quarta-feira, 2 de junho de 2010

Dimas Carvalho (Grau Zero)


Até hoje não sei se o que aconteceu comigo foi sonho ou realidade. Às vezes penso que devo ter perdido temporariamente a razão, que delirei e tive febre. Parece-me que passei por um período de insônias, delírios, suores frios, pés gelados, a cabeça doendo. Encontrei depois pelas gavetas algumas caixas de psicotrópicos, de dosagem elevada. No entanto, o meu médico afirmava que nunca estive tão normal quanto nesta época, pelo menos aparentemente. De modo que continuo sem saber o que pensar desses estranhos acontecimentos.

Tudo começou porque eu estava desempregado e tinha como hábito ir para a praça central da cidade. Todas as tardes ficava lá, absorto nos pensamentos mais desconexos, devaneando, enquanto a multidão fluía. Era um espetáculo ao qual eu não prestava muita atenção, mas que, inexplicavelmente, me distraía das idéias atrozes que me atormentavam. Eu me deixava ficar na praça até o sol se pôr, e às vezes só pelas oito, oito e meia da noite, é que voltava para casa. Neste trajeto eu gastava talvez uns quarenta minutos, que fazia sem pressa, porque morava só, num quarto pequeno, e sabia bastante bem que a noite seria muito longa. Geralmente eu lia até de madrugada, ou ficava assistindo televisão.

Assim corria a minha vida, sem grandes sobressaltos. Na parte da manhã, olhava os jornais, procurando emprego, ou então ia apresentar o meu currículo em firmas que estivessem possivelmente oferecendo vagas. Mas na maioria das ocasiões ficava em casa, lendo e fumando, quando o dinheiro dava para o cigarro.

Numa tarde — fazia três meses que eu estava sem trabalhar e o meu desânimo aumentava — cheguei à praça mais deprimido que de costume. Sentei-me num banco central, de onde podia contemplar a grande fonte, guarnecida de ninfas e dragões de pedra, e no centro da qual fica a coluna da hora. Estava concentrado em olhar para o jorro d’água, quando vi, do lado oposto, atravessando a rua, uma mulher de vestido preto. Imediatamente, alguma coisa nela me chamou a atenção — o modo de andar, os cabelos castanhos, o rosto singularmente expressivo, o quê, não tenho certeza. Mas — e foi isso que verdadeiramente me fascinou logo num segundo momento — havia no seu olhar um sentimento triste, como de uma nostalgia infinita, de quem se achasse perdida e não tivesse esperança de nunca mais ser encontrada. E esse olhar parecia que me chamava para si, embora, pelo que pude notar, ela sequer houvesse dado pela minha presença.

Me levantar e segui-la foi uma ação automática, que executei em estado de semi-inconsciência. Eu tinha a impressão de que acabava de me acontecer o fato mais importante de toda a minha existência; e sentia uma angústia intensa, esquisitamente misturada com uma alegria tal como eu nunca havia sentido.

A mulher caminhava rapidamente, e eu só avistava as suas costas, os reflexos dourados dos cabelos. O que eu mais queria no mundo era que ela olhasse para trás, pelo menos de relance, mas isto não acontecia. Apressei os passos, na esperança de alcançá-la, barroando nos transeuntes, e efetivamente me aproximei bastante, até a distância de um braço. Mas então, quando podia tocá-la, deixei-me ficar estupidamente parado, como se uma força invisível me acorrentasse ao solo. E com lágrimas nos olhos a vi desaparecer, irremediavelmente desaparecer.

Depois disto, em que estado de ânimo passei as 24 horas seguintes! Algo me dizia que a viria novamente no dia seguinte, no mesmo local e no mesmo horário. Imaginem então a noite que passei, rolando na cama, e as vezes que consultei o relógio, tentando inutilmente apressar o tempo, que, pelo contrário, se arrastava com uma lentidão de lesma. Quando o sol apareceu, não consegui me conter, e, trocando de roupa, me encaminhei para a praça, sofregamente, sem sequer me preocupar em quebrar o jejum. E durante toda esta manhã, que durou séculos, caminhei centenas de vezes, talvez milhares, em torno da praça e pelas ruas adjacentes.

Veio a tarde, e a mulher não apareceu. Desesperado, eu rilhava os dentes, mordia as unhas, e as horas passavam indiferentes, como ondas regulares de um mar tenebroso, mar de piche, lodo e lama no qual eu afundava. Às 11 da noite, perdendo definitivamente as esperanças de um encontro improvável, e após ter esquadrinhado os recantos da praça pela milésima vez, retornei para casa, trôpego e faminto. Lembro-me que soluçava, ao me aproximar do quartinho. E quando fechei a porta, louco de dor, rolei pelo chão, balbuciando obscenidades, pragas e maldições. Chorei então até desmaiar, já de madrugada, exausto de cansaço e de fome, pois nada havia comido durante todo o dia.

E assim transcorreram três dias, em que vivi como um sonâmbulo, o mundo ao redor transformado em uma massa de névoa, espessa e sem sentido. Em várias ocasiões, ao deixar a praça, onde passava agora todo o tempo, me dirigia ao porto; de cima do cais ficava vendo o mar, lá embaixo, brigando com os rochedos pontiagudos. Eu segurava no corrimão de ferro, que contorna os trapiches, e o vaivém das águas me hipnotizava, como se fosse um chamado, uma cantilena monótona e maviosa que me puxasse para dentro do abismo. E entre as espumas, trêmula, eu tinha a ilusão de avistar, submersa, a imagem mais que todas querida.

Ao cabo de três dias, a mulher apareceu novamente. Trajava um vestido azul claro, de alças, mostrando os ombros de puro mármore. Desta feita, ela me olhou por um instante, com seus olhos de mares longínquos, e houve neste relâmpago como que uma mensagem de reconhecimento, como se fôssemos companheiros de uma mesma jornada começada há muito tempo atrás, companheiros que conviveram por longos anos, e que um acaso ou um infortúnio houvesse separado. A sua boca se entreabria, para saudar o reencontro, mas foi outra coisa que ouvi, com nitidez, apesar de trinta metros mediarem entre nós dois:

— Não se aproxime de mim, será a sua perdição.

Estupefato com o que acabava de escutar, deixei-me ficar, atônito, enquanto ela desaparecia de novo no turbilhão incessante. E a partir desta data, infalivelmente, todos os dias eu conseguia vê-la, embora de modo rápido. Embora fossem baldadas todos as maneiras que imaginei para acompanhá-la, falar com ela, beijar-lhe as mãos e os olhos, ajoelhar-me aos seus pés e lhe oferecer o punhal com que ela me trespassaria o peito.

Durante esta fase — que se estendeu por 21 dias precisamente — forjei toda espécie de truques para obter seu endereço. Em meus delírios, elaborei os estratagemas mais complexos e absurdos; e em minha mente se sucediam, alternadamente e numa velocidade estonteante, a exaltação e o desânimo, a certeza mais absoluta e o desengano mais amargo. De sua visão fugaz, que sumia como um fantasma, era que eu me alimentava, e onde ia buscar forças para continuar, paradoxalmente, vivo. E somente desta fantasia feroz e febril eu tirava o meu sustento.

Passaram-se três semanas, e eu a via diariamente, mas se fosse feita a soma dos minutos, creio que estes não chegariam a dez. Dez? Talvez cinco. De qualquer forma, esta situação era menos pior do que a que veio a seguir: ela sumiu para não mais voltar.

Desde então, muitos anos se passaram. Consegui um lugar no funcionalismo público, que me garante a sobrevivência. Casei, tenho dois filhos. Minha mulher não é mais nem menos — uma pessoa mediana, normal como tantas outras. Não vou contar dos primeiros meses que se seguiram ao desaparecimento daquela que foi a luz da minha vida. Evitava passar pela praça central, pelas ruas que pudessem recordar de algum modo a sua lembrança. E tudo transcorria assim, em cores cinzas, nem menos nem mais, os anos se sucedendo em sua cantiga repetida. Até que, há uma semana, o telefone toca, sempre à mesma hora, e, quando eu atendo, um longo silêncio se segue, pontuado por uma respiração quase inaudível. E eu também nada digo, deixo-me ficar mudo, porque sei muito bem o que me espera do outro lado. As palavras que não digo, e também as que não ouço, ressoam, claras e inequívocas, na minha cabeça. Alguém, de muito longe, chama por mim.

E sei o que inevitavelmente virá: suores, delírios, insônia, pés gelados. O meu médico continua afirmando que não tenho doença alguma, e que aliás nunca tive. Sei também para onde os meus passos me arrastam, contra a vontade: para o porto, para o mar, para os recifes pontiagudos, porque entre as espumas e as ondas ela me espera, e com ela deverei, mais cedo ou mais tarde, finalmente me encontrar.

Fontes:
Nilto Maciel e Soares Feitosa. Jornal do Conto

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