domingo, 13 de julho de 2008

Waldemar José Solha (Trigal com corvos)


[Excerto 1]

Mas
pense nessas fotos em que não se sabe se é o caso
de aurora ou de ocaso.
Pense em diamantes entre pedras de gelo.
Pense em Herodes perdendo a cabeça por Salomé e lhe concedendo a de Batista.
Pense em homens-rãs usando seus pés-de-pato.
Pense em pássaros assombrando-se com os espantalhos mais tolos
e cobrindo as estátuas mais ferozes de cocô.
Pense no fato de que o Este demais é Oeste
de que toda subida é descida
toda entrada
saída
e de que quanto mais você se orienta
mais pode se desnortear
ou de que quanto mais se norteia
mais pode se desorientar.


[Excerto 2]

Aqui acolá temos a impressão de que — ao meter-se a chave certa e dura na vagina da fechadura — a porta hermética vai finalmente abrir-se
mas há — ainda — tricas e truques
trincos e trancas
e o segredo.
Talvez este:
Como
no cinema
você só não consegue não ver o movimento que não existe na tela

nele vejo a melhor imagem do Tempo
centralizada no projetor.

Naquele aparelho vemos o passado se acumulando de um lado — no que o presente é projetado — e o futuro (praticamente pronto) desenrolando-se do outro.
Donde concluímos que
completo
o filme precisa de nós
para que seu presente
eterno
se sujeite ao móvel momento físsil
que torne — embora isso seja difícil — todo o mistério em vida revelando-nos a que veio.

[Excerto 3]

Nada se move na casa.

Nem no quarto minguante
nem no quarto crescente
no corredor da morte
nem no saloon.

Nada se move
além dos peixes vermelhos entre parênteses no aquário.

Mas a nota magrinha faz plim!
a nota oblonga faz blom!
abrem-se as janelas!
Com um tiro azul
dois amarelos
e um último — laranja — dados pelo canhão que defende a cidade
o jardim se torna lilás e os copos-de-leite mais alvos.

O povo se junta à beira do lago
lá fora
para me prestar homenagens pelos poemas que fiz. Primeiro
de barba verde e sem faca
o marchante me oferece um bezerro
visível dentro da vaca.

Cheias de pólens
corolas
pistilos (com escaravelhos verdes — ou azuis
conforme as curvas
que fazem
na luz)
mulheres me oferecem laranjas
sem destacá-las dos talos dos laranjais!

Marx — deixando de lado a pose de bruto — desce do pedestal e me dedica um charuto.
Como clímax de um jogo
estala os dedos de pedra e me oferece
o fogo.
O céu então fica lívido e a Terra
outro planeta!

[Excerto 4]

É claro que não existe
nesse cobra-engolindo-cobra do ecossistema
nem na "fúria dos elementos"
que estropia tudo que tem pela frente à vontade

nada que se possa chamar de "bondade".
Porra
Hiroshima & Nagasaki piores que Sodoma & Gomorra?
E que dizer da morte
esse romper-se moer-se rasgar-se roer-se solver-se
queimar-se
muitas vezes num brusco pavor
entre asfixias e
mutilações
torturas
numa infinidade de variações
como gangrenas
lepras
putrefações
deformações terríveis
tudo marcado por insuportável dor?
O que existe é um frio programa que usa sofrimentos como esporas que
estuguem nosso esforço pela Evolução
e onde o que importa é o superorganismo chamado Homem
não cada uma das milhões ou bilhões de células ambulantes que somos dele salvaguardada entre nós a preservação de uma média permanentemente ativa
sempre renovada que garanta a marcha ao ponto para onde convergem ou de onde partem todas as nossas perspectivas
daí que a esse Deus não importa que os alemães matem vinte e cinco milhões de russos na Segunda Grande Guerra
ou que a peste negra devaste mais outro tanto de europeus no século XIV
porque
se isso não interrompe o serviço da Evolução
por que não?

Aos pregadores sempre interessou a imagem de um Deus manipulável
evidentemente por eles
para se autoproclamarem detentores da Palavra
razão pela qual atribuíram à Sabedoria Divina mandamentos da própria lavra recomendando-nos — por exemplo — que sigamos o exemplo das aves do céu
que não semeiam
nem segam
nem juntam em celeiros
sem atinar que os pássaros caçam
pescam
fazem ninhos
o que me leva ao fato de que foram atribuídos a Deus
também comandos que não podem ser obedecidos pelo ser humano
como o de amar a isto
àquilo
e àquilo outro
ou não haveria tragédias como as de Romeu e do mouro.

[Excerto 5]

Claro que não creio em Deus
mas claro — também — que já me flagrei — como todo mundo — perguntando-me — por exemplo — onde foi que dona ornitorrinco aprendeu a fazer aquela geringonça
que é o filho dela
e com isso não brinco.
Caramba: minha simples ereção me remete — sempre — ao seio do mistério como me remetem Quéops
Nazca
Stonehenge.
... ou qualquer cemitério.
Sei que — como Iago e ao contrário de Jeová — I am not what I am!
Tanto
que se houvesse realmente acontecido algum momento
na História
em que alguém tivesse encravado uma coroa de espinhos em Deus
e lhe tivesse metido umas porradas na cabeça
cuspido na cara dele
despejando-lhe uma carrada de desaforos

mereceria de mim o perdão
pois o que o homem sofre neste mundo
criado por tal personagem criado

por nós
... é de um sadismo que chega a ser... torpe.

[Excerto 6]

Porque eu quis leveza e beleza de balões
com peso de balas de canhões
usei cada palavra como o pintor usa o encanto quase pronto da cor.

Sem qualquer tema prévio em que pudesse utilizá-las

garimpei-as no que me estimulava com fotos
confiando que o inconsciente
partindo do nada
e como se de propósito fosse
fizesse como que fios de açúcar... pro algodão-doce.

Assim
dava com a imagem de uma grande moto com a metálica musculatura à mostra
e espremia o cérebro até dele extrair algo como "a grande moto com a metálica musculatura à mostra".
Da corrente ajoelhando-se nos elos no que se derramava numa chapa de aço consegui alguma coisa tipo "a corrente ajoelhando-se nos elos no que se derramava numa chapa de aço. "
Cada verso fértil geralmente me custava uma travessia no deserto
mas foi nesse afã que
ao fim de meses
depois de milhares de frases acumuladas
procurei vinculá-las entre si
e montei o texto
como Godfrey Reggio e Dziga Vertov
montaram "Koyaanisqatsi" e "O Homem
com a Câmera" até a overdose.

Fonte:
http://www.algumapoesia.com.br/

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