quinta-feira, 3 de junho de 2010

Wilson Bueno (O Escritor em Xeque)


Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão

Como construiu o escritor que é hoje?

Posso dizer que foi uma lenta e meticulosa procura de um "sentido" para viver, pra existir cá neste mundo insensato. Não que tenha havido um propósito deliberado, digamos assim, de "construir" o escritor, como você coloca na sua pergunta. O escritor foi surgindo na exata medida em que a vida foi solicitando de mim um "sentido". E junto com esta busca, a cada vez, o gosto, o prazer do texto, a epifania da escrita. Difícil escavar a pedra bruta, muita vez só com as unhas das mãos, para dali extrair quem sabe uma esmeralda viva. Há textos que são esmeraldas vivas e não que eu tenha chegado a alguma, mas sei que isto é possível. É da natureza da velha ars literaria esta e outras amplas possibilidades. É preciso amor ao texto como se ama a um homem ou a uma mulher...

Há muita diferença entre escrever para o público infantil e para o adulto?

Olha, eu só tenho um livro destinado exclusivamente para as crianças, embora muitos de meus textos, sobretudo a parte zoofílica, as fábulas principalmente, possam ser lidos por pessoas de 0 a 100. Mas o meu único livro digamos "infantil", estrito senso, se chama "Os Chuvosos" e acaba de ser publicado, em edição artesanal-luxo, pela Tigre do Espelho, da poeta e designer gráfica Jussara Salazar. Mas, acredite, não escrevi "Os Chuvosos" pensando especificamente nas crianças, pelo contrário - era até, em princípio, para integrar o meu livro mais recente, "Jardim Zoológico" ( Iluminuras, 1999) que não é propriamente um livro infantil, não é? Mas aí deliberamos, eu e Jussara, que o livro seria destinado às crianças e como eu o tinha escrito para uma menina, Kaira, então com 5 anos, e tinha a ela dedicado o texto, "Os Chuvosos" ficou sendo mesmo um título de literatura infantil... Não sei se respondi sua pergunta, mas, em síntese, tudo para mim é o prazer do texto. Divirto- me tanto com "Finnegans Wake" quanto com as estórias dos Irmãos Grimm, e decididamente não penso, quando de minha fatura literária, pessoal, para quem eles, os textos, se destinam...

Seu mais recente livro é "Jardim Zoológico", que acaba de ser publicado pela Iluminuras. O que há de novo em seu trabalho?

Dentro de uma linha evolutiva, se assim podemos dizer, de minhas zoolatrias, que começa lá atrás, em 1991, com "Manual de Zoofilia" ( Noa Noa) onde discuto a mito-poética do amor erótico humano a partir de bichos como cadelas ou corvos, elefantes ou polvos, moscas ou colibris, "Jardim Zoológico" é um momento agudizado daquela vertente. Não fiz por menos - decidi inventar e/ou inventariar novos bichos para, a partir de sua forma e conteúdo, refletir sobre a pobre condição humana. Ali onde havia um pardal, digamos, instaure-se, por exemplo, os giromas; ali onde, arisca, cheia de nosso presto amor com raiva, se atocaiava uma raposa, coloque-se em seu lugar, os guapés, micro-cães menores que um dedo humano e seus filhotes inverossímeis. Penso que o Jardim é mais filosófico que o Manual, mais maduro também, embora, alguns exagerados, considerem o livrinho editado pela Noa Noa e que mereceu recente uma segunda edição pela editora da UFPG, a melhor coisa que fiz até hoje, chegando ao cúmulo de classificá-lo como obra-prima, - esta palavra perigosa - , o que é, evidente, uma inverdade...

Quem assina o prefácio de "Jardim Zoológico" é Arnaldo Antunes. A letra de música é poesia?

No meu entender, a poesia está em tudo o que se queira como poesia. Nos filmes publicitários, nas bulas de remédio, nos out-doors, nos muros da cidade aflita, na prosa de Goethe ou nos sonetos de Machado de Assis. Como não estaria nas letras de música, com nossos poetas-compositores, nós que somos um país musical e que acrescentamos ao mundo insuspeitadas essências nesta área - do samba à bossa-nova, do tropicalismo ao frevo? Agora, há letras de música e letras de música; como há sonetos de Machado de Assis e sonetos de J.G. de Araújo Jorge...

Com quantas metáfora se faz um poema?

Responderia a esta pergunta com uma utopia e novas perguntas - haverá a vez de um poema sem metáfora? Como seria um poema destituído de toda metaforização? Será possível um poema assim esquizofrenicamente colado ao real feito uma segunda pele? E que poesia é esta que não trans-figura? Tal poema seria, para não fugir da metáfora, só a sina de ser, rude como um coice...

Borges dizia que se há um telefone sobre a mesa e ele não tem função, a sua presença num romance é dispensável. Concorda?

Em gênero, número e grau. Este telefone exemplificado por Borges pode até não tocar, ninguém usá-lo para fazer uma ligação, mas a sua função visceral tem que ser dada. Este telefone recortado na ambiência do texto terá que dizer algo e desde já deduzimos que não será qualquer coisa, e que mesmo que seja qualquer coisa isto tem que estar conectado ao corpus do texto feito uma fatalidade.

Como você vê 18 páginas de "Mar Paraguayo" ( Iluminuras, 1992) ter sido incluídas numa das mais importantes antologias latino-americanas dos últimos tempos que é "Medusario" ( México, Fondo de Cultura Económica), organizada por Roberto Echavarren e José Kozer?

É preciso lembrar que lá também estão fragmentos de "Galáxias", de Haroldo de Campos, e também fragmentos do "Catatau", de Paulo Leminski - igualmente como representantes do Brasil na antologia. Acho que está mais do que na hora de a literatura brasileira, uma das literaturas mais ricas do mundo, ser ao menos conhecida pelos nossos vizinhos de língua hispânica. É incompreensível que não nos conheçam ou nos conheçam muito pouco. E quando travam contato com as nossas coisas, veja-se o exagero e o deslumbre - vão logo nos antologizando de um modo generoso e inteiro, como agora, com Medusario. A se destacar, o grande pequeno ensaio que introduz "Mar Paraguayo" na antologia, uma visada aguda e inteligente sobre o texto, realizada pelo crítico Roberto Echavarren. Estar ali, ao lado das mais importantes expressões da nova literatura latino-americana, além da honra, tem me dado grandes alegrias.

Como encara a Internet? Como utiliza a web? O livro corre perigo?

O livro só tem ganhado com a Internet. Nunca a literatura encontrou um meio tão pródigo em propagandeá-la, em multiplicá-la. Não é difícil hoje você ter acesso à poesia, digamos, servo-croata, bastando para tanto um endereço eletrônico e um movimento de "enter" em seu teclado. E, depois, tem o inglês, este esperanto vitorioso, que nos leva aos quatro cantos da Terra, pelas teias da web. Não viveria hoje sem a Internet - ela passou a se construir numa coisa essencial em minha vida. É nela que pesquiso, converso, bordo e danço... E, sobretudo, é companhia, quando, tarde da noite, a prática de urrar, cá no meu estúdio do arrabalde curitibano, leva-me a muitas modulações de uivos - longos, stacattos, curtos e agudos, ou graves e solenes feito o balir de um cervo em agonia...

Tem alguma epígrafe?

Tenho muitas, mas gosto particularmente da que inscrevi ao pórtico de "Manual de Zoofilia" e que é atribuída a Shakespeare - "A planta chamada mandrágora é afim com o reino animal porque grita quando é arrancada e esse grito pode enlouquecer quem o escuta."

Qual o papel do escritor na sociedade?

Nossa função, penso, é não deixar nunca que a superfície chapada das coisas vigore, ou se revigore. O compromisso do escritor é com o lúdico, com o in-útil essencial da vida. Brincantes e mágicos, feiticeiros e inventores, os escritores temos que estar atentos para que a linguagem não congele em fórmulas exitosas. Necessário o gosto e o gozo do texto sempre novo, o ar, a nova aragem. Numa sociedade que tende à estagnação da linguagem, o escritor é aquele demônio capaz de revirar o tempo todo, revirar esta mesma linguagem para que ela não pereça nem morra de preguiça ou pelo uso congelado de sua repetência. O olhar do escritor tem que estar sempre e invariavelmente na direção do horizonte... Quem se dedica a buscar, está sempre encontrando.

Fonte:
A Garganta da Serpente. http://www.gargantadaserpente.com/

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