domingo, 13 de junho de 2010

Olga Agulhon (Sobre os Trilhos)



(Crônica vencedora nos “II Jogos Florais de Caxias do Sul”)

Nada havia… Ninguém jamais tinha se aventurado pelas entranhas da floresta misteriosa.

Por respeito ou medo, nenhum homem pisara, ainda, o solo escuro e úmido. Apenas a mata reinava, triunfante, majestosa, numa paz que se perderia para sempre.

De outras plagas, vieram homens barulhentos, com seus machados e serrotes, quebrando o silêncio de pássaros dormindo. Cortaram árvores e atearam fogo, clareando as noites com o cheiro de óleo queimado, cheiro de morte e progresso. Fizeram picadas, abriram clareiras. Sem dó nem piedade, violentaram a mata, rasgaram o ventre da terra virgem.

Sob lonas pretas, de mulheres valentes nasceram os primeiros filhos desta terra inóspita, onde construiriam suas vidas com suor e sangue.

Depois vieram os trilhos, o trem cortando a mata desbravada. Sobre os trilhos, encarrilhando a história, tudo vinha, tudo ia, tudo se transformava.

A madeira tombava, as casas eram erguidas. Ao redor da primeira igreja, a primeira hospedaria, a primeira escola, o primeiro boteco, o primeiro comércio de secos e molhados.

Sobre os trilhos, e depois sobre jipes e caminhões, que cortavam estradas esburacadas, empoeiradas ou lamacentas, levas e mais levas vieram, e continuaram vindo. Eram homens e mulheres cheios de esperança, coragem e vontade de enriquecer na terra prometida.

Do trem desceram também as primeiras mulheres pintadas, de vestidos rodados e cheiro de colônia, que alegravam os homens sozinhos, e também os casados. Tantas histórias… Personagens de muitas delas, mulheres encostadas no fogão, alisando chão de terra batida com barro e carvão, parindo os filhos na garra, lavando as roupas debaixo de um vento feito de pó, fazendo novenas… Mulheres cansadas da lida! De outro lado, maridos suados, no trabalho pesado, e, noutras cenas, fazendo filhos ilegítimos com aquelas que vendiam o que tinham… Mulheres cansadas da vida!

Contam-se ainda histórias de anjinhos que não sobreviviam à rudeza da falta de conforto e assistência, de homens que matavam por mais um palmo de terra, de amores e traições… Tantas histórias…

Com meus pais e uma irmã mais velha, chegamos com quase nada. Era pequena a mudança, tudo que tínhamos cabia na carroceria de um caminhãozinho velho.

Eu também faço parte dessa história. Vim menina, magricela, e nada mais trazia comigo além de um pequeno embornal com algumas pedrinhas de jogar e um punhado de sonhos, não muitos, apenas o quinhão que me cabia aos cinco anos.

A cidade aberta na mata já era uma moça bonita, viçosa e cheia de promessas.

Perdi de vê-la engatinhar, de dar os primeiros passos… Não vi a derrubada da mata, não vi ser levantada a primeira casa nem ser aberto o primeiro comércio, mas ainda havia muitas ruas e estradas a sua volta onde se podia atolar.

Com o tempo, meu pai também comprou um jipe e era comum encontrá-lo colocando correntes nos pneus… Era uma estratégia utilizada para vencer as subidas e outros trechos mais difíceis das estradas em dia de lamaçal.

Para quem tinha pouca idade e pouco juízo, tudo parecia muito divertido. Poeira? Desenhávamos nos vidros dos carros e das casas, e nasciam ali as primeiras letras e as mais belas paisagens. Lama? Fazíamos panelinhas e bonecos de barro… Verdadeiras estatuetas, dignas de exposição. Era a arte, ou a “arte”, brotando da fértil terra vermelha que a floresta nos deu como resposta.

Se o começo foi difícil, se nem todos os valentes pioneiros têm busto na praça, se existem deslizes e trechos menos poéticos nessa caminhada, se algum sangue foi derramado junto com o suor de uma brava gente, parece-me tudo perdoável…

Este é o lugar que se fez nosso ninho e nele deixamos nossas marcas.

Da esperança aqui plantada, quantas bênçãos já colhemos!

Nascidos aqui ou de outras paragens, somos, todos, filhos desta terra por escolha e pelos mandos do coração.

As estações não são mais as mesmas e o trem não mais apita pelos caminhos, mas entramos para sempre nos trilhos dessa história.

Fontes:
Academia de Letras de Maringá
Imagem = http://despojosdodia.blogs.sapo.pt/arquivo/trilhos.jpg

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