terça-feira, 15 de julho de 2008

Jorge Amado (Gabriela, Cravo e Canela)

Na progressista Ilhéus, a capital do cacau, vivia Nacib, sírio, naturalizado brasileiro, que aqui estava desde os quatro anos de idade. Dono do bar Vesúvio e ilheense de coração, não se lembrava de nada de seu país. Numa manhã, precisamente às seis horas, foi acordado por Filomena, sua cozinheira. Meio atordoado entendeu que ela estava indo embora; iria para junto do filho, agora casado e carente de sua presença.

Repentinamente, Nacib se viu sem cozinheira, exatamente, um dia antes do jantar para trinta pessoas, que seria dado no Vesúvio, em comemoração da recém-inaugurada empresa de ônibus que fazia Ilhéus-Itabuna duas vezes por dia. Agora Ilhéus tinha um serviço de transporte coletivo, graças ao empreendimento de dois homens corajosos - o russo Jacob e o Moacir da garagem. Além disso, precisava de um tabuleiro de doces e salgados para o bar.

Foi à casa das irmãs dos Reis, Quinquina e Florzinha que, além de excelentes doceiras e quituteiras, faziam o maior e o mais visitado presépio da cidade. Aceitaram a encomenda, por que se tratava do senhor Nacib; estavam muito atarefadas com o presépio. Naquela manhã, trabalhando no bar, contava sua desventura a todo freguês, na expectativa de que este conhecesse uma cozinheira disponível. Não poderia ficar com as dos Reis; eram muito caras. Logo após o almoço, aceitou a sugestão do professor Josué; iria mais tarde ao 'Mercado de Escravos', onde se instalara uma leva de retirantes flagelados. Talvez, com sorte, pudesse encontrar uma cozinheira em meio àquela gente.

Naquela manhã, muitas coisas ocorreram em Ilhéus, fazendo a cidade fervilhar. Quando estava para atracar no porto, o Ita encalhou na areia, ficando ali horas. Dizia-se, com veemência que a falta de um porto decente era um despropósito para uma cidade daquele porte. Além da costumeira leva de comerciantes e aventureiros, o navio trazia de volta o exportador de cacau, Mundinho Falcão que tinha ido ao Rio para ver a família e fazer contatos políticos. Era solteiro e, como a maioria das pessoas, viera para Ilhéus em busca de fortuna. Além disso, queria tentar esquecer um grande amor.

A notícia do assassinato de um casal de jovens correu rápido como um relâmpago pela preconceituosa cidade. Naquela manhã, o coronel Jesuíno flagrou sua esposa, Sinhazinha, na cama com o dentista, Dr. Osmundo, matando-os em seguida. Comentava-se e discutia-se calorosamente a tragédia dos dois apaixonados; divulgavam-se versões da sociedade, opunham-se detalhes, mas com uma coisa todos concordavam: o gesto macho do coronel era constantemente louvado. Para a provinciana Ilhéus, honra de homem enganado, só o sangue poderia limpar. Na busca de razões, os mais conservadores diziam que o vilão de tudo isso era o clube Progresso com seus bailes.

Quando a tarde caiu sobre Ilhéus e o bar começou a esvaziar, Nacib se dirigiu ao Mercado. Entre os retirantes notou uma mulher em trapos miseráveis, pés imundos descalços e cabelos desgrenhados. Estava tão suja que não se podia ver-lhe as feições ou dar-lhe a idade; respondeu que se chamava Gabriela e que sabia fazer de tudo. Mesmo achando que não era verdade, Nacib levou-a consigo, para experimentar o seu serviço. Quando chegaram em casa, mostrou-lhe os aposentos e o quarto onde ela ficaria. Antes de sair, mandou que tomasse um bom banho; iria ao bar e depois acabaria a noite no Bataclan, onde estava de xodó com Risoleta.

Para surpresa de Nacib, Gabriela revelou-se competentíssima no forno, fogão e arrumação de casa. Além disso, era uma bela morena com lábios de pitanga; era de uma beleza simples, pura. Logo, a moça se inteirou de tudo da casa, arrumando tempo até para levar o almoço do patrão e ajudá-lo no bar, enquanto este almoçava. Não só os quitutes da jovem cozinheira trouxeram mais clientes ao bar, como também sua presença que a todos encantava. Ela, por sua vez, se encantava também com os moços bonitos que freqüentavam o bar. Voltava para casa, quando o Sr Nacib se acomodava na espreguiçadeira para a sesta de alguns minutos no começo da tarde. Gabriela gostava de brincar, correr com as crianças, ficar descalça, ir ao circo e de rir, ria sem motivo, ria sempre e muito com sua boca de pitanga e uma flor nos cabelos.

Os Bastos comandavam o destino político de Ilhéus há mais de vinte anos, prestigiados pelos sucessivos governos estaduais. O velho coronel Ramiro Bastos não via com bons olhos a liderança do rico forasteiro, Mundinho Falcão. O exportador estava presente em quase tudo o que se fazia em Ilhéus: a instalação de filiais de bancos, empresa de ônibus, a avenida na praia, a publicação do jornal diário, os técnicos vindos para as podas de cacau, arquitetos para projetar os palacetes dos coronéis. Preocupado, o coronel achava que a sombra de Mundinho estava escapando de seu controle.

Mundinho, cuja família era importante nos meios políticos do sul, tinha um irmão deputado e parentes na diplomacia. Para ele, as necessidades dos coronéis não mais correspondiam com as necessidades da cidade em rápido progresso, por isso auxiliava novos empreendimentos. O capitão, cuja família sempre se opôs aos Bastos, via no jovem exportador uma pessoa com condições de fazer frente ao poder do coronel Ramiro. Mundinho gostou da idéia e se colocou em campanha política.

Nacib, como todo ilheense, queria ganhar dinheiro, prosperar e comprar terras para plantar cacau. Gostava das coisas simples e boas da vida, mas mostrava-se preocupado; os homens do bar estavam todos de olho em Gabriela, ela recebia recados, bilhetes com propostas de coronéis para as quais sempre respondia não, nunca deixaria seu Nacib. Quando um mais ousado lhe tocava a mão ou pegava-lhe no queixo, ria apenas, não se zangava. Nacib não sabia por quanto tempo ela resistiria à tão boas ofertas e isso o afligia.

Ele não queria perdê-la. Desde o segundo dia em sua casa, dormiam juntos à noite, e a cada noite ele morria em seus braços ardentes e corpo insaciável. Renovada a cada noite, ela chamava-o de seu moço bonito, minha perdição. Ela nunca pedia nada por isso. No outro dia, agia como se nada tivesse ocorrido entre os dois, olhava-o como aos outros, tratava-o como patrão. Para Nacib, o fogo de sua pele morena cor de cravo e cheiro de canela estava cravado no seu corpo, que não queria perder.

O motivo pelo qual Ilhéus ainda não tinha um porto era a grande quantidade de areia na barra, fazendo os navios encalharem. Todo o cacau para o estrangeiro saía via Salvador e, conseqüentemente, boa parte do dinheiro da exportação ficava na capital. Segundo Mundinho, esse era o motivo do desinteresse dos sucessivos governos e, por tabela, dos coronéis em adiarem a construção de um porto em Ilhéus. Um dia, ao desembarcar do Ita, vindo do Rio, o exportador espalhava a todos que a solução para o caso da barra já havia sido providenciada; um engenheiro estaria a caminho em alguns dias.

Nacib não ia mais ao Bataclan; não precisava; todos notaram. Mesmo sabendo o tipo de relacionamento que o árabe mantinha com a formosa empregada, oficialmente, para os fregueses, ela não passava de sua cozinheira e, por isso, tratavam-na como tal, enchendo-a de propostas atrevidas, bilhetinhos, atenções e piscadelas. Surpreendentemente, notava Nacib que, o único a tratar Gabriela com certa distância, como uma senhora respeitável, era o filho do coronel Ramiro, Tonico Bastos, o garanhão de Ilhéus.

Era casado com Olga, filha única de família muito rica. Apesar de a mulher trazê-lo com rédeas curtas, era tido como mulherengo e conquistador. Todos os dias, religiosamente, antes de voltar ao tabelião, depois das duas, Tonico parava no bar para um digestivo. Nessas ocasiões, Nacib confidenciava-lhe suas agruras afetivas. Achava que a solução era se casar com Gabriela. Assim, ela não viria mais ao bar; ele perderia muitos fregueses, o que para ele, não importava mais. O problema era como se casar com uma mulata, cozinheira, sem família, retirante encontrada no mercado, naquela cidade preconceituosa. Com certeza, todos iriam falar.

Uma noite, ao invés de ir ao quarto de Gabriela, Nacib, pela primeira vez, trouxe-a para o seu quarto e ali se amaram. Ele a chamava de Bié, e ela gostava, achava que era nome de gringo Ele disse que se casariam; ela seria a senhora Saad; vestiria roupas finas e jóias caras. Para Gabriela, não carecia casar, era melhor do jeito que estava; ela nunca deixaria Nacib. Gostava muito dele, era seu pai, seu irmão, seu amante. Entretanto, gostava também de correr solta no sol, tomar banho frio, mastigar goiaba, comer manga espada e morder pimenta. Gostava de andar pelas ruas, cantar cantigas, com um moço dormir e com outro sonhar. Achava que teria de tomar cuidado, Nacib era homem bom, não queria magoá-lo. Mas, por outro lado, não podia ficar sem sair de casa, sem ir à janela, sem ouvir a voz de homem.

Após três meses, chegou Dr. Rômulo Vieira, o engenheiro que faria os estudos da Barra. Malvina, filha do coronel Melk, era conhecida pela personalidade ousada. No enterro de Sinhazinha, levou uma flor à infiel falecida, o que deu origem a muito falatório na cidade. Gostava de ler; Lia bastante, sempre sob orientação de João Fulgêncio, o livreiro de Ilhéus. Ela apaixonou-se por Rômulo, que era casado. Quando Melk soube desse pormenor, tentou impedir, surrando a filha. Esta tentou fugir com o engenheiro, que não quis assumir a paixão. Acabou interna, em um Colégio de freiras no Rio. Mais tarde, aproveitando a saída para as férias, conseguiu fugir.

O casamento trouxe uma série de proibições para Gabriela. Não podia andar descalça, correr na praia com os cabelos despenteados, molhar os pés na água, ir ao bar ou ao circo; não podia mais rir sem razão. Ela era a senhora Saad e como tal, tinha que se vestir como as mulheres dos médicos e advogados da cidade, tinha que ouvir as maçantes palestras do Grêmio tinha que visitar a tia de Nacib. Às escondidas, ia ensaiar para o Terno dos Reis; se, nas festas de fim de ano, Nacib não a deixasse sair vestida de pastora, levando o estandarte, pelo menos já teria dançado bastante nos ensaios.

Na véspera de ano novo, teve de ir com o marido ao enfadonho baile no Clube Progresso. Quando deu onze horas, todos correram para a rua ver o Terno dos Reis que passava. Gabriela, cega, não enxergando mais ninguém, correu para o bloco, roubou o estandarte de Miquelina e entrou na dança. Dona Jerusa, vendo o constrangimento de Nacib, saiu dançando também, puxando outros consigo. Em seguida, toda alta sociedade ilheense dançava com o Terno, ladeira abaixo.

Como o tempero de Gabriela estava fazendo sucesso, Mundinho propusera a abertura de um restaurante em sociedade com o árabe, que aceitou prontamente. Este se chamaria Restaurante do Comércio. Nesse período também, Nacib começou a notar que Gabriela não o esperava mais com o ardor inicial. Uma tarde, na hora do trago de Tonico, queixou-se ao seu antigo confidente, padrinho também do casamento. O tabelião lhe explicara que assim se passava em todos os casamentos: o amor se acalmava; era um doce amor de esposa, discreto e espaçado, sem mais a violência da amante, exigente e lasciva.

A desavença com Bico-Fino, um dos seus funcionários, levou-o a descobrir que Gabriela o traía com Tonico. Este se enfiava na casa de Nacib, logo após o digestivo da tarde. Em confissão o outro ajudante, Chico Moleza, confirmou que Tonico era o mais recente; tinha havido outros e desfiou nomes. No dia seguinte, após o amargo da tarde, Tonico saiu. Nacib esperou um quarto de hora e foi para casa, flagrando os dois na cama. Mesmo com o revólver na mão, não os conseguiu matar. Surrou Gabriela até marcá-la.

Naquela sociedade, se ela fosse sua rapariga, as pancadas que lhe dera bastavam, mas como marido, manchas roxas não eram suficientes para lavar a honra. Teria de sair de Ilhéus se não quisesse servir de chacota. João Fulgêncio sugeriu que seria fácil anular o casamento e se propôs cuidar do caso para o árabe. Como retirante, Gabriela não possuía documento. Para casar, Tonico forjara uns papéis no cartório para Nacib. A prova de que os documentos eram falsos se caracterizava como 'erro essencial de pessoa', o que anularia o casamento, e assim ele não estaria mais casado; tudo não passara de amigação.

Como a civilização ilheense foi construída à base de documentos falsos, algumas conversas com quem de direito bastaram para que o processo de anulação do casamento fosse aprovado. Dessa forma, Nacib encontrou-se novamente solteiro e a senhora Saad voltou a ser Gabriela, que não entendia o motivo que impedia seu Nacib de não a quer mais de volta, se já não eram mais casados, se nunca tinham sido. Não entendia porque só aos homens era dado o direito de trair. Para ela, era difícil; quando tinha vontade, fazia, sem lembrar que não era permitido. Magoada, queria, pelo menos, cozinhar para ele, preparando os quitutes para o bar. Ficou morando na casa de dona Arminda e costurando para o florescente atelier de Dora.

O combate político entre Mundinho e Ramiro Bastos teve como saldo: sede de jornal queimada, atentados de morte, homens surrados, além do falecimento do próprio Ramiro, cujo coração velho não agüentou. Até Gabriela se viu envolvida, ao esconder, no quarto dos fundos de sua casa, sem que Nacib soubesse, o negro Fagundes, retirante que ela conhecera na estrada, a caminho de Ilhéus. Capanga do coronel Melk, ele tinha comandado o atentado contra Aristóteles, o intendente de Itabuna.

Para Nacib, aparentemente, tudo voltara ao normal. Os fregueses lá estavam, jogando, rindo, bebendo aperitivos antes do almoço e do jantar. Ele se refizera por completo, a ferida cicatrizara no peito, já não cercava dona Arminda para saber de Gabriela, ouvir notícias das propostas recebidas e recusadas por ela. Sentia muita falta, sim, do seu tempero e quitutes. No Vesúvio, não havia tanto consumo como no tempo de Gabriela. A cozinheira, que mandara vir de Sergipe, não ia além do trivial; era um blefe.

Quanto ao Restaurante do Comércio, Mundinho mandara vir um cozinheiro de Salvador, Fernand chef de cuisine. Gabriela viu, na presença desse cozinheiro, uma ameaça: nunca mais voltaria a trabalhar para o seu Nacib. Infeliz, com o peito vazio e sem gosto para vida, procurou auxílio no terreiro de Sete Volta. Na véspera da inauguração do restaurante, Fernand desapareceu.

Na tentativa de solucionar o problema, dona Arminda sugeriu, mais uma vez, Gabriela, que até então não tinha sido aceito por Nacib. Ao ouvir o nome da cozinheira, João Fulgêncio disse que ali estava a solução e explicou a Nacib, que a relação anterior com ela não passara de amigação; já estava tudo anulado. No dia seguinte, o restaurante foi inaugurado. Para a felicidade geral, Gabriela tinha voltado, mas o restaurante era um fracasso em termos de clientela. Todavia, suas mesas se deram muito bem para a jogatina que ali ocorria todas as noites.

Algum tempo depois, Mundinho se elegeu deputado federal por Ilhéus, os trabalhos no porto na Barra estavam em adiantado progresso e Jesuíno foi condenado, tornando-se o primeiro coronel do cacau a ser preso pelo assassinato de Sinhazinha, esposa adúltera, e do amante. Gabriela voltara a ser a mulher livre e feliz de outrora. Ria e folgava, mas às onze horas estava de volta em casa para esperar seu Nacib que, por sua vez, quando não havia nada interessante no cabaré, voltava aos braços ardentes de sua cozinheira, não existindo nada igual.

Fontes:
http://www.algosobre.com.br
http://www.sebodomessias.com.br (imagem)

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