento no tocante à identidade nacional – tema muito trabalhado nessa época – de forma alegre e bem humorada.
Outro recurso largamente utilizado pelos modernistas, principalmente na poesia, é a paródia, que “aponta um caminho para a poesia criativa e acaba por caracterizar satiricamente o ‘status quo’ literário”. Parodiar para os modernistas era revelar “uma consciência prática a ironizar a linguagem poética anti-funcional” (COSTA, 1982:103). O poema mais parodiado nessa época é “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, revelando elemento de destruição e de reconstrução e como exemplo de um novo jeito de falar num e para um novo tempo.
Trazendo o humor e a irreverência como herança do Modernismo, as várias manifestações artísticas contemporâneas usam e abusam desses recursos em suas obras.Ao contrário, esse fenômeno não se restringe apenas a uma ou outra arte, ou em uma ou outra obra; o humor está impregnado em (quase) tudo, e tudo é passível de se transformar em objeto do riso.
Atentemo-nos para os diversos programas televisivos. Boa parte deles se dedica ao humor: “A praça é nossa” (SBT), “Casseta e Planeta” (GLOBO), “A escolinha do professor Raimundo” (GLOBO), “Os normais” (GLOBO), “Sai de baixo” (GLOBO), “A grande família” (GLOBO), “Pânico” (REDE TV), entre outros. Observemos as piadas, as crônicas e os quadrinhos inseridos em jornais e revistas; muitos filmes no cinema ou na televisão; alguns programas de rádio; a tempestade de charges que surgiram em quase todos os meios de comunicação; a Internet, que está carregada de páginas dedicadas somente ao humor. Notamos, nesse contexto, uma tendência muito forte a satirizar tudo e todos. Não há o que escape das garras da comicidade (nem os seres supremos de antes); desde acontecimentos banais do cotidiano até grandes tragédias, como guerras, desastres, atentados terroristas. É só o momento de passar a comoção do acontecido que já aparecem as piadas, as charges, uma tirada sobre o assunto. Então, o que era trágico passa a ser cômico.
Esse fenômeno já foi descrito por Bergson quando afirma que o riso depende da indiferença do espectador. Afirma ainda que numa “sociedade de puras inteligências provavelmente não mais se choraria, mas ainda se risse” (BERGSON,2001:3), já que o riso se liga à inteligência pura. É a inquietação do saber e a falta de comoção que gera o riso. Podemos perceber na sociedade contemporânea esses dois aspectos: nunca se descobriu tanto e nunca se importou tão pouco com o próximo. A correria diária e a luta com uma concorrência acirrada por um lugar ao sol levam o homem a se isolar em seu micro-mundo, deixando a coletividade (macro-mundo) e seus problemas, seus dissabores ou suas alegrias para segundo plano. Além disso, há, no nosso tempo, uma genérica descrença em uma solução grandiosa para as diversas agruras que invadem a sociedade. A dúvida é o mal da contemporaneidade. Duvida-se do caráter de uns, do amor de outros. Duvida-se dos políticos, da igreja, dos pais, dos filhos, do professor e do aluno. Para Slavutzky (apud KUPERMANN,2003:15), a contemporaneidade seria caracterizada pelo espectro da derrota do sujeito: “em lugar das paixões, a calmaria, em lugar do desejo, a ausência do desejo, em lugar do sujeito, o nada, e em lugar da história, o fim da história”.
Diante de todos esses conflitos que se cercam do homem moderno, resta-lhe rir de tudo e de todos, e mais: fazer também os outros rirem. Como se a ordem fosse: “Já que não podemos vencê-los, rimos deles”. A procura pela comicidade em suas várias manifestações aumenta a cada dia, talvez como uma forma de defesa, como já se referiu Freud, no que se refere a não ter soluções para os diversos problemas. Rir para não chorar. Do mesmo modo também afirma Gilles Lipovetsky, em A era do vazio (1989), que vivemos em uma “sociedade humorística”, em que há um desenvolvimento generalizado do código e do estilo humorístico. Esse fenômeno é claramente percebido em campos bastante heterogêneos: na publicidade, nos slogans de manifestações políticas, na moda, na arte, nos meios de comunicação de massa e, sobretudo nas relações interpessoais; o clima de irreverência e espontaneidade passa a ter um valor privilegiado, como se nada devesse ser levado a sério.
Daniel Kupermann, em Ousar rir (2003:15-16) diz que, à medida que uma fase de depressão, de um “mau humor crônico” assola a sociedade contemporânea (acompanhada por decepções nos diversos campos possíveis ao longo de sua história e sem uma aparente esperança também diante do futuro), é bastante natural que se tenha tantas manifestações humorísticas. “Trata-se agora de evitar qualquer litígio, em nome do bem-estar definido por uma cultura na qual a adaptação e o sucesso pessoal são os alvos almejados”. Assim, o humor passa a dominar as várias instâncias da sociedade com a mesma tônica: “ausência de conflitos; impossibilidade de revolta;descrença”; é o humor descontraído que se apresenta, quando ninguém acredita na importância das coisas. Ele se apresenta, de acordo com as idéias de Kupermann (2003:16-17) como um humor acrítico e gratuito, ‘humor de massa’ próprio da sociedade hedonista na qual é o instrumento privilegiado para a promoção de uma proximidade cordial e de uma atmosfera de comunhão liberta de tensões. O humor pós-moderno é, assim, uma espécie de lubrificante social.
Ainda segundo o psicanalista, essa descontração generalizada remete-se e é proporcional “à falência de projetos comuns e ao desinteresse das possibilidades de transformação social” (KUPERMANN,2003:17), ou seja, ele é a prova da descrença pós-moderna perante as mudanças coletivas. Nesse sentido, diz ele, o humor contemporâneo é, acima de tudo, cínico, pois reflete alguém que ri de si mesmo e de suas próprias desgraças; é um riso amarelo, constrangido. É o humor da “descontração e do cinismo desencantado”, em que vigora “a desvitalização e a banalização esterilizante”. Por isso, o homem pós-moderno tem dificuldades em “rebentar de riso”, em sair de si, em sentir-se entusiasmado perante aos acontecimentos. “O humor de massa seria, assim, a pálida atualização da risada entusiasmante que, da Antigüidade ao Renascimento, acompanhou festividades populares, e na qual o Romantismo buscou inspiração para a libertação do espírito” (KUPERMANN,2003:21).
Sob uma outra perspectiva, Luiz Carlos Travaglia (1990:55), aponta o humor contemporâneo como crítico e engajado, usado como uma espécie de arma de denúncia, de instrumento de manutenção do equilíbrio social e psicológico; uma forma de revelar e de flagrar outras possibilidades de visão do mundo e das realidades naturais ou culturais que nos cercam e, assim, de desmontar falsos equilíbrios.
Segundo o lingüista, partindo do ponto de vista social e político, o humor desempenha um papel fundamental na sociedade no que concerne ao ataque à censura, ao que é pré-estabelecido, ao controle social e ao estabelecimento de outras possibilidades nesses mesmos âmbitos. Com o intuito de desafiar a autoridade do discurso oficial, através de críticas e de denúncias depreciativas, o humor torna possível o que pela via do sério seria considerado “crime” e desacato.
Mesmo o humor veiculado pelos meios de comunicação de massa não é visto por Travaglia como alienado e “pálido” como afirma Kupermann. Ele é, ao contrário, uma forma criativa, uma arma, um meio utilizado em todas as sociedades para “descobrir (através da análise crítica do homem e da vida) e revelar verdades escondidas e falsificadas, permitindo uma visão especial da vida, uma nova visão do mundo pela transposição de conceitos, uma ampliação dos contatos com nossas realidades.” O mesmo autor ainda coloca o humor como responsável por ser “o senso das proporções e da verdade escondida” e por revelar “a alegria da descoberta” de forma “não-convencional, sinuosa, intuitiva” gerando um compromisso entre humor e riso, e entre esses e a sociedade (TRAVAGLIA,1990:67).
Em meio a essa divergência de idéias a respeito do humor contemporâneo, resta-nos refletir a respeito do conceito de engajamento e de crítica social utilizada pelo movimento Pós-moderno e em que temática o humor dos nossos dias estaria inserido, sem no entanto enquadrá-lo em sistemas e características pré-estabelecidos. Para exemplificar essa reflexão, dois contos do autor Moacyr Scliar foram selecionados. Dessa forma, podemos pensar a questão da criticidade ou passividade de uma forma mais concreta.
O primeiro deles é “Ofertas na Casa Dalila”; conto narrado em primeira pessoa, que relata a inquietação do filho de um comerciante perante o concorrente de seu pai, com uma loja igualmente pequena a sua, desarrumada, mas com uma clientela muito maior. A proprietária da loja é descrita pelo narrador como “uma velha de cabelos oxigenados e olhos pintados que, da porta, me encara desafiadora” (SCLIAR, 1976: 49). A partir desse questionamento, o narrador se propõe a ser, ele mesmo, o investigador para descobrir a causa do grande movimento na loja de sua concorrente.
Entende rapidamente o que se passa: “as notas de compra dão direito à freqüência de certas sessões cinematográficas realizadas nas noites de sexta-feira, no fundo da própria Casa Dalila” (SCLIAR,1976: 50). Com o intuito de resolver esse mistério, o narrador obtém algumas notas e vai disfarçado à sessão da sexta-feira. Já no ambiente improvisado entre as caixas e manequins, vê o título do filme “Aventura de Dalila” e percebe que se trata de um antigo filme pornográfico de terceira categoria, com uma mulher muito bonita.
Quando o filme termina, e todos saem, o filho do comerciante tenta destruir a fita, mas desiste perante um pedido da velha de rever o filme mais uma vez. Enquanto os dois assistem, ela revela ao rapaz que é Dalila e ele percebe que os traços realmente são os mesmos. Ele, rendido aos encantos da velha, mantém uma relação sexual com ela e convence seus pais a venderem a loja para ela. Promete nunca mais voltar ali.
Nesse conto, a presença do cinema é marcante. Primeiramente, não se trata aqui de um lugar específico e até apropriado para uma sessão cinematográfica. Antes, era um ambiente com poucos recursos, em meio a um depósito da loja.
“(...) sou conduzido a uma sala mal iluminada nos fundos da loja. Ali, entre manequins sorridentes e caixotes de mercadoria, estão os espectadores.” (SCLIAR,1976:50).
Outro dado bastante interessante é o preço do ingresso, ou mesmo, como este era conseguido. Em razão da propaganda que a velha Dalila queria fazer de sua loja, numa promoção muito sutil, só entrava no “cinema” quem obtivesse notas de compras do seu estabelecimento. Como a loja era exclusivamente masculina, não foi difícil induzir os espectadores para as sessões da sexta-feira. Esse fato marca no conto o poder da propaganda que é, como dizem: “a alma do negócio”. Foi a partir dela e, conseqüentemente do prêmio concedido através da compra que a proprietária conseguiu vencer seus concorrentes, que até então “era a única loja da zona, com sua fiel clientela de funcionários públicos e pequenos comerciantes” (SCLIAR, 1976: 49).
Quando o narrador-personagem vai à sessão cinematográfica nos fundos da “casa Dalila”, percebe que se trata de um filme pornográfico. Esse tipo de filme era muito comum no final da década de 60, época em que o cinema teve um dos maiores incentivos governamentais. Porém, sua qualidade era muito baixa e se baseava em roteiros pornográficos e pornochanchadas. Este que nos anos 40 e 50 simbolizava uma manifestação de afirmação cultural da burguesia, com a importação do cinema americano, decai consideravelmente por não conseguir acompanhar a tecnologia estrangeira.
Dalila se orgulha de ter sido atriz “pornô”, dizendo já ter feito muito sucesso na Europa. Esse orgulho é comum entre os brasileiros. O sucesso no estrangeiro parece ter mais peso do que a fama nacional, mesmo que seja para ser um artista de filmes de baixa categoria. Ser aceito pelo público internacional representa um respaldo muito grande. Como se fosse uma espécie de aprovação globalizada. Isto é, como se um continente pudesse dar conta da preferência de um grupo muito maior.Como ela mesma diz: “Eu mesma, na Europa fui muito famosa...”
Dizer que foi famosa na Europa, pressupõe sucesso em todos (ou a grande maioria) os países que a compõem. Talvez isso não seja tal verdadeiro quanto aparenta ser. Além disso, a frase pode ter um tom irônico no que se refere à questão da nacionalidade ou brasilidade, já que “fazer sucesso” significa para muitos ser conhecido em outros países.
Além disso, percebemos uma entronização da cultura européia em nosso meio. A existência desse fenômeno muito deve à presença dos meios de comunicação que tornam os espaços menores por seu poder de rapidez e de expansão geográfica.
Afirmar a existência de uma memória internacional-popular é reconhecer que no interior da sociedade de consumo são forjadas referencias culturais mundializadas. Os personagens, imagens, situações, veiculadas pela publicidade, historias em quadrinhos, televisão, cinema constituem-se em substratos desta memória (ORTIZ,1996: 126).
No conto aqui mencionado, percebemos exemplos da cultura mundializada. No primeiro, a atriz que fez sucesso na Europa fazendo filmes pornográficos. Essa globalização não se dá de forma desinteressada pois, quando se importa um produto, importa-se também a cultura nele embutida. Ainda mais em se tratando de bens culturais, muita da ideologia do exportador vem juntamente com o produto importado. Nesses casos, os países desenvolvidos têm uma grande vantagem sobre os subdesenvolvidos, visto que são os provedores da maior parte das importações.
“Ofertas na Casa Dalila” traz um outro aspecto muito importante: o simulacro. Isso porque, se entende simulação por uma reconstrução da realidade. Segundo Jean Baudrillard (1991:9) “trata-se de uma substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de todo o processo real pelo seu duplo operatório (...). O real nunca mais terá oportunidade de se produzir”. Continua dizendo que:
A simulação parte, ao contrário da utopia, do princípio de equivalência, parte da negação radical do signo como valor, parte do signo como reversão aniquilamento de toda a referência (BAUDRILLARD,1991:13).
De acordo com as idéias acima, os meios de comunicação podem ser vistos com veiculadores do simulacro, pois reinventam a realidade e a transmitem uma versão distorcida da mesma, transformando o mundo em mera imagem, pseudo-eventos e espetáculos (JAMESON, 1996).
No conto aqui analisado, o simulacro se evidencia pela imagem que o narrador-personagem vê na tela.
De fato, a primeira cena já mostra uma cama; e dentre peles e plumas emerge o rosto da devassa: olhos pintados de pretos, boca em coração – linda, a diaba, apesar de tudo (SCLIAR, 1976: 50).
Mais adiante ele se depara com o real e o simulacro frente a frente. Isso acontece quando o filho do comerciante aceita ver o filme novamente, por intermédio da suplica da velha Dalila. Enquanto assistem à tela, a mulher lhe confessa ser ela a bela moça do filme.
Olho-a. De fato, parece-me reconhecer no rosto gordo os traços da mulher da tela.
(...)
Não há dúvida: os mesmos olhos, a mesma boca” (SCLIAR,1976:52).
Nesse momento, as duas Dalilas (a atual velha e a antiga jovem), se fundem e o espectador se confunde com as duas. Nesse momento, ele se deixa seduzir (ou seduz) por ela e caem no chão, ali mesmo, entre os manequins. O jovem concorrente se entrega à velha comerciante. Cede ao modelo ou ao simulacro ? Isso não é possível saber, pois o rapaz não deixa transparecer se ficará fascinado por uma das duas. Ou seria pelas duas ao mesmo tempo ? O que se pode afirmar que a fascinação somente se deu quando reviu o modelo (a velha), a partir do simulacro (a jovem).
O segundo conto é intitulado “O clube dos suicidas” e narra um programa de entrevistas numa estação pobre de rádio. O objetivo dessas entrevistas era saber o motivo pelo qual as pessoas que ali estavam tentaram suicídio. Assim, o entrevistador passa o programa todo perguntando os detalhes das tentativas de morte e orientando cada participante a não pisar no fio do microfone.
A fragmentação do conto acima é um aspecto bastante interessante e comumente encontrado na ficção contemporânea. No caso de “O clube dos suicidas” esse recorte chega ao extremo de não apresentar narrador, nem uma forma tradicional da prosa ficcional. O que se tem aqui é o próprio programa de rádio. Como se o leitor estivesse ouvindo (lendo) a uma entrevista. A única diferença é que não há a voz do entrevistado. O entrevistador (narrador) fala por ele, relatando as ações os motivos que as desencadearam: “A senhora – o que foi que tomou? Valium. Muitos? (...) Quantos comprimidos de Valium? Doze? (...)” (SCLIAR, 1995:426).
Ainda em relação à estrutura, nota-se que o conto é apresentado num único parágrafo, marcando, além da brevidade da narrativa, o recorte de apenas um instante, assemelhando-se a uma fotografia, como se referiu Julio Cortázar. O enfoque em um único instante transmite a idéia de velocidade do conto (e do programa de rádio). Além disso, em se tratando do programa, a rapidez com que as pessoa são entrevistadas, faz o leitor imaginar que há no estúdio fictício muitos outros à espera do locutor: “O próximo quem é? O senhor? O primeiro homem de hoje, pessoal. Palmas! Mais palmas! (...) Senta ali, meu caro, junto com as mulheres” (SCLIAR,1995:427).
Como já foi dito, as entrevistas são interrompidas com pedidos e orientações do entrevistador para que não pisem no fio. Primeiramente, pode-se observar que se trata de uma estação de rádio muito pobre, como ele mesmo diz: “Cuidado com o microfone. A rádio é pobre, não tem dinheiro para comprar microfone sem fio, então tem que cuidar” (SCLIAR,1995:426).
Esse tipo de rádio existiu ( e ainda existe) num imenso esforço para sobreviver em meio as grandes redes. Para isso, inventa programas absurdos para chamar a atenção do público. Programas sensacionalistas com “artistas” anônimos e suas adversidades. Note-se que nenhum dos entrevistados possui nome, nem mesmo entrevistador, retomando novamente a idéia que Jameson faz do anonimato, ou seja, indivíduos sem nome representando grupos coletivos.
"O grotesco(...) é apresentado como signo excepcional, como um fenômeno desligado da estrutura da sociedade – é visto como o signo do outro. A intenção do comunicador é sempre colocar-se diante de algo que está entre nós, mas que ao mesmo tempo é exótico, logo sensacional”(SODRÉ, 1983:73).
Até o locutor se irrita com a situação precária em que trabalha. E essa irritação se dá de forma gradativa, criando a tensão do conto. Chega a um momento, em que não se sabe se o assunto principal do conto são os suicídios não realizados, ou se é o medo do entrevistador de quebrarem o fio do microfone. No início ele diz:
“Cuidado com o fio, pelo amor de Deus.”
“Cuidado com o fio, minha amiga, cuidado com o fio” (SCLIAR,1995:426).
Mais adiante, ele continua:
“Cuidado com o fio, diabo!”
“Olha o fio merda! Desculpe” (SCLIAR,1995:427).
(...)
E a senhora tão velhinha? Quis se enforcar? Com o fio de ferro elétrico? (...) e dá? Dá para se enforcar? Mostra para gente. Pode usar o fio do microfone (SCLIAR,1995:427).
Esse objeto tão mencionado pelo entrevistador representa não só a precariedade da rádio, mas também pode ser visto como o fio condutor da narrativa, em que o apresentador vai expondo as histórias dos outros e a sua própria história. Esse fio vai denotando uma tensão muito grande tanto no entrevistador quanto no leitor, marcando uma especificidade do conto: a intensidade.
A tensão vai crescendo, à medida em que o conto (programa) vai se apresentando. Ao fim, as histórias dos entrevistados e a história do entrevistador se fundem. Essa fusão é mais evidente na última frase do conto: “Pode usar o fio do microfone”; quando pede a uma senhora para demonstrar o enforcamento mal-sucedido com o fio do ferro elétrico.
O exótico presente em “O clube dos suicidas” está exatamente na criação de um programa, em que a grande atração são os suicidas em potencial, porém, decepcionados com suas tentativas fracassadas. São as pessoas comuns que estão ali, na expectativa de sair do anonimato através de histórias grotescas.
Por outro lado, vê-se um veículo da comunicação de massa aproveitando-se desse desejo para conseguir o que quer: o consumidor/ouvinte. Esse, por sua vez, tem verdadeiro fascínio por fatos catastróficos, em que as mazelas humanas são colocadas em pauta.
Esse fenômeno de intenções tripartidas resulta em programas de baixa qualidade, onde o que parece ser aos olhos humanos uma atrocidade, passa a significar apenas mais um espetáculo que os mesmos olhos aplaudem num programa de entrevistas.“A reciclagem de matrizes tradicionais como o melodrama, o cômico e o grotesco é o que muitas vezes permite a interação íntima dos produtos midiáticos com o cotidiano das classes populares”(BORELLI, 1994:34).
São histórias relacionadas a problemas comuns entre as pessoas. E essa predileção por programas de sensacionalismo pode ser justificada pelo fato de que o ser humano tem uma tendência a se atrair pelas agruras do outro, talvez para minimizar seu próprio sofrimento.
Nesse caso, o programa vai ao encontro das necessidades das classes menos privilegiadas, pois torna público o drama de muitos: desemprego, violência, etc. Além das formas que cada um encontra para fugir de seus próprios problemas: o suicídio.
A senhora o que tomou mesmo? Valium.
E o que foi que ela tomou? Querosene? Mas que coisa, tão novinha, tão miúda. Ah, tomou porque a senhora batia nela?
O que foi que tomou? Raticida? (...) E por quê? (...) Porque está desempregado.
E essa moça? Se jogou na frente do carro?
E a senhora, tão velhinha? Quis se enforcar? Com o fio do ferro elétrico?
E assim o locutor vai expondo os motivos e as formas das tentativas dos suicídios não bem sucedidos. O melodrama dos detalhes é o que fascina o ouvinte que ele quer atingir. Mesmo que para conseguir os entrevistados a rádio tenha que dar pequenos brindes em troca da divulgação das histórias.
Percebe-se, explicitamente, como as pessoas procuram cada vez mais os veículos comunicativos para conseguir o que não encontram nas instituições mais tradicionais, como a igreja , os sindicatos , a escola. O espectador procura ser ouvido, ser importante, aprender coisas da vida, se informar, ou até encontrar algo (ou alguém) que se assemelhe a ele – em suas aflições, anseios ou alegrias. E isso, encontrará na comunicação massiva, como foi observado por Beatriz Sarlo (1997: 102): “Onde quer que cheguem os meios de massa, não passam incólumes as crenças, os saberes e as lealdades”.
Esse fato é visto claramente no conto, pois o próprio entrevistador revela de forma implícita que o clube dos suicidas é um lugar de desabafo, onde as pessoas se lamentam por não terem conseguido sucesso nas tentativas. Ele próprio lamenta. Talvez porque a morte fosse proporcionar à rádio maior audiência, já que é isso que o público espera ver e ouvir dos meios de comunicação social; o drama passado de forma mais realista e grotesca possível, como são suas vidas na realidade. Eis o fascínio do espectador.
Crítico ou não, o humor está presente nos diversos gêneros e formas de lazer (cinema, teatro, televisão, etc.), e nesse contexto, a literatura também dá sua contribuição; são diversos autores que incluem em suas obras uma pequena parcela de comicidade ou ainda trabalham exclusivamente com ela. Um gênero estreitamente relacionado com o aspecto cômico e que também surgiu com maior ênfase na contemporaneidade é a crônica. Vários são os cronistas e, quase sem exceção, todos usam o humor para se referirem ao aspecto social que objetivam. Temos vários nomes como: Rubem Braga, Sergio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Luiz Fernando Veríssimo (que também utiliza o humor em seus contos), Moacyr Scliar, entre outros.
Em outros gêneros, percebemos também algumas passagens ou até obras completas dedicadas ao humorismo. Contistas como Rubem Fonseca, que se caracteriza pelo apelo à violência nua e crua, recorre à ironia como recurso cômico; romancistas como Inácio de Loyola Brandão usam o humor para fazer suas críticas ao sistema social e político vigente; poetas como José Paulo Paes também buscam no humor uma forma de expressar seus pensamentos; enfim são muitos os autores que, através do recurso humorístico, procuram permear suas obras com originalidade e criatividade, convergindo para um movimento que faz do humor uma de suas características básicas.
Fonte:
SOUZA, E.N.F.; TOLLENDAL, E.J.; TRAVAGLIA, Luiz Carlos (orgs.). Literatura: Caminhos e descaminhos em perspectiva. Uberlândia: UFU, 2006.
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