Modelo de Aeroplano, de Leonardo da Vinci
O título do livro (que é de uma peça) convida o leitor a um passeio pelos espaços da ficção. Um bom título agarra o leitor muito mais do que um bom prefácio. E certamente o título Da Arte de Fazer Aeroplanos atrairá o leitor.
Composto de narrativas (contos, histórias, devaneios, peripécias verbais, parábolas...) curtas e algumas curtíssimas, o novo livro de Carlos Gildemar Pontes é pródigo em títulos atraentes. Entretanto, o leitor conseguirá ir além dos títulos e alcançar os finais? O primeiro – “De como Ibañez Santoro fez este conto-prefácio” – é agradável, sim. Passadas as primeiras linhas, no entanto, o leitor deparará com um “prefácio” sofrível, capaz de levá-lo a desistir da leitura.
Em “Minha gente”, originado da obra homônima de Guimarães Rosa, narrado na primeira pessoa, o contista prega uma peça no leitor, com muita sabedoria e sutileza. Sem diálogo, o narrador rememora o cotidiano em uma fazenda: animais, jagunços, trabalhadores, crianças, patrões. Durante toda a narrativa ele mantém o segredo sobre a própria identidade, embora dê vagas indicações, só percebidas no final, de que se trata de um cavalo. No terceiro parágrafo ele diz: “Meus pais eram teimosos, sofreram e apanharam que nem burro”. Ora, a teimosia é própria tanto de homens como de animais. Homens também sofrem e apanham “que nem burro”. E assim vai a narração até quase o final. Somente no último parágrafo vem a decifração do enigma: “Uma vez, tive que brigar até ficar exausto, machucado dos coices e das mordidas”. Ora, homens não dão coices. E vem o esclarecimento final: “algum tempo depois nasceu meu primeiro rebento, um cavalinho faceiro e corredor”.
As demais composições do volume se apresentam em uma ou duas páginas. Algumas são tão minúsculas que mal parecem contos: “O rio dos ventos”, bem nordestino, porém sem o ranço do velho regionalismo; “Praça sem pombos” lembra desenho a lápis (Os pombos “fugiram para outras plagas ou foram comidos por aquele gato amarelo, que vivia em posição de ataque, brincando de estátua?”); “O caçador de arco-íris”, quase poema em prosa; “O rio dos ventos”, também cheirando a sertão (“Arrumei tudo como de costume e esperei o vento trazer o rio que se foi na última seca”); “Da arte de cada um” e “O canto do velho” são parábolas. O mesmo se pode dizer de “Da arte de amadurecer”, breve esboço de conto no caderno ou rascunho de desenho na prancheta.
Em obras menos curtas, como “Por pouco eu não fui feliz”, Gildemar se vale de outros expedientes narrativos: os diálogos sem indicação dos nomes dos falantes e sem sinais (travessão ou aspas), no decorrer da narração. Como em diversas narrativas do livro, neste também o protagonista não tem nome explícito. O desenlace é ao mesmo tempo poético e fantástico: “Oito dias depois, minha sobrinha trouxe um hipopótamo para o jardim e ele, deitado sobre as roseiras, tirou a única possibilidade de eu poder ofertar a Helena um pouco do que restou de mim”. Remate inesperado, insólito, embora no início da história Helena se dirija ao homem assim: “Oi! Vim aqui visitar sua mãe, mas parece que ela viajou...”, e ele responda: “Nem notei, parece que está em Zanzibar!”
Às vezes, o contista resvala para o fosso perigoso da anedota, como em “Goipada na testa”, com o uso do linguajar matuto (... “dei uma goipada pra fora e taquei a cabeça no vrido”), e “Por falta de um adeus”. Mas consegue se recuperar em outras histórias, com certo humor que nada tem de anedótico, como em “A Lua e Natasha”.
Gildemar cultiva os mais variados temas, além de se mover com desembaraço pelo fantástico, pelo humorístico, pelo poético e pelo realismo mais brutal. No breve “O homem que botava ovo” o fantástico se desencadeia desde o título e vai até o final nesse ritmo. O protagonista todo dia botava um ovo. (“Pensou em criar galinhas no quintal e aproveitar alguma para chocar seus ovos”). A metáfora aparece em “Da arte de (des)fazer 500 anos”. Em “Meus dias de ostra” se vê o amor, a vida, a doença, a decadência física do narrador. Um dos mais soberbos momentos do livro é, sem dúvida, “Diário de um cego”. Narração sem sobressaltos, sem grandes arrufos, porém afastado da linearidade comum a muitos escritores. Seu Manuel, o cego, “sonhava com o transplante de córnea” enquanto imaginava o corpo de Dona Carmina e sentia o seu perfume. O final inesperado e poético é digno dos melhores cultores de composições ficcionais. Também o desfecho de “Da arte de fazer aeroplanos” faz balançar os corações mais sadios.
A leitura de “O sorriso do brinquedo” deixa no leitor uma sensação amarga na boca, ante a violência de mendigos no lixão, ao brigarem por uma boneca. Em apenas duas breves falas inseridas na narração, o narrador onisciente estabelece o conflito: “Quero a boneca pra minha neta. / Que nada, ela é minha”. O primeiro homem agride o outro: “dividiu sua cara ao meio com uma giletada”. A menina corre abraçada à boneca. “Sãs e salvas, as duas moram no sinal”. Como em outros finais, aqui o contista surpreende o leitor: a menina pede moedas na esquina e um “sujeito do outro lado da rua tem planos para a menina”. Mais um epílogo enigmático. Violência também se vê em “Gemidos sinceros”, cuja ação se dá num hospital. E haja cenas de brutalidade: “Chuta-lhe violentamente o saco; a cara e o peito lavados de sangue”.
Gildemar, também escritor engajado (palavra muito falada e escrita nos tempos das ditaduras), elabora algumas histórias de dor, fome, desabrigo, como “Condenado pelo tempo”, sem, no entanto, cair na arapuca de fazer discurso político. A não ser quando faz uma brincadeira com o coronel Garcia, o protagonista de “A greve”.
O múltiplo Gildemar é, pois, não só um bom criador de títulos, mas, sobretudo, um narrador de muita imaginação, capaz de fazer homens botarem ovos, como se isso fosse normal. Se algumas peças deste livro têm os títulos iniciados pela “expressão” “da arte de”, nada mais natural do que darmos a este prefácio o título “Da arte de escrever contos”.
Fortaleza, 17 de janeiro de 2008.
Fonte:
Nilto Maciel
Composto de narrativas (contos, histórias, devaneios, peripécias verbais, parábolas...) curtas e algumas curtíssimas, o novo livro de Carlos Gildemar Pontes é pródigo em títulos atraentes. Entretanto, o leitor conseguirá ir além dos títulos e alcançar os finais? O primeiro – “De como Ibañez Santoro fez este conto-prefácio” – é agradável, sim. Passadas as primeiras linhas, no entanto, o leitor deparará com um “prefácio” sofrível, capaz de levá-lo a desistir da leitura.
Em “Minha gente”, originado da obra homônima de Guimarães Rosa, narrado na primeira pessoa, o contista prega uma peça no leitor, com muita sabedoria e sutileza. Sem diálogo, o narrador rememora o cotidiano em uma fazenda: animais, jagunços, trabalhadores, crianças, patrões. Durante toda a narrativa ele mantém o segredo sobre a própria identidade, embora dê vagas indicações, só percebidas no final, de que se trata de um cavalo. No terceiro parágrafo ele diz: “Meus pais eram teimosos, sofreram e apanharam que nem burro”. Ora, a teimosia é própria tanto de homens como de animais. Homens também sofrem e apanham “que nem burro”. E assim vai a narração até quase o final. Somente no último parágrafo vem a decifração do enigma: “Uma vez, tive que brigar até ficar exausto, machucado dos coices e das mordidas”. Ora, homens não dão coices. E vem o esclarecimento final: “algum tempo depois nasceu meu primeiro rebento, um cavalinho faceiro e corredor”.
As demais composições do volume se apresentam em uma ou duas páginas. Algumas são tão minúsculas que mal parecem contos: “O rio dos ventos”, bem nordestino, porém sem o ranço do velho regionalismo; “Praça sem pombos” lembra desenho a lápis (Os pombos “fugiram para outras plagas ou foram comidos por aquele gato amarelo, que vivia em posição de ataque, brincando de estátua?”); “O caçador de arco-íris”, quase poema em prosa; “O rio dos ventos”, também cheirando a sertão (“Arrumei tudo como de costume e esperei o vento trazer o rio que se foi na última seca”); “Da arte de cada um” e “O canto do velho” são parábolas. O mesmo se pode dizer de “Da arte de amadurecer”, breve esboço de conto no caderno ou rascunho de desenho na prancheta.
Em obras menos curtas, como “Por pouco eu não fui feliz”, Gildemar se vale de outros expedientes narrativos: os diálogos sem indicação dos nomes dos falantes e sem sinais (travessão ou aspas), no decorrer da narração. Como em diversas narrativas do livro, neste também o protagonista não tem nome explícito. O desenlace é ao mesmo tempo poético e fantástico: “Oito dias depois, minha sobrinha trouxe um hipopótamo para o jardim e ele, deitado sobre as roseiras, tirou a única possibilidade de eu poder ofertar a Helena um pouco do que restou de mim”. Remate inesperado, insólito, embora no início da história Helena se dirija ao homem assim: “Oi! Vim aqui visitar sua mãe, mas parece que ela viajou...”, e ele responda: “Nem notei, parece que está em Zanzibar!”
Às vezes, o contista resvala para o fosso perigoso da anedota, como em “Goipada na testa”, com o uso do linguajar matuto (... “dei uma goipada pra fora e taquei a cabeça no vrido”), e “Por falta de um adeus”. Mas consegue se recuperar em outras histórias, com certo humor que nada tem de anedótico, como em “A Lua e Natasha”.
Gildemar cultiva os mais variados temas, além de se mover com desembaraço pelo fantástico, pelo humorístico, pelo poético e pelo realismo mais brutal. No breve “O homem que botava ovo” o fantástico se desencadeia desde o título e vai até o final nesse ritmo. O protagonista todo dia botava um ovo. (“Pensou em criar galinhas no quintal e aproveitar alguma para chocar seus ovos”). A metáfora aparece em “Da arte de (des)fazer 500 anos”. Em “Meus dias de ostra” se vê o amor, a vida, a doença, a decadência física do narrador. Um dos mais soberbos momentos do livro é, sem dúvida, “Diário de um cego”. Narração sem sobressaltos, sem grandes arrufos, porém afastado da linearidade comum a muitos escritores. Seu Manuel, o cego, “sonhava com o transplante de córnea” enquanto imaginava o corpo de Dona Carmina e sentia o seu perfume. O final inesperado e poético é digno dos melhores cultores de composições ficcionais. Também o desfecho de “Da arte de fazer aeroplanos” faz balançar os corações mais sadios.
A leitura de “O sorriso do brinquedo” deixa no leitor uma sensação amarga na boca, ante a violência de mendigos no lixão, ao brigarem por uma boneca. Em apenas duas breves falas inseridas na narração, o narrador onisciente estabelece o conflito: “Quero a boneca pra minha neta. / Que nada, ela é minha”. O primeiro homem agride o outro: “dividiu sua cara ao meio com uma giletada”. A menina corre abraçada à boneca. “Sãs e salvas, as duas moram no sinal”. Como em outros finais, aqui o contista surpreende o leitor: a menina pede moedas na esquina e um “sujeito do outro lado da rua tem planos para a menina”. Mais um epílogo enigmático. Violência também se vê em “Gemidos sinceros”, cuja ação se dá num hospital. E haja cenas de brutalidade: “Chuta-lhe violentamente o saco; a cara e o peito lavados de sangue”.
Gildemar, também escritor engajado (palavra muito falada e escrita nos tempos das ditaduras), elabora algumas histórias de dor, fome, desabrigo, como “Condenado pelo tempo”, sem, no entanto, cair na arapuca de fazer discurso político. A não ser quando faz uma brincadeira com o coronel Garcia, o protagonista de “A greve”.
O múltiplo Gildemar é, pois, não só um bom criador de títulos, mas, sobretudo, um narrador de muita imaginação, capaz de fazer homens botarem ovos, como se isso fosse normal. Se algumas peças deste livro têm os títulos iniciados pela “expressão” “da arte de”, nada mais natural do que darmos a este prefácio o título “Da arte de escrever contos”.
Fortaleza, 17 de janeiro de 2008.
Fonte:
Nilto Maciel
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