terça-feira, 1 de junho de 2010

Astolfo Lima Sandy (O Menino Que Desejava Reinventar o Mundo)


As estantes do meu avô materno – velho Mestre de Latim e primo legítimo do notável poeta Gerardo Melo Mourão – eram todas na chave, e somente através do vidro de cada porta eu conseguia visualizar a lombada das belas encadernações francesas de mil oitocentos e antigamente. Postava-me um tempão a escorrer a vista pelas prateleiras, soletrando nomes estrambóticos que eu imaginava pertencerem aos inventores do mundo: Shakespeare, Goethe, Hordellin, Sófocles, Aristóteles e tantos mais. Machado de Assis e José de Alencar seriam apenas amigos do vô, e a esses eu concederia menor importância. Interessavam-me, isto sim, os caras das capas luxuosas aos quais, vez por outra, meu estimado velho se punha a manusear como se estivesse degustando delicioso cálice de vinho. “Formidável” – repetia para si mesmo em voz quase inaudível, olhos fitos em um poema de Banville.

Ficava eu de longe a torcer que vovô esquecesse as chaves em algum lugar, o que dificilmente ocorria, dado que naquele tempo era comum mantê-las sempre em fecho, penduradas no cós das calças, do modo como ele fazia em gesto automático logo que abria ou travava uma fechadura. Apenas uma vez vacilaria, por conta de um filho seu que acabara de chegar de Fortaleza e com quem ficara a bater papo e consultar livros durante horas. No abre e fecha de estantes, terminaram por deixar só encostada a porta da principal, do que me aproveitei para subtrair o livro mais bonito. Fui flagrado, contudo, por meu sábio avô no exato instante em que virava a primeira página da Divina Comédia “Não é um tipo de leitura adequada para sua idade” – diria, recolhendo o tomo do Paraíso, que eu só tentaria desvendar alguns anos mais tarde.

Meu primeiro contato com o universo da literatura, portanto, foi essa coisa meio que transgressora, misto de curiosidade e temor, porém sincera e espontânea a ponto de consolidar em mim profundo respeito pelos verdadeiros astros da boa escrita. Não que eu viesse a me transformar num sujeito seletivo em suas futuras leituras ou mesmo nas eventuais construções literárias que pudesse produzir um dia. Nada disso. Bem ao contrário, vez que até escreveria livros, mas nunca me supondo escritor ao molde como ficou cunhada em mim a imagem de um verdadeiro artista das letras. Seria, quando muito, um escrevinhador autônomo, contido, apenas a perpassar as banalidades do cotidiano, sem ousar nas tentativas vãs, jamais querendo me estender nos assuntos mais relevantes que já haviam sido vasculhados pelos reais construtores da Literatura.

E foi imbuído desse espírito, despojado de ambições menores que adentrei, já maduro, ao cenário onde pontificavam os senhores e senhoras do velho tronco genealógico que controla nosso Estado desde que Martins Soares Moreno por aqui aportou, conforme já relatei na minha Breve História da Literatura Cearense, publicada neste blog. Ou seja: era eu (e ainda sou) figura totalmente indesejável ao meio. Um sujeito sem cargos nas administrações públicas, distante das academias, desprovido de títulos e que, embora originário de uma família que ajudou a desbravar seu amado Ceará, tentava credenciar-se com um nome que, se em Minas Gerais (terra de meu pai) dava título a uma cidade, aqui, para eles, nada representaria. “Quem?” – costumavam indagar, desdenhosos e infames. “Astolfo Lima sandy, já ouviram falar?” – respondiam entre dentes, sem que pudessem disfarçar o risinho não menos cafajeste.

E todo esse falso desassombro, essa empáfia desmedida e esse deliberado boicote ao meu texto, se fizeram mais acentuados depois que redigi um “Abecedário de Autores Cearenses” e joguei na Internet, denunciando logo em seguida algumas farsas que eram bastante comuns por aqui. Por exemplo: se houvesse um Concurso Literário, era quase certo que o vencedor estaria dentre aqueles mais visíveis nas colunas sociais, geralmente um medalhão prenhe de títulos e condecorações, mas com uma escrita questionável. Deles que chegavam ao cúmulo de intimidar os jurados que não fizessem parte da mesma confraria. “Olhem, eu estou participando desse Prêmio, viram bem?!” Certa vez duas instituições muito populares por aqui firmaram parceria na elaboração de um Concurso Literário que oferecia ótima grana em dinheiro e mais uma viagem à Europa. Sabem quem ganhou! Pois é: um deles, que, por acaso, ocupava a vice de uma co-patrocinadora do evento, o que era proibido pelo regulamento. Levou o prêmio no grito, sem que enfrentasse qualquer resistência por parte daqueles que haviam sido logrados. Apenas este que vos fala teve a hombridade de por a boca no trombone, se bem que a partir de então se transformasse em “persona non grata” no mundinho torpe da literatura provinciana.

A mesquinhez chegou a um ponto tal que eu jamais ganharia qualquer prêmio no Ceará, ainda que tivesse os mesmos textos contemplados em vários outros Estados da Federação, inclusive recebendo o Prêmio da Biblioteca Nacional pelo livro “A Grande Fábrica de Brinquedos”, que fora sistematicamente ignorado em todos os concursos em que eu o submetera por aqui. Apenas uma única vez, começo do ano passado e quase uma década depois de haver lançado meu primeiro livro, tive um romance premiado por um órgão oficial da terra, se bem que eu não entenda até o presente momento o motivo de terem demorado mais de um ano para depositarem a primeira parcela correspondente ao mesmo, o que só ocorreu no mês passado, após eu ter ido pelo menos uma dúzia de vezes a tal repartição, sem que me explicassem claramente o porquê de tanta demora. Uma coisa desgastante em que até cogitei de comunicar ao Governador, um político honrado a quem vivo a enaltecer pela excelente administração que está fazendo em nosso Estado, e que muito provavelmente nem tomou conhecimento desses pequenos “entraves burocráticos”.

Em off, da boca ferina de alguns espiroquetas que tiveram suas obras desclassificadas no referido certame, cheguei a escutar que o prêmio seria anulado, muito embora eu já estivesse com o contrato assinado e o resultado devidamente publicado no Diário Oficial. Tudo não mais que guerrinha psicológica – imaginei – ainda que eu não pudesse descartar nada em uma terra onde eles podem simplesmente tudo. A única coisa que me deixou mais tranqüilo foi saber que um dos jurados que selecionaram as obras é gente famosa na literatura nacional. Será que se atreveriam?

Fontes:
Ceará, Terra do Sol. http://cearaterradosol.blogspot.com/

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