domingo, 27 de julho de 2008

Antonio Carlos Secchin (Poesia Completa, de Cecília Meireles: a edição do centenário)

Quando, em 2002, comecei a organizar a edição de poesia comemorativa do centenário de nascimento de Cecília Meireles, julgava que seria uma boa oportunidade para enfrentar certos problemas que há bastante tempo persistiam nas diversas reuniões de sua obra poética já a partir da primeira delas, de 1958, da José Aguilar, a única publicada em vida de Cecília, e provavelmente supervisionada pela própria escritora.

Reza a boa norma que a melhor lição textual é a da última publicação em vida do autor; por esse critério, bastaria reimprimir a obra de 1958, a ela acrescentando algum material inédito, postumamente localizado. Mas já neste primeiro passo nos defrontamos com várias dificuldades: Cecília excluiu da coletânea seus três primeiros livros (voltaremos ao assunto mais tarde), incluiu um (Giroflê Giroflá) escrito em prosa e, muito provavelmente, não fez a revisão do texto, que, embora em geral correto, em alguns casos introduz erros inexistentes nas edições princeps.

Esclareço, de início, que não tive acesso a originais manuscritos ou datiloescritos de Cecília; de acordo com depoimento de familiares, a escritora costumava bater a maquina seus poemas e não se preocupava em conservar o registro deles em arquivo pessoal. Assim, fui levado a valer-me unicamente de material impresso, a saber, as edições originais, suas reedições, e uma série de textos esparsos em periódicos. Por outro lado, em auxílio de minha tarefa, logo percebi que, diversamente do que ocorre com boa parte dos poetas, Cecília não modificava seus textos: uma vez publicados, ela já os considerava em versão definitiva. Por isso as discrepâncias textuais podem, sem grande risco, ser atribuídas a erros de impressão, alguns evidentes, como a presença de uma “quadra” de três versos, outros mais sutis, como a troca de um vocábulo por um substituto que também faz sentido. Mas, uma vez que várias alterações se deram somente nas edições post-mortem, apenas uma intervenção mediúnica poderia respaldá-las, e preferi permanecer na esfera terrena, não obstante Cecília definir-se como uma “pastora de nuvens”…

Retornemos à edição de 1958. Era composta de 12 livros de poesia, de Viagem (1939) ao Romance de Santa Cecília (1957), um livro de prosa (o citado Giroflê Giroflá) e de uns poucos inéditos, vários dos quais viriam a integrar, pouco depois, obras avulsas lançadas ainda em vida da autora. Abria o volume um alentado ensaio de Darcy Damasceno, que foi dos mais devotados estudiosos da poeta. Uma sucinta fortuna crítica, além de bibliografia ativa e passiva da autora, também integrava a edição. Apesar da colaboração de Cecília, patente, por exemplo, no fato de lhe haver sido atribuída a seleção de inéditos, a coletânea, como dissemos, registrava erros, que se foram tornando mais graves e numerosos nas edições subseqüentes, quando então, após a morte da escritora, no melhor dos casos as novas compilações apenas repetiriam os equívocos pregressos, e no pior, conforme acabou ocorrendo, elas aumentariam o rosário de equívocos.

Em 1967, vem a público a segunda edição da Obra poética, em formato menor, com a eliminação do texto em prosa e o acréscimo dos títulos que a autora publicara entre 1958 e o ano de seu falecimento, 1964. Em meio a esses títulos foi inserido um conjunto de dispersos e, na seção final, abrigaram-se 21 poemas inéditos. É de se indagar por que, na organização do volume, o bloco de dispersos se intrometeu entre as obras editadas autonomamente em livro.

A terceira edição, de 1972, repete a estrutura da anterior, suprimindo, todavia, a seção de inéditos, que fora sensivelmente ampliada em 1967.

O maior acréscimo de textos deu-se a partir de 1973, quando, pela Civilização Brasileira, Darcy Damasceno começa a editar em 9 volumes as Poesias completas de Cecília, num notável esforço de pesquisa, sem que, todavia, houvesse ganho análogo na qualidade textual ou no critério de organização. Os 5 primeiros volumes seguiram uma seqüência cronológica que se inicia em 1939, com Viagem, e finda em 1964, com a Crônica trovada da cidade de Sam Sebastiam do Rio de Janeiro. O número 6, porém, retrocede aos anos 20, misturando material nunca publicado (Morena, pena de amor) a 2 livros lançados, respectivamente, em 1923, Nunca mais, e 1925, Baladas para El-Rei, e nessa edição de 1973 pela primeira vez reeditados. Nos volumes 7 e (parcialmente) 8, desfila, sem informação de procedência, uma longa série de poemas não incluídos em livro. Tais textos se agrupam em tripartição cronológica algo arbitrária: I) bloco de 1942/1949; II) de 1950/1959; III) de 1960/1964. Ora, o único marco temporal explicitamente consignado por Cecília refere-se ao ano de 1939, tendo como baliza a publicação de Viagem: o período anterior seria, digamos, de textos “preparatórios” à sua maturidade artística. Ainda no volume 8, após o bloco 1960/1964, surge um livro em esboço, Sonhos, com poemas datados desde 1950, espraiando-se até 1963. O volume 9 congrega outros projetos que não receberam os retoques finais da poeta, a exemplo dos Poemas de viagem, que se abrem com texto de 1940. Portanto, assistimos nesta edição a um substancial crescimento do corpus poético de Cecília, mas não suficientemente valorizado pelos critérios (ou, et pour cause, pela ausência deles) no modo de ordená-lo. Igualmente a registrar a supressão do ensaio crítico e da informação bibliográfica que acompanhavam as coletâneas precedentes.

Em 1994, surge, sob responsabilidade de Walmir Ayala, a quarta edição da Aguilar, incorporando todo o material coligido por Damasceno. Walmir optou por uma divisão em duas partes: na primeira ficaram os livros publicados a partir de Viagem; na segunda entraram os textos enfeixados nos volumes finais da série de Darcy, ou seja, os poemas avulsos, os primeiros livros e os não concluídos, com o acréscimo de Cânticos, que, escrito nos anos 20, só veio a lume tardiamente, em 1982.

Por fim, em 1997, a Nova Fronteira lança, em 4 volumes, a Poesia completa de Cecília Meireles, valendo-se basicamente da lição textual de Damasceno, endossada por Ayala.

Passo, agora, a expor, de modo sintético, algumas das características da nova edição, a do centenário.

O texto foi minuciosamente revisto. Detectei nas compilações anteriores mais de 300 erros, desde os mais simples, como os ortográficos, até os menos óbvios, como a inversão de estrofes, além de certas “atualizações” que mascaravam a historicidade dos poemas; por exemplo: a utilização de maiúsculas no início de verso era a prática de Cecília nos anos 20, e não há registro dela nas reedições desses primeiros livros. A voz límpida da poeta vez por outra era turvada pela intervenção de revisores e tipógrafos distraídos.

No que tange ao aparato crítico, a nova edição vem enriquecida de três excelentes contribuições: o longo estudo introdutório de Miguel Sanches Neto, o resumo biográfico a cargo de Eliane Zagury e a seleta fortuna crítica comentada por Ana Maria Domingues de Oliveira. No denso e inédito ensaio de abertura, “Cecília Meireles e o tempo inteiriço”, Miguel analisa toda a produção poética da autora, demonstrando como lhe foi possível ser moderna sem necessariamente ser “modernista”. Eliane tece um quadro preciso e abrangente da vida de Cecília. Ana Maria, meticulosa e competente pesquisadora da bibliografia crítica ceciliana, fornece um precioso roteiro do que de melhor se escreveu sobre a poeta.

Resta abordar uma questão, talvez a mais polêmica: que tratamento dispensar aos livros iniciais, excluídos por Cecília da edição de 1958? E como lidar com as obras planejadas, mas que não chegaram à estampa durante a vida da autora? Vimos que, até aqui, esse material era enfeixado no segmento final dos volumes que passaram a abrigá-lo, desde 1973. Optamos por outra solução: na parte 1 da nova edição, comparecem todas as coletâneas – publicadas ou esboçadas – na seqüência tanto quanto possível rigorosa da cronologia de sua escrita, o que não corresponde necessariamente à cronologia de publicação: basta que se recorde o citado Cânticos, produzido na década de 20 e lançado mais de 50 anos depois...Assim, o leitor poderá acompanhar, com clareza, o início e o desdobramento do processo criador de Cecília, sem que sejam suprimidos ou aninhados numa espécie de apêndice-limbo os primeiros passos dessa longa caminhada através de 26 obras. Na parte 2, entrou apenas, ordenada temporalmente, a matéria dispersa, de natureza assistemática, não concebida pela autora como peça integrante de livro. Em suma: parte 1, Cecília em livros (editados ou projetados); parte 2, Cecília fora de livros; em ambos os casos, a poeta em sua historicidade de escrita.

Quanto a Espectros, sua obra de estréia em 1919, há mais de 80 anos dela não se tinha notícia. Publicada (provavelmente às custas da autora e em diminuta tiragem) após Cecília formar-se pela Escola Normal do Rio de Janeiro, trazia um prefácio de Alfredo Gomes, professor de português da instituição e à época prestigioso gramático. Fazendo jus ao nome, a obra tornou-se fantasmagórica: nunca reeditada ou sequer localizada, sobre ela correu a lenda de que, afinal, nem teria existido. Contra essa suposição depõe um breve artigo de João Ribeiro, bastante simpático ao livro, e publicado em O Imparcial, de 18 de novembro de 1919, em que vaticina um belo futuro para a jovem estreante. Mas o fato é que já em Nunca mais, de 1923, inexiste qualquer menção a Espectros, e em nenhum outro momento, ao que se saiba, Cecília voltou a referir-se a seu primeiro livro, diversamente do tratamento reservado às obras de 23 e 25, que, mesmo excluídas da coletânea de 1958, sempre figuraram como itens “autorizados” da bibliografia da autora. Nunca mais e Baladas para El-Rei revelam uma poeta de qualidade, mas ainda sem timbre individualizado, e bastante afeita à ortodoxia do simbolismo – uma artista, sem dúvida, aquém do salto qualitativo que se materializaria em Viagem (1939) , a ponto de a autora, em 1958, abrir com esse livro sua Obra poética. Mas, se a história “oficial” e “ideal” de Cecília começa em Viagem, o pesquisador e o leitor curioso hão também de indagar por sua “pré-história”. Desses primórdios, duas peças (Nunca mais e Baladas) já estavam disponíveis, com a vantagem adicional, na edição do centenário, de se estamparem com a reprodução das capas originais desenhadas por Fernando Correia Dias, primeiro marido da escritora. Talentoso e requisitado artista plástico de origem portuguesa, foi o responsável pelas ilustrações de vários livros da primeira fase de Cecília, e sua importante parceria com a esposa e com outros autores do período ainda não foi suficientemente enfatizada pelos historiadores.

Ainda faltava, todavia, o elo perdido, o texto primordial, verdadeiro espectro a povoar a insônia dos bibliófilos e dos arqueólogos literários. Finalmente, após numerosas buscas nos sebos e em bibliotecas públicas e particulares, tanto no Brasil quanto em Portugal, consegui, graças à generosa colaboração de um bibliófilo, localizar um exemplar do livro, que a nova edição restituirá à memória da poesia brasileira, décadas após seu – supostamente irreversível - desaparecimento. Com Espectros, será revelada uma nova e insuspeitada face de Cecília, de acentuada fatura parnasiana. A obra é formada por um conjunto de 17 sonetos rimados, em decassílabos ou alexandrinos, e que, em sua maioria, evocam celebridades da história universal e da religião católica. Vejam, a seguir, como a estreante Cecília elaborou sua versão da figura mítica de Joana d’Arc:

Firme na sela do ginete arfante,
Da coorte na vanguarda, ei-la às hostis
Trincheiras que galopa, delirante,
Fronte serena e coração feliz.

Sob os anéis metálicos do guante,
Os dedos adivinham-se viris,
Que sustêm o estandarte palpitante,
Onde esplende a dourada flor-de-lis.

Rica de sonhos, crença e mocidade,
A donzela de Orléans, no seu tresvário,
De mística, na indômita carreira

Sorri. Nenhum tremor a alma lhe invade!
E, entanto, o olhar audaz e visionário
Já tem clarões sinistros de fogueira!...

Eis um poema bem construído, em nada inferior à média do que produziam os nossos neoparnasianos no ambiente cultural pré-1922. Os demais sonetos de Espectros mantêm esse nível. Porém, a satisfação com a descoberta do livro fez-se acompanhar de uma dúvida: seria lícito reeditar uma obra que a autora, segundo tudo leva a crer, preferiu omitir de seu trajeto? A solução, quem sabe, poderia ser sua inclusão em apêndice, mas tanto a editora quanto os descendentes de Cecília foram favoráveis a que Espectros, ao contrário, abrisse a edição do centenário, não apenas pela importância da redescoberta de um livro dado como perdido de um de nossos maiores poetas, mas para que se mantivesse o critério de ordenação cronológica do material. Além disso, não se tratava de versos refugados em fundo de gaveta, mas de uma coletânea efetivamente publicada – e que em algum momento, portanto, correspondeu à “verdade literária” de Cecília, mesmo que essa verdade tenha mudado, e para melhor. Assim, a opção foi, de um lado, não sonegar a obra ao conhecimento público, e, de outro, enfatizar que Espectros deve ser lido em seu devido contexto e com as ressalvas aqui expostas – obra de juventude, sob vários aspectos ante(ou anti)ceciliana, mas de extraordinário valor documental.

Essas foram as linhas gerais do trabalho. Agora, é esperar que o esforço despendido tenha sido capaz de restituir do modo menos imperfeito possível a grandeza poética de Cecília Meireles.
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Fonte:
Revista Agulha. Revista de Cultura # 37 - Fortaleza, São Paulo - janeiro de 2004. Disponível em http://www.secrel.com.br/

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