terça-feira, 1 de junho de 2010

Walcyr Carrasco (A Noite do Ridículo)


Nem o materialista mais ferrenho resiste a um ritualzinho para garantir o bom astral do ano que entra. O réveillon transforma-se na noite do ridículo. Qualquer um perde a compostura para garantir umas vibraçõezinhas. Certa vez fui convidado para uma casa noturna elegantíssima. Parti em doce companhia, com um casal de amigos. Lá pelas tantas veio a promoter :

- À meia-noite, cada um deve comer sete uvas e dar sete pulinhos com a perna direita.

Boa parte dos presentes gostou da idéia. Não demorou muito, ao som de rojões, começou o pula pula. Minha acompanhante quase quebrou o nariz, embaraçada no longo de seda. Na pressa de comer as uvas, lancei uma na cabeça de meu amigo. A própria promoter despencou do salto. Ouvi gritinhos por todo lado. Há pessoas capazes de se arriscar ainda mais. Um casal desceu até Santos só para botar os pezinhos (aliás, bem gordos) no mar. Acabaram entrando de corpo inteiro. Ela quase foi arrastada pela maré. Gritava, agitando os braços. e o marido agitava de volta, saudando. Pensou que era alegria. Foi salva por um pai-de-santo que fazia oferendas a lemanjá. Voltaram exaustos. A gripe bateu no dia seguinte. O marido é de um otimismo inexorável:

- Tivemos sorte. Não virou pneumonia.

O cardápio da ceia segue regras. Não se podem comer aves, pois elas andam para trás. Como falta glamour ao filé, um número surpreendente de mesas oferece pernil de porco. Lentilhas obrigatórias, para trazer fartura. Tudo acompanhado por champanhe. Ou sidra! Ainda não me informaram se congestão dá sorte. Na sobremesa, não pode faltar romã. Deve-se comer e guardar sete caroços embrulhados na carteira o ano todo. Assim não faltará dinheiro. Já fiz. Depois de algum tempo, os caroços ficam bem escurinhos. e o papel vira um trapo. Cada vez que se abre a carteira, voam em alguma direção. Suo frio. Salvo os carocinhos, mesmo sob o olhar horrorizado de um diretor de banco. Sempre juro não guardar mais caroço nenhum. Na última hora, não resisto. Na semana passada mesmo, saí para comprar uma romã. Aliás, caríssima. Sem dúvida, os caroços resolvem a vida dos fruteiros.

Deve-se usar roupa branca. De preferência. nova. Meu armário parece de médico. Ano após ano, fui acumulando calcas, camisas e camisetas. Por sorte nunca me dediquei, até hoje. a cuecas vermelhas. Há quem não dispense uma, embora fiquem horríveis sob a calça alva. No último réveillon, uma amiga apareceu de preto. Os presentes torceram a boca. de horror.
- Quero dar uma virada.

Por incrível que pareça, a virada aconteceu. Agora ela garante que só usará negro. o resto da vida. Sim. porque além das mandingas conhecidas, cada pessoa inventa as próprias. Um não pode ficar de costas pela janela. Outro deve se pendurar no parapeito. Uma vez fui a uma festa em uma cobertura. À meia-noite., insuflados pelo anfitrião, os presentes atiraram moedas pelo terraco. Quase assassinaram uns adolescentes que passavam na calçada, Agora, descobri uma nova maneira de eliminar maus fluidos. Acende-se uma fogueira. Os convidados se reúnem em volta. Gritam, bem alto, agitando as mãos:

-Vamos jogar a inveja! Vamos jogar a má sorte!

Belo espetáculo! Um amigo revela:

- O ideal é fazer a fogueira na praia. Depois, entrar no mar, saltar sete ondas. Voltar para a areia, ajoelhar e acender urna vela. Aí, abraçar correndo todo mundo que estiver por perto. mesmo desconhecidos.

- É réveillon ou competição de atletismo? - espantei-me.

Outra atividade imprescindível para muitos é mostrar o bumbum para a lua. No ano passado, uma festa inteira se entregou a esse inusitado ritual de prosperidade. Ninguém deveria olhar o bumbum alheio. Mas um malvado tirou fotos! Surpresa. Lá estava, toda arrebitada, a mãe do dono da festa, pacata senhora de 80 anos.

- A senhora também? - admirou-se o filho.

- Fiz e sou feliz - respondeu, orgulhosíssima.

Quem tentar cumprir tudo que aconselham acabará com uma fratura exposta. Imagino alguém tentando dar sete pulinhos e, ao mesmo tempo, expor o bumbum ao luar. Pessoalmente, sou cético. Se andei comprando lentilhas, velas brancas e as tais romãs, foi por via das dúvidas. Não é que creia nas bruxas. Mas não custa garantir.

Fontes:
Revista Veja. 24 de dezembro de 1997.

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