domingo, 20 de julho de 2008

Rachel de Queiroz(A Imagem Feminina)

Vocês já repararam que o Rio e as outras grandes cidades do Brasil não têm mudado muito em matéria de crimes? Na maioria eles sucedem dentro do binômio homem x mulher e se baseiam todos no amor. É fácil concluir, portanto, que o amor é a mais matadeira de todas as paixões.

O amor tem como condição primária ser exclusivo. E, como o ser humano tem como aspiração máxima a variedade, o amor acaba batendo de frente com tudo a que o homem aspira. Durante séculos admitiu-se que o privilégio da exclusividade pertencia ao homem. Antigamente, toda heroína de romance se ousava variar de amor, trair o prometido, era castigada imediatamente pelo autor, que não lhe consentia liberdade para tais assomos sem a devida punição. Foi o nosso grande Machado que liquidou com o binômio “crime e castigo” em matéria de amor.

Mas nem ele nem nenhum outro permitiu a uma heroína pecadora o direito de espezinhar, sem castigo, a lei e os bons costumes. Isso se deu não apenas no Brasil, mas no geral da literatura universal.

Os escritores chamados malditos, não recordo nenhum deles que fizesse a mulher triunfar dentro do crime e da maldição. Só é castigada com uma eventual condição de pobreza ou com a morte do amante. Quem quiser verificar essa afirmação é só correr a lista das amantes de romance: Mme. Bovary, a Dama das Camélias, etc.

Verdade que todos esses tipos são criações masculinas, e o homem, por melhor escritor que seja, tem a tendência de estereotipar a mulher: a má e a boa, a fiel e a infiel, e assim por diante. O mais sutil dos nossos romancistas, que foi Machado, só cria mulheres naturalmente tendentes para o engano, a mentira, a duplicidade. É, aliás, o que a crítica costuma chamar de sutileza esse esmero com que eles se empenham em interpretar o coração da mulher. Segundo eles, só as muito ingênuas, as quase imbecis, são capazes de um amor fiel e leal. As outras estão sempre a oscilar entre uma mentira e um passo em falso, entre um pouquinho de traição e uma dose necessária de fidelidade. Pensando bem, a literatura masculina só traduz as informações que eles acham ter do eterno feminino; afinal, eles só conhecem a mulher pelo que vêem e ouvem dela: como é que iriam saber realmente o que se passa dentro de um coração de mulher? Flaubert, um emérito conhecedor da alma feminina, traduz bem essa impotência masculina, diante do feminino, com a sua célebre frase: “Mme. Bovary c'est moi.” Quer dizer que ele, homem, pretende interpretar a sua criação feminina com sua própria alma de homem. Em que entra o feminino nisso? Se Mme. Bovary é ele, com quais elementos a formou? Se ele, grande autor, só consegue tirar informações sobre o feminino da sua experiência masculina, que crédito merecem essas informações? A carência é, pois, total. Os mestres da alma feminina, quando pensam em mulher, pensam em si próprios. Chega quase a ser ridículo. E a mulher continua, em todas as literaturas, um monstro indecifrável e, talvez por isso mesmo, irresistível.

Refiro-se apenas à literatura masculina. As mulheres escritoras não se desfazem em confissões, ou as que o fazem, em geral, se permitem mais confissões chocantes ou comoventes em vez de honestos estudos psicológicos. Como não ousam desnudar-se o texto da prosa, o que é mais chocante, tomam mais liberdade com a poesia, que lhes permite metáforas e confissões mais abertas.

Abrindo exceções quanto à pouca confessionabilidade da literatura feminina no geral, temos por exemplo Emily Brontë, que rasga todos os véus e não se esconde sob o seu eu feminino para se confessar.

Mas foi ela, e poucas mais.

Hoje em dia, com a permissibilidade geral sobre assuntos de sexo, as mulheres descerraram as cortinas com maior ou menor modéstia; sendo que a menor é a mais comum. Damas que normalmente estariam na condição de uma Colette se abrem em confissões que no tempo de um Zola escandalizariam. Essa intemperança atual tem o seu mérito. Acabaram-se os territórios fechados onde a mulher não poderia entrar. E se há excessos, por que os há, quanta coisa boa que hoje temos não seria escrita por mão de mulher, temerosa de pisar no terreno vedado dos autores masculinos. É o caso de se dizer: liberdade ainda que tarde.

Fonte:
O Estado de Minas - Belo Horizonte - MG, 11/06/2000 Rachel de Queiroz
http://www.academia.org.br/

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