quinta-feira, 3 de junho de 2010

Wilson Bueno (Meu Tio Roseno, a Cavalo)


Vencedor do Prêmio Jabuti de 2000, a novela de Wilson Bueno, assassinado recentemente em Curitiba (de primeiro já consegue chamar a atenção pelo artesanato inusitado de sua linguagem. Num andamento próximo do coloquial regionalista, contando com a fusão do português, espanhol e guarani (recriando a realidade do local em que se passa a narrativa, entre Paraná, Mato Grosso do Sul e Paraguai), o autor abusa do emprego dos neologismos que atingem até o próprio nome do protagonista, Roseno, que é chamado Rosevago, Rosevéu, Rosenente, Rosalvo, entre outros.

Tal variação sobre o mesmo nome faz lembrar as repetições constantes de expressões por todo o corpo da obra. Confira quantas vezes aparece “meu tio” após o nome do protagonista, ou mesmo “antes da Guerra de Paranavaí”, “Doroí ia lhe dar um filho, uma filha, por ser mais certo”, “bugra esquiza e de olhos azuis” e por aí vai.

Todos esses elementos contribuem para que se construa uma prosa poética que lembra Simão Lopes Neto, pelo tom sulista, mas principalmente Guimarães Rosa, não só pela invenção de palavras e fusão de línguas, mas pelo caráter simbólico, quem sabe até mítico, que o texto acaba assumindo. Reforçando tal aproximação, parece não ser à toa que o narrador, sobrinho da personagem principal, dá um ar de fábula à história ao dizer que se passa no desvão dos tempos, por exemplo. Outro argumento seria a própria melopéia, ou seja, musicalidade da frase, como em “e os ouvidos treinados para diferençar da azáfama de inquietos sons a nota surpresa da mais arisca aproximação”. Recende plenamente o fazer literário roseano.

Em suma, se se aceita a semelhança entre Wilson Bueno e Guimarães Rosa, não se torna absurda a idéia que em Meu Tio Roseno, a Cavalo a narrativa acaba criando um mundo mágico e simbólico, o que se nota já em seu começo, quando se comunica que Roseno montou o cavalo Brioso para realizar uma viagem em menos de sete dias para Ribeirão do Pinhal. A intenção do herói era, obedecendo à profecia de uma cigana, encontrar sua amada Doroí, índia com quem vai ter uma filha, que deve chamar-se, ainda de acordo com a cigana, Andradazil (Outra semelhança com Guimarães Rosa é que “Andradazil” chega a ser onomatopaico, imitando o som da cavalgada, assim como o nome “Tarantão”, do conto de Guimarães Rosa “Tarantão, Meu Patrão”, presente em Primeiras Estórias), para que tivesse um bom destino no meio da tão citada Guerra do Paranavaí (região do interior do Paraná), conflito causado por questão de terra entre índios e civilizados.

Realiza, pois, uma viagem de travessia, que pode ser entendida como metaforização da vida. Faz lembrar o conto de Guimarães Rosa, “Seqüência”, de Primeiras Estórias, pois é uma jornada em busca do amor, ou então “Tarantão, Meu Patrão”, do mesmo livro, já que, além do tom de gesta, há a motivação pelo nascimento de uma criança. Há semelhança também com Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, pois o início de uma vida pode ser visto como um contraste às desgraças mostradas no bojo da obra.

Como já se disse, o livro é marcado por repetições na linguagem, o que o torna poético. Mas no eixo narrativo essa característica se processa pelo aspecto cíclico que é assumido. Sete dias. Seis entrecéus. O ciclo de sol e lua, assim como a própria viagem, são velhos símbolos da vida. E tudo se encaixa em três grandes fases – sexo, luta, assombração – que, no fundo, são manifestações de dois grandes campos: vida e morte. Mais uma vez, o tom mítico do livro.

No início da caminhada a cavalo, Roseno depara-se com um índio desafiador que não acredita no poder das armas de fogo, alienação – principalmente em época tão próxima aos conflitos de Paranavaí – que espanta o herói. Mas basta mostrar o poderio bélico para que o oponente se desmanche em cortesias, levando o protagonista até sua tribo. Lá, conhece uma índia muito jovem, criança ainda, com quem passa noite, tirando-lhe a virgindade.

No dia seguinte encontra problemas ao abandonar a tribo. O chefe quer que se case com a pequena índia. Mais uma vez, tem de usar seu revólver. O engraçado é que não bastaram tiros no chão – teve de, estranhamente, pôr na mão do selvagem a arma para convencê-lo de deixar sair (Pode ser visto como significativo o fato de Roseno deixar vários espelhos e miçangas em troca da hospedagem e da companhia afetiva. O herói, mesmo neto de índia, parece ter em seu sangue o costume branco – seu avô era alemão – já vindo do século XVI de trocar coisas tão preciosas por ninharias). Parte, pois.

Nesse primeiro embate, o prazer sexual, princípio da vida, está ligado a combate, que se restringiu, na verdade, apenas à possibilidade. Vitória da existência. Mas conquista efêmera. Pouco depois encontra, em seu segundo dia de viagem, em meio ao clima fantasmagórico da noite, um local em que havia os restos mortais de combatentes, ossadas e mais ossadas dispostas num quadro dantesco. Era a Guerra do Paranavaí se apresentando. Era o princípio da morte começando a se instalar.

Passa a noite com um sono entrecortado pela impressão que aquela paisagem macabra lhe deixou. Prossegue sua viagem até no final do terceiro dia, quando pára e resolve ver as atrações de um circo. Decepciona-se com a farsa sobre uma mulher que se dizia barbada. Além disso, foi obrigado, num bar, a brigar com dois soldados, que queriam mostrar-se atrevidos. Vence-os. Por fim, enquanto assistia a um espetáculo, presenciou um velho baixinho pegar um homem bojudo e atirar várias vezes sobre a cabeça deste, num ato de covardia que revoltou os demais da platéia. O surpreendente é que a vítima ainda consegue se levantar e cambalear na direção do assassino, no entanto, termina por cair. Alguns entre o público tomam as dores do derrotado e partem para cima do covarde, mas são segurados pela própria orquestra do circo. Estava consagrado que tudo não passava de farsa, o que deixou o herói irritado. Assim, parte.

Chega-se ao seu quarto dia de viagem, mergulhado nas memórias da infância, com a presença marcante da avó, feiticeira. Lembra-se também da amada, que lhe proporcionou inúmeros momentos de gozo. Recorda-se ainda dos irmãos. Além disso, vem em sua mente uma enxurrada de acontecimentos ligados a guerra, violência, assassinatos, seus primeiros empregos, seu ofício como capador de galos e daí a sua paixão: as brigas realizadas entre esses galináceos. Tudo isso se passa com maestria, revelando o domínio de Wilson Bueno, já detectado em outros momentos da obra, sobre o emprego do tempo psicológico e do fluxo de consciência.

Estamos, definitivamente, no campo da guerra, que nada mais é do que luta por sobrevivência. Porém, é um momento da narrativa com uma enorme proximidade da morte. Disseminam-se aqui elementos que podem ser vistos como preparação pelo menos do clima do final da novela. Em nome da guerra – que é uma luta por domínio de vida – atrocidades são cometidas.

Mergulhados nessa atmosfera, estamos no quinto dia, o mais assustador. Tudo começa com um encontro fortuito com um sujeito extremamente magro. Fugia de Aruanã porque o povo estava perseguindo um lobisomem que havia feito muita desgraça na cidade. Todos acreditavam que o desgraçado era desdentado, o que faziam pessoas com tal qualidade serem alvos perfeitos para a fúria dos cidadãos. Roseno fica desconfiado, ainda mais quando descobre que o fugitivo, Luís Arnaldo, era maneta.

Chega à cidade, que lhe é frustrante, pois, em vista do clima de terror, não se estavam realizando as famosas brigas de galo. E, como de esperar, o assunto de todos era nada mais do que o tal lobisomem. O herói diz que o viu, mas, feita a descrição, todos na hospedagem em que está dizem tratar-se apenas de Luis Arnaldo. E dedicam-se a contar mais histórias fantásticas. Roseno não repara, no entanto, que um dos forasteiros ri sempre escondendo os dentes.

No fim, recolhe-se ao seu quarto, o que possui o aziago número 13. No meio da noite acorda e, guiado apenas por um toco de vela, vai ao banheiro coletivo da hospedaria. Enquanto se desafoga, ouve o resfolegar de um cavalo e por uma fresta consegue ver que era justo o animal de Luís Arnaldo. Chega até a enxergar-lhe inúmeras asas. Corre assustado para o seu quarto, não sem antes ver o eqüino voar.

Volta para seu sono perturbado, interrompido pela gritaria dos vizinhos: estavam perseguindo um lobo, ou melhor, o lobisomem. O animal acaba – numa cena bastante pungente – massacrado pelos moradores. Roseno, que já estava decepcionado pela ausência das rinhas de galo, decide, diante de tudo o que havia presenciado, partir de Aruanã. No caminho, admira-se ao encontrar com o desdentado Luís, que estava voltando à cidade. É este quem lhe diz que o lobisomem era o forasteiro que tanto escondia a falta de dentes.

Está terminando o seu prazo de deslocamento e o Brioso parece que sente, pois cavalga mais rápido, até nervoso. Está-se aproximando do clímax da novela, depois de toda uma narrativa que somava amor, guerra e assombração, este último elemento nada mais era do que o medo da morte. E é o que vai tomando mais forma no final, o que parece ser pressentido pelo herói, principalmente quando vê urubus sobrevoando a região que era o rancho onde devia estar Doroí. Corre desesperadamente para lá.

Chegando, só encontra a casa abandonada e crivada de balas. Sua fúria e desespero se descarregam soltando tiros para todas as direções, o que acaba por derrubar de uma árvore a negra Nhô, que ali se havia escondido. Em meio à tensão, consegue arrancar da empregada informações por demais dolorosas: Doroí ainda não havia dado a luz, mas tinha sido levada dali para a Guerra do Paranavaí.

E assim encerra-se o conto, com o amanhecer do sétimo dia. Com esse anticlímax, pois que frustra as expectativas do leitor, bem no esquema de contos como “Os Irmãos Dagobé” e “Tarantão, Meu Patrão”, de Primeiras Estórias ou mais ainda como “A Cartomante”, de Machado de Assis, pois o que acontece no final já havia sido anunciado em elementos disseminados pelo texto, mas que o leitor acaba ignorando por criar uma expectativa em outra direção.

Fonte:
http://www.lol.pro.br/

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