Julien Sorel é o anti-herói romântico por excelência. Carente de recursos, sua ambição o leva a encarar duas carreiras como possibilidade de alcançar o sucesso - a eclesiástica e a das armas. Sua trajetória constrói-se entre o vermelho e o negro. Envolve-se com duas mulheres - Madame Renal e Mathilde de la Mole.
Filho de um humilde carpinteiro,Julien Sorel sonha com uma vida intensa e gloriosa. Sua desmedida ambição o leva a conviver com a burguesia provinciana e com a aristocracia parisiense. Ainda assim Julien continua a ser um pobre no mundo dos ricos. A partir desses elementos, Stendhal criou um magistral romance psicológico, considerado o mais significativo da literatura francesa do século XIX.
Alguns comentários iniciais sobre o 'O Vermelho e o Negro'.
a] As intenções de Stendhal.
As sucessivas revoluções [Revolução Francesa, Consulado, Império Napoleônico e a Restauração] provocaram, ], num curto espaço de tempo, profundas transformações nos costumes e hábitos do povo francês. A imagem que a literatura produzia da França, contudo, estava defasada, segundo Stendhal.
'A França moral é ignorada no estrangeiro, eis por que, antes de tratar do romance do senhor de S[tendhal], foi preciso declarar que nada se assemelha menos à França alegre, divertida, um pouco libertina, que de 1715 a 1789 constituiu o modelo da Europa, do que a França grave, moral, triste , que nos legaram os jesuítas, as congregações e o governos dos Bourbons de 1814 a 1830'[1958:318]
Para Nobert Elias 'a especial sensibilidade dos escritores permitiu-lhes, como uma espécie de vanguarda da sociedade, perceber e expressar mudanças que estavam ocorrendo no campo mais amplo das sociedades em que viviam' [1994:87]. O que Stendhal se propôs foi traçar uma imagem fiel dos costumes das cidades e da província francesa e da relação entre indivíduo e sociedade. Para Stendhal sua caneta funcionava como um espelho: deveria refletir com precisão sua época. Buscava a objetividade.
'Senhores, um romance é um espelho que é levado por uma grande estrada. Umas vezes reflete aos vossos olhos o azul dos céus, e outras a lama da estrada. E ao homem que carrega o espelho nas costas vós acusareis de imoral! O espelho reflete a lama e vós acusais o espelho! Acusai antes a estrada em que está o lodaçal, e mais ainda o inspetor das estradas que deixa a água estagnar-se e formar-se o charco. '[: 345/46]
Para alcançar este objetivo, Stendhal colhia no mundo real o material para elaboração de suas obras. A própria história de Julien Sorel, é baseada em fatos verídicos, somando traços de sua personalidade e fatos que aconteceram na sua vida particular para constituição da personalidade de Julien Sorel. Segundo Cândido, 'Stendhal era incapaz de inventar um sistema fictício. O culto à experiência, ao fato constatado, assim como o amor à concatenação, levaram-no sempre a tomar como ponto de partida algo concreto e quase sempre meio elaborado. Para alguém tão convencido da realidade da experiência, a sensação e a impressão da leitura eram células germinais da criação fictícia'[1978:146].
A atenção maior era dada, não aos fatos em si, daí não ser um 'plagiador dos fatos reais', mas a como as pessoas os vivenciavam, interagiam. Ao mesmo tempo que Stendhal descreve encontros entre as pessoas, nos deixa penetrar nos seus pensamentos, através do fluxo de suas consciências, permitindo-nos escutar como os personagens racionalizavam as situações concretas, medindo as possibilidades de avanços e/ou recuos. As ações dos personagens são o resultado da ' interiorização da exteriorização e da exteriorização da interiorização' [Bourdieu, 1983:47]. Mais precisamente no caso de Sorel: 'os acontecimentos constituem Julien Sorel tanto quanto Julien os provoca ou com eles se confronta' [Perrone-Moisés, s/r: 22]
Para entender a dinâmica dos personagens que se encontram em espaços sociais estruturados, movidos por interesses particulares, mas que tinham que agir em conformidade com as normas desse espaço, Stendhal adequa um estilo de escrever, caracterizado pela economia de descrições. Nada sabemos sobre a forma dos vestidos que a Sra. Renal e a Srta. Mathilde usavam, ou sobre os móveis das mansões do bairro nobre Saint German. Ficaria a critério do leitor imaginá-los. Sua preocupação principal era contar como estava a sociedade francesa; o processo de interiorização por parte dos indivíduos dessa situação e, como estes agiam diante de situações concretas, negociando posições dentro das estruturas.
Para implementar seu projeto [descrever a França de sua época ], Stendhal nos fez entrar em contato com a vida na província [principalmente o jogo de poder político], com o mundo religioso, com a vida da alta sociedade parisiense. Que pode ser considerado como três campos: o campo político, o religioso e o campo da aristocracia. Outro tema que aparece constantemente ao longo do livro: o amor.
Esse vasto olhar sobre a vida social francesa, uma ambição totalizadora do conhecimento do seu mundo, nos chega através das ações do herói Julien Sorel.
b] Julien Sorel e sua época.
'Uma efêmera nasce às nove horas da manhã nos longos dias de verão, para morrer às cinco horas da tarde; como haveria ela de compreender a palavra noite?'
Há algum tempo escutei essas frases ditas por um personagem do filme 'Camilla'. Curiosa por saber o contexto daquelas frases que ficaram na minha cabeça como eco, encontrei-as no 'O Vermelho e O Negro' de Stendhal. Contextualizando-as, elas assumiam para mim uma nova dimensão: estavam inseridas no drama do jovem Julien Sorel, condenado a ser guilhotinado por um quase-crime que cometera.
Através de sua história, entramos em contato com o mundo social francês, tal qual representada por Stendhal. A intenção de Stendhal, nessa obra, era construir um quadro que demonstrasse a sociedade francesa da Restauração, daí ele não priorizar um campo determinado. Este quadro é construído através das andanças e aventuras de Julien Sorel. Assim, não temos uma situação onde o ator, portador de um habitus e de um capital, entra em determinado campo, ali se fixa, disputando o objeto em torno do qual o campo se mantém, investindo energia e, pela combinação de suas ações e de situações concretas, garantindo a manutenção do campo [reprodução] ao mesmo tempo que sua posição no seu interior muda [ou no sentido de ocupar um lugar de dominante - ortodoxa - ou permanecer como dominado - heterodoxa].
Embora encontremos essa situação constantemente ao longo do livro, não é especificamente o caso de Julien. A vida [fatos concretos] de Julien é antes uma 'câmara giratória' que circula em vários campos : um olhar vasto que aproxima e distancia o foco. Sua consciência é uma 'metralhadora giratória'. Por onde passou, encontrou a marca registrada do seu século: hipocrisia, medo, onde a palavra só servia para esconder o pensamento. Século da intriga, da suspeita.
Entender a personalidade de Julien, materializada nas suas ações, descolado de um contexto é impossível. Suas ações e a interpretação que ele tem do mundo são fruto da 'interiorização do exterior e exteriorização do interior' [Bourdieu , 1983:47]. A narrativa do romance é construída num sistema de relações, em que o tempo e o espaço onde ela se desenvolve tem um papel fundamental para entender o porquê de Julien agir de determinada forma.
Julien fazia parte de uma sociedade dividida em classes sociais. Cada uma com concepções de mundo diferentes, disputadas violentamente. Em cerca de trinta e três anos a França passou pela Revolução Burguesa, Consulado, o Império Napoleônico e a Restauração. Quatro anos depois que entramos em contato com a história de Julien, 1826, então com dezenove anos, eclode a Revolução de Julho.
As camadas do solo que Julien pisava estavam num processo de ajustamento, de movimento constante, gerando um sensação de insegurança e medo permanente. Crenças democráticas radicais coexistindo com o pensamento liberal, nostalgia pelo Ancien Régime. A idéia permanente era de dualidade, transição. Tal situação interfere nas relações entre os indivíduos, modificando-as: 'as pessoas só podem conviver harmoniosamente como sociedade quando suas necessidades e s socialmente formadas, na condição de indivíduos, conseguem chegar a um alto nível de realização; e o alto nível de realização individual só pode ser atingido quando a estrutura social formada e mantida pelas ações dos próprios indivíduos é construída de maneira a não levar constantemente as tensões destrutivas aos grupos e aos indivíduos' [ Elias, 1994: 122]. Com Julien Sorel há um desajuste entre seu habitus social e as situações objetivamente confrontadas, assim como era elevado o grau de desvio do seu habitus social e o habitus individual. Daí aparecer a noção de desajuste. Porém, conforme veremos mais à frente, Julien sempre tentava agir de acordo as normas e regras dos campos sociais por onde passava, sempre à custa de um enorme esforço de interiorizar as estruturas.
Durkheim [1992] foi um dos sociólogos mais preocupados com o fenômeno do individualismo nas sociedades modernas , apontando a alta taxa de suicídio como uma das patologias causadas por esse processo, principalmente aqueles do tipo anômico. A morte de Julien pode assim ser interpretada: ausência de valores morais sólidos compartilhados, fosse um grupo ou classe, que conferisse sentido para suas ações, para sua vida. Embora eu não esteja inteiramente de acordo com a forma objetivista de abordar o fenômeno do suicídio, por Durkheim, ela nos ajuda a compreender o porquê, no caso de Julien, a morte não o amedrontava; ao contrário, a idéia do suicídio lhe ocorria como uma imagem cheia de encantos, um delicioso descanso: 'um copo de água gelada oferecida ao miserável que, no deserto, morre de sede e de calor.' [ :346]
A possibilidade de coesão social na França de Julien estava restrita aos campos que conseguiam, através dos seus membros, reforçar a crença do campo, reproduzindo-o. Porém, quando tentamos perceber o nível de integração ou de comunicação entre os diversos campos, o que vemos, via Julien, é um processo de desintegração, de esgarçamento do tecido social. É neste quadro que Julien se movimenta.
3. 'O Vermelho e o Negro'
Primeiro Ato: 'Um jovem preceptor '
Julien Sorel, filho caçula de uma família camponesa , odiava sua origem e o futuro que lhe aguardava: trabalhar como serrador de tábuas. Não tinha músculos, nem disposição para este tipo de trabalho. Seus dois irmãos e seu pai o consideravam um preguiçoso, odiavam, acima de tudo, a principal mania do jovem filho: a leitura.
Sua ambição era fazer carreira militar. Tinha a mente povoada pelas campanhas vitoriosas e os grandes feitos do seu maior ídolo: Napoleão Bonaparte. Esta época , porém , fazia parte da história da França. Qual a alternativa então? Qual o campo que possibilitaria a um jovem camponês fazer fortuna?
'Quando Bonaparte deu que falar de si, a França tinha medo de ser invadida; o mérito militar era necessário e estava na moda. Hoje, a gente vê padres de quarenta anos com l00.000 francos de vencimentos, três vezes mais do que percebiam os famosos generais de divisão Napoleão. E ainda têm quem se dobre ante eles... Preciso ser padre.'[ :33]
O hábito preto: o uniforme do seu século. A opção de Sorel nos remete à teoria da prática de Bourdieu; as ações sociais são materializadas pelos agentes sociais, mas as chances de efetivá-las estão estruturas no interior da sociedade. Entre a vocação e a sua realização há condições [ou a falta delas] que escapam ao controle do sujeito. O agir dos agentes sociais encontra-se ajustado às chances objetivas. Foi essa mediação que Sorel fez. A opção em fazer-se padre não era nenhum grande lance de originalidade ou maquiavelismo. No seminário de Besançon, onde Julien passou algum tempo, os camponeses hegemonizavam. Há um nível de previsibilidade nas opções práticas que os sujeitos fazem.
Logo o prefeito da provinciana Verrières, Sr. Rênal, tem notícias de um jovem estudioso das Escrituras Sagradas, portador de uma memória invejável, capaz de recitá-la toda de cor em latim. Muito mais para aumentar seu prestígio diante do Sr. Valenod, diretor do asilo de mendicidade de Verrières, o prefeito contrata Sorel como preceptor dos seus filhos.
Entre o Sr. Rênal e o Sr. Valenod, existia uma relação de cordialidade, mas eram inimigos, disputavam posições dentro do campo político. O prefeito conseguiu ocupar melhores posições. Seus trunfos: um esposa milionária, defensora extremada da Restauração. Como num jogo, a vitória é feita de lances, vitórias parciais: quem tem os melhores cavalos, quem sabe receber melhor, quem oferece os melhores vinhos, os cristais mais raros, as melhores relações com a Côrte parisiense. Quem tem condições de ter um preceptor para seus filhos. Para estes senhores, Julien representa não mais que um símbolo, uma cartada a favor do Sr. Rênal que contribuiria para sua imagem pública.
O Sr. Valenod fora durante muito tempo protegido do senhor Rênal, mas começa a sentir-se ameaçado por ele. Sente que ele passa a ocupar gradativamente posições de destaque na vida política e social de sua cidade. O Sr. de Valenod é jesuíta, ousado, habilidoso, ambicioso, não se sentia humilhado diante de nada, prestava-se a todo tipo de papel. No decorrer das disputas entre ambos, o Sr. de Valenod torna-se sucessivamente barão e membro da câmara dos deputados.
O jovem preceptor está fora deste campo. Não disputa o objeto em jogo: o poder político. Mas queria tirar proveito da posição que ocupava: primeiro era preciso saber aonde estava pisando, fazer um mapa mental das posições dos freqüentadores da casa do Sr. Rênal. Esse processo de investigação silenciosa permitiu-lhe chegar a algumas conclusões: jamais revelar sua paixão por Napoleão, nem sua admiração pelas idéias Iluministas, principalmente por Rousseau; estava cercado de inimigos, tinha horror e ódio à alta sociedade em que, a bem dizer, era recebido com reservas. Sabia que por mais que tentasse se distanciar de sua classe de origem, os outros sempre o veriam como um portador do habitus camponês, identificado com o mau gosto, a rudeza, 'um saco de batatas' [ Marx].
Não foi difícil para ele perceber que o Sr. Valenod cobiçava-lhe e fazia todo o possível para levá-lo para sua casa. O Sr. Rênal também sabia. O medo de perder o preceptor fez o Sr. Rênal aumentar-lhe o salário. E sempre que Julien queria um tempo para se isolar ou para visitar o amigo Fouqué, burguês que tinha no trabalho o único valor moral, era-lhe concedida licença. Todas as vezes que encontrava com este seu amigo, ele lhe oferecia sociedade no seu negócio de madeiras. Poderia rapidamente ficar rico. Julien de certa forma 'arquivou' a proposta : caso não conseguisse fazer fortuna dentro da Igreja, a mesma poderia ser uma alternativa.
Cada ação de Sorel, ao longo do livro , é antecedida por um processo de racionalização que busca, em primeiro lugar, fazer o reconhecimento do meio social no qual se encontra [as regras, normas de conduta, qual posição que cada indivíduo ocupa] para, a partir daí, representar seu papel. Contudo, fazer esse reconhecimento e se movimentar com facilidade num espaço social onde as pessoas agiam de acordo com um habitus diferente do seu, levava um certo tempo. Tinha pavor de passar por ridículo, de não se comportar de acordo. Mesmo tendo uma memória invejável, tinha o cuidado de anotar em pequenos pedaços de papel o nome dos freqüentadores da casa, sua posição social e outras observações que achasse conveniente para não se perder, afinal ' ele vivia entre camponeses; nunca tivera grandes modelos. Mais tarde, logo que lhe foi dado aproximar-se de gente distinta, tornou-se admirável nos gestos como nas palavras' [ :54/55]. Com a ajuda dessa técnica e de uma conduta pautada num profundo arrivismo, conseguiu atualizar seu habitus a situações concretas.
Depois de algum tempo como preceptor, Julien tem que abandonar a casa dos Rênal: tornara-se amante da Sra. Rênal e fora denunciado por uma carta anônima, depois reconhecida como tendo sido escrita pelo Sr. Valenod.
Inicialmente o sentimento que levou Julien a envolver-se com esta senhora não foi a paixão ou algo parecido. Colocara-se como um desafio tê-la, fazê-la apaixonar-se. Estabelecia s. A cada etapa vencida [um toque de mão, um olhar mais demorado, visitas noturnas a seu quarto], ele suspirava feliz: ' Sim, eu ganhei uma batalha... Isso é puro Napoleão'[ :75]. Mas , eis que o imprevisto nos planos do nosso estrategista do amor acontece: ele se apaixona por aquela senhora tão suave e boa 'mas que fora criada no campo inimigo'. [ : 102]
Porém, seu tempo de amante acabara. Depois da carta anônima, não resta outra saída: Julien vai para o seminário em Besançon. Ali conhecerá o campo religioso.
Segundo Ato: No Seminário
No Seminário Julien assumiu um postura arrogante. Enxergava aqueles seminaristas como seres grosseiros; camponeses que preferiam ganhar o pão recitando algumas frases decoradas do latim à cultivar a terra. Uma situação que, na verdade , não era tão diferente da sua. Mas seu gosto pela leitura e a capacidade de julgar por si mesmo o faziam diferente. Contrastando sua capacidade com a dos outros, deu-se conta de sua superioridade . Através dessa observação, que fizera nos primeiros dias, sonhou com sucessos imediatos e viu-se ocupando posições de destaque. Nosso jovem herói, tão dado a pensar a vida como uma guerra, errou. Esqueceu de fazer o reconhecimento do campo inimigo [conhecer as regras do jogo] e a partir daí definir suas táticas. Esqueceu de que, para saber agir como padre, para ser padre, deveria dominar e interiorizar o funcionamento do campo religioso. Havia um conjunto de pressupostos consolidados que davam sustentação a esse campo, independente da vontade de Julien.
O esforço que Julien fazia para ser o primeiro nos diversos cursos de dogma e de história eclesiástica era visto como um enorme pecado. O inimigo número um da igreja naquele momento eram os livros. O Iluminismo e a Revolução Burguesa deixaram uma lição: a única coisa importante é a submissão do coração. Vencer nos estudos, mesmo sacros, é suspeito. O pensamento, a busca do conhecimento, trás em si o poder de libertação, de subversão. Todo raciocínio ofende.
A atitude de Julien, olhando sempre direto nos olhos, com ares de quem está sempre pensando, manteve os companheiros à distância. Ninguém queria relacionar-se com o jovem 'Martinho Lutero', como ficou conhecido. Julien era como uma nota musical entoada fora do tom. Desafinava . Percebeu, depois de algum tempo, que a diferença não se tolerava e que nada conseguiria com aquele seu jeito de agir.
Para adaptar-se àquele novo espaço social, Julien teve que ajustar suas ações às normas de conduta daquele campo: a maneira de andar, de mover os braços, os olhos, o tom da voz, o conteúdo das conversas. Tudo deveria ser feito com resignação, numa economia constante de energia. Julien percebeu, então, que 'no seminário, é o modo de se comer um ovo que revela os progressos feitos na vida devota'[ :218].
Além desse esforço de comportar-se de forma mais condizente com os padrões de um jovem padrezinho, Julien teve o cuidado de observar as disputas de posição entre aqueles que representavam a ortodoxia e, a partir daí, definir qual o melhor partido a tomar. Entre o diretor do Seminário, o abade Pirard , jansenista, e seu inimigo, o senhor de Frilair, Vigário Geral de Besançon, jesuíta. Julien alia-se ao primeiro, tomando-o como confessor e amigo .
Pela postura sempre tão calculista e maquiavélica de Julien , esperávamos que se aliasse ao senhor de Frilair, representado internamente no Seminário pelo Padre Castanède. Talvez por uma leitura errada das posições naquele campo Julien tenha se aproximado do Abade Pirard. Isso num primeiro momento. Depois a atenção e carinho que o Abade tinha por ele o conquistaram definitivamente.
O abade Pirard foi diretor do seminário durante quinze anos, boa parte dos quais envolvido em brigas com o senhor de Frilair. As disputas, que aconteciam ao nível da ortodoxia, refletiam nos seguidores de uma [jansenismo] ou outra posição [jesuítas]. Julien pôde sentir isso na pele.
O abade Pirard nomeou Julien, seu protegido, o explicador do Novo e Antigo Testamentos. Na prática, isso lhe conferia uma posição mais elevada na hierarquia em relação aos outros seminaristas [representava que seu capital tinha aumentado]: podia comer sozinho, tinha a chave do jardim podendo passear quando quisesse. Pouco a pouco tornou-se de mau gosto chamá-lo de 'Martinho Lutero'.
Chegou a época dos exames. Os examinadores eram nomeados pelo Vigário Geral de Frilair. Um examinador pôs-se a falar de Horácio, Virgílio e outro autores profanos. Julien aprendera de cor um grande número de passagens daqueles autores. Arrastado pelo sucesso, esqueceu em que lugar se achava e na companhia de quem. Depois de vários minutos recitando e parafraseando com entusiasmo odes de Horário, percebeu que caíra numa cilada: o examinador fechou a cara e reprovou-lhe o tempo perdido com estudos e idéias inúteis. Foi com prazer que o Vigário Geral colocou o número 198 ao lado do nome de Julien: o protegido do abade Pirard não conseguira uma colocação melhor. Através de Julien, o Vigário atingira seu inimigo.
Mas , por que Julien, tão ambicioso, não se aliara ao Vigário? A forma como as ações de Julien são construídas nos indica a complexidade de sua personalidade. Julien não é vilão, nem mocinho. Nada se distancia mais dele do que o tipo ideal desses dois extremos, imortalizado pelos personagens das novelas medievais. O carinho e a preocupação que o velho abade Pirard tinha por ele, fez Julien considerá-lo como um pai.
Inicialmente construímos a imagem de um jovem que ocultava sob um rosto singelo, a resolução 'inquebrantável de expor-se a mil mortes, contanto que chegasse a fazer fortuna '[ :33] Porém, muitas vezes diante de situações onde esperamos uma determinada conduta , ele nos surpreende e se surpreende. É no processo de conhecimento do mundo que ele realiza o auto-conhecimento. Mas, quem pode dizer que se conhece ou tem a capacidade de prever todas suas ações em todos momentos da vida social?
Todos nós somos portadores de determinado sistema de disposições duráveis, que nos capacita a compartilhar determinadas realidades sociais. Se entre o habitus e as situações concretas há um nível de previsibilidade das ações [conforme visto anteriormente], também há o da imprevisibilidade. Isto aparece em Julien quando se envolve com alguém, sente carinho. Neste momentos seu racionalismo, que procura numa ardente meditação interior suas razões de agir, volatiza-se. Não consegue pensar antes de agir e nem de pensar como o outro está pensando para lhe surpreender com um xeque-mate. Isso é mais visível quando está apaixonado. Aí se estabelece um duelo interior infernal entre a razão e o coração.
***
O inevitável na história do abade Pirard acontece: é obrigado a pedir demissão do seu cargo, devido ao crescente número de intrigas e da certeza que seria demitido. O abade Pirard tinha como amigo e aliado em Paris o Marquês de La Mole. Preocupado com os rumos que a vida do jovem Sorel poderia tomar naquele seminário com a sua ausência , o Abade convence o Marquês a torná-lo como seu secretário particular.
Terceiro Ato: Nos salões de Saint -Germain
Julien não se continha de tamanha felicidade. Finalmente deixaria aquele lugar sombrio, sem vida. Depois daquela temporada interno no seminário, entendeu que a cor do hábito não poderia ser outra. Iria para Paris. Quem poderia imaginar, um jovem camponês nos salões da alta sociedade parisiense ? Nem ele próprio.
O provinciano Sorel tudo admirava naquela cidade cheia de brilho, de pessoas, cavalos, damas perfumadas, prédios. Seus olhos pareciam querer saltar do rosto para conseguir absorver tudo quanto lhe rodeava. Quando entrou no Palácio dos La Mole, para assumir suas tarefas, pensou: 'Então é assim que eles vivem'. A alta sociedade provinciana, com a qual tivera contato, era composta de pessoas que ocupavam essa posição pelo adquirido e não pelo herdado, embora de um adquirido que ainda procurava se disfarçar sob a aparência deste. Era precisamente o caso do Sr. Rênal que se envergonhava de ter sido industrial antes de 1815.
Na alta sociedade parisiense o nome e o nascimento eram o principal passaporte para torna-se um freqüentador dos salões e ser reconhecido como par. Eram barões, duques, condes, marqueses que sabiam localizar com precisão o lugar que ocupavam na árvore genealógica dos Retz, Tolly, Croisenois, Caylus. A tradição, o passado dava o sentido do presente. É sua posição presente e passada na estrutura social que esses indivíduos transportam com eles todo tempo e lugar, sob a forma de um habitus assentado num conjunto de símbolos. O traje, o cetro, o manto, a coroa real representavam o máximo de capital: eram símbolos do capital social.
A posição que cada indivíduo ocupava dentro desse campo dependia do seu capital, objetivado em títulos, cruzes e outros símbolos. Havia disputas para conseguir títulos, que os colocariam numa posição mais elevada na hierarquia aristocrática. O objeto em torno do qual estas pessoas giravam era um 'sistema simbólico' [Bourdieu], que funcionava como instrumentos de conhecimento e de comunicação, exercendo um poder estruturante na medida que são estruturados, funcionando assim , como instrumentos de integração social.
Era outro mundo que Julien entrava em contato. Um mundo onde 'a história dos antepassados eleva-os acima dos sentimentos vulgares, e eles não têm de pensar continuamente na própria subsistência! Que miséria! Sou indigno de raciocinar sobre esses grandes assuntos. Minha vida não passa duma seqüência de hipocrisias, porque eu não tenho 1000 francos de renda para o pão '[ :293]. Ali ninguém se preocupava em trabalhar, encarava este como o pior dos males.
Durante os dias, Julien ocupava-se com suas funções de secretário. À noite, jantava com os donos do Palácio e com seus convidados. A presença de um plebeu inicialmente incomodou bastante, a ponto da Sra. de La Mole propor ao marido mandá-lo desempenhar uma missão qualquer nos dias em que tivessem certos personagens à mesa.
O medo de passar ridículo e a intenção de melhor orientar-se, fez Julien proceder da mesma forma que na casa dos Rênal: escreveu os nomes e uma frase sobre o caráter das pessoas que entravam no salão. A precaução de Julien lhe ajudou muito pouco. Todos caçoam de sua falta de jeito em se portar. Comportava-se como um subalterno inoportuno a quem ninguém se dava o trabalho de esconder o que achasse a seu respeito.
Passado algum tempo pôde perceber com mais clareza o código de conduta dos salões. O sentimento de admiração inicial cedia lugar ao menosprezo pelo mundo da alta sociedade parisiense. Participar todas as noites daqueles encontros tornara-se para ele uma suplício. Nos salões podiam comentar tudo livremente, menos fazer piadas 'a respeito de Deus, nem dos padres, nem do rei, nem das pessoas de posição, nem dos artistas protegidos pela corte, nem de tudo o que está estabelecido; contanto que não falassem bem de Béranger, nem dos jornais da oposição, nem de Voltaire, nem de Rousseau, nem de todos os que se permitiam certa linguagem franca; contanto, sobretudo, que nunca falassem em política, podiam comentar tudo livremente. ' [ :246]
Não havia espaço para qualquer idéia viva. O código dos salões era implacável. Não se admitia qualquer nível de imprevisibilidade nos comportamentos ou opiniões, fosse dos jovens ou velhos aristocratas. As maneiras encantadoras, tão alegres na aparência, careciam de idéias, de originalidade. Julien só enxergava cópias. Viviam à sombra de uma revolução. Buscavam voltar-se para dentro. Nada poderia transpor aquela parede invisível entre o mundo lá fora, em ebulição, e o dos salões. Podia-se sentir, contudo, que pairava o medo no ar, medo de outra revolução e da volta da aristocracia à guilhotina.
Julien sentia-se asfixiado. A única coisa que diminuía seu tédio eram as longas conversas que tinha com a Srta. Mathilde de La Mole. Eles tinham alguns pontos em comum: prazer nas leituras sérias e proibidas [tipo Voltaire], faziam a mesma interpretação do século em que viviam. Porém, enquanto Julien tinha como modelo Napoleão e Danton, Mathilde ia buscar em épocas muito mais longínquas seus modelos: na Côrte de Catarina de Médicis, quando os homens lutavam por uma causa, eram capazes de expor-se ao perigo. Eram de homens como seu antepassado, La Mole, que deu a vida pelo amor de Margarida, que carecia sua classe. Mathilde orgulhava-se profundamente do seu nome.
O ódio que ambos nutriam pelo seu século rendeu longas conversas e uma paixão que mudou o futuro de Julien. A jovem aristocrata sentiu-se atraída por Sorel por tê-lo na conta de um homem inteligente, um novo Danton. Embora fosse aristocrata, odiando tudo que lembrasse 1792, admirava as ações dos indivíduos ousados.
A história de amor de Mathilde e Julien é marcada por avanços e recuos: Mathilde, depois que consegue ter Julien, arrepende-se, sente-se envergonhada. Como se permitira se apaixonar por um criado da casa, um camponês?
Desprezado por Mathilde, Julien volta-se para dentro, tal qual casulo. Nunca sua situação de classe lhe pesara tanto. O ódio que nutria pela aristocracia foi domesticado. Sentia vergonha de sua origem e de não poder ter sua amada.
O processo para reconquistá-la assemelha-se a uma enorme batalha. Julien joga, provoca a orgulhosa Mathilde, despreza-a. Recuperou a razão . Pensava'...não pense Srta. Mathilde que eu esqueço meu lugar. Farei com que compreenda e sinta que é pelo filho de um carpinteiro que a senhora atraiçoa um descendente do famoso Guy de Croisenois'[ : 321].
Julien venceu. Teve sua amada de volta aos seus braços. Pouco depois, ela engravida. O Sr. La Mole quase enlouquece: 'Este século está destinado a confundir tudo, e nós marchamos para o caos! ' [ : 427]. A filha de um aristocrata grávida de um plebeu. A bela Mathilde com casamento marcado com o nobre Croisenois. Paris toda zombaria da Casa dos La Mole! Nada que o pai argumentava, a fazia reconsiderar: ia casar-se com Julien e dá o nome Sorel ao seu filho. Agora era o amor paixão que falava mais alto e não o cerebral. O amor paixão que nasce como uma força interior, representando a vitória da intimidade, do 'eu'.
O Sr. de La Mole consegue uma patente de Tenente de Hussardos para Julien, forja uma condição de nascimento nobre. Passaria a chamar-se Julien Sorel de La Vernay. Tudo que Julien sempre sonhara estava realizando: tornara-se um militar, conseguira ter seu amor correspondido, seria pai. Parecia que sua guerra com a sociedade findara.
Mas, então por que Julien não agiu de forma mais fria e racional, quando leu a carta da Sra. de Rênal, que o descrevia como egoísta, um homem que só pensava em dinheiro ? Por que ele correu até Verrières e atentou contra a vida dela , quase matando-a? Essa atitude reforça a idéia, a complexidade das ações e reações de Julien, acima colocadas.
Julien é preso. Durante o tempo que durou o processo, Mathilde dedica-se totalmente ao seu amado. Mas este vê ressurgir o amor pela Sra. Rênal.
As longas noites e dias na prisão são preenchidos por pensamentos profundos, filosóficos. No seu julgamento estava cheio desses pensamentos e ousou quebrar a regra de ouro do seu século; usou as palavras para expressar qual sua posição diante da sociedade: ' Senhores, eu não tenho a honra de pertencer à vossa classe; vós vedes em mim um camponês que se revoltou contra a baixeza de sua condição. . . Sou culpado. . . mereço a morte, mas mesmo que eu fosse menos culpado, vejo homens que, sem contemplação para o que a minha juventude possa merecer de piedade, hão de querer punir em mim e desencorajar para sempre os jovens que, oriundos, de uma classe inferior e de qualquer forma oprimidos pela pobreza, têm a felicidade de conseguir uma boa educação e a audácia de imiscuir-se naquilo que o orgulho da gente rica chama 'sociedade'. '[: 487]
Falando assim, ele decretou sua própria sentença. O Sr. de Valenod, presidente dos jurados, a lera: guilhotina.
Pouco antes de subir ao cadafalso, pensava; ' Uma efêmera nasce às nove horas de um lindo dia verão para morrer às cinco horas da tarde; como haveria ela de compreender a palavra noite ?'
Quando a lâmina afiada separou o corpo da cabeça de Julien, Mathilde não ficou desesperada. Agora ela via que estava certa : Julien era audacioso. Sentia-se a própria Margarida de Navarra. Pegou a cabeça de Julien , colocou-a à sua frente e beijou-lhe a fronte. E ela mesma a enterrou, com muita pompa.
Fontes:
http://www.algosobre.com.br/
http://www.leonardodavinci.com.br/ (imagem)
Filho de um humilde carpinteiro,Julien Sorel sonha com uma vida intensa e gloriosa. Sua desmedida ambição o leva a conviver com a burguesia provinciana e com a aristocracia parisiense. Ainda assim Julien continua a ser um pobre no mundo dos ricos. A partir desses elementos, Stendhal criou um magistral romance psicológico, considerado o mais significativo da literatura francesa do século XIX.
Alguns comentários iniciais sobre o 'O Vermelho e o Negro'.
a] As intenções de Stendhal.
As sucessivas revoluções [Revolução Francesa, Consulado, Império Napoleônico e a Restauração] provocaram, ], num curto espaço de tempo, profundas transformações nos costumes e hábitos do povo francês. A imagem que a literatura produzia da França, contudo, estava defasada, segundo Stendhal.
'A França moral é ignorada no estrangeiro, eis por que, antes de tratar do romance do senhor de S[tendhal], foi preciso declarar que nada se assemelha menos à França alegre, divertida, um pouco libertina, que de 1715 a 1789 constituiu o modelo da Europa, do que a França grave, moral, triste , que nos legaram os jesuítas, as congregações e o governos dos Bourbons de 1814 a 1830'[1958:318]
Para Nobert Elias 'a especial sensibilidade dos escritores permitiu-lhes, como uma espécie de vanguarda da sociedade, perceber e expressar mudanças que estavam ocorrendo no campo mais amplo das sociedades em que viviam' [1994:87]. O que Stendhal se propôs foi traçar uma imagem fiel dos costumes das cidades e da província francesa e da relação entre indivíduo e sociedade. Para Stendhal sua caneta funcionava como um espelho: deveria refletir com precisão sua época. Buscava a objetividade.
'Senhores, um romance é um espelho que é levado por uma grande estrada. Umas vezes reflete aos vossos olhos o azul dos céus, e outras a lama da estrada. E ao homem que carrega o espelho nas costas vós acusareis de imoral! O espelho reflete a lama e vós acusais o espelho! Acusai antes a estrada em que está o lodaçal, e mais ainda o inspetor das estradas que deixa a água estagnar-se e formar-se o charco. '[: 345/46]
Para alcançar este objetivo, Stendhal colhia no mundo real o material para elaboração de suas obras. A própria história de Julien Sorel, é baseada em fatos verídicos, somando traços de sua personalidade e fatos que aconteceram na sua vida particular para constituição da personalidade de Julien Sorel. Segundo Cândido, 'Stendhal era incapaz de inventar um sistema fictício. O culto à experiência, ao fato constatado, assim como o amor à concatenação, levaram-no sempre a tomar como ponto de partida algo concreto e quase sempre meio elaborado. Para alguém tão convencido da realidade da experiência, a sensação e a impressão da leitura eram células germinais da criação fictícia'[1978:146].
A atenção maior era dada, não aos fatos em si, daí não ser um 'plagiador dos fatos reais', mas a como as pessoas os vivenciavam, interagiam. Ao mesmo tempo que Stendhal descreve encontros entre as pessoas, nos deixa penetrar nos seus pensamentos, através do fluxo de suas consciências, permitindo-nos escutar como os personagens racionalizavam as situações concretas, medindo as possibilidades de avanços e/ou recuos. As ações dos personagens são o resultado da ' interiorização da exteriorização e da exteriorização da interiorização' [Bourdieu, 1983:47]. Mais precisamente no caso de Sorel: 'os acontecimentos constituem Julien Sorel tanto quanto Julien os provoca ou com eles se confronta' [Perrone-Moisés, s/r: 22]
Para entender a dinâmica dos personagens que se encontram em espaços sociais estruturados, movidos por interesses particulares, mas que tinham que agir em conformidade com as normas desse espaço, Stendhal adequa um estilo de escrever, caracterizado pela economia de descrições. Nada sabemos sobre a forma dos vestidos que a Sra. Renal e a Srta. Mathilde usavam, ou sobre os móveis das mansões do bairro nobre Saint German. Ficaria a critério do leitor imaginá-los. Sua preocupação principal era contar como estava a sociedade francesa; o processo de interiorização por parte dos indivíduos dessa situação e, como estes agiam diante de situações concretas, negociando posições dentro das estruturas.
Para implementar seu projeto [descrever a França de sua época ], Stendhal nos fez entrar em contato com a vida na província [principalmente o jogo de poder político], com o mundo religioso, com a vida da alta sociedade parisiense. Que pode ser considerado como três campos: o campo político, o religioso e o campo da aristocracia. Outro tema que aparece constantemente ao longo do livro: o amor.
Esse vasto olhar sobre a vida social francesa, uma ambição totalizadora do conhecimento do seu mundo, nos chega através das ações do herói Julien Sorel.
b] Julien Sorel e sua época.
'Uma efêmera nasce às nove horas da manhã nos longos dias de verão, para morrer às cinco horas da tarde; como haveria ela de compreender a palavra noite?'
Há algum tempo escutei essas frases ditas por um personagem do filme 'Camilla'. Curiosa por saber o contexto daquelas frases que ficaram na minha cabeça como eco, encontrei-as no 'O Vermelho e O Negro' de Stendhal. Contextualizando-as, elas assumiam para mim uma nova dimensão: estavam inseridas no drama do jovem Julien Sorel, condenado a ser guilhotinado por um quase-crime que cometera.
Através de sua história, entramos em contato com o mundo social francês, tal qual representada por Stendhal. A intenção de Stendhal, nessa obra, era construir um quadro que demonstrasse a sociedade francesa da Restauração, daí ele não priorizar um campo determinado. Este quadro é construído através das andanças e aventuras de Julien Sorel. Assim, não temos uma situação onde o ator, portador de um habitus e de um capital, entra em determinado campo, ali se fixa, disputando o objeto em torno do qual o campo se mantém, investindo energia e, pela combinação de suas ações e de situações concretas, garantindo a manutenção do campo [reprodução] ao mesmo tempo que sua posição no seu interior muda [ou no sentido de ocupar um lugar de dominante - ortodoxa - ou permanecer como dominado - heterodoxa].
Embora encontremos essa situação constantemente ao longo do livro, não é especificamente o caso de Julien. A vida [fatos concretos] de Julien é antes uma 'câmara giratória' que circula em vários campos : um olhar vasto que aproxima e distancia o foco. Sua consciência é uma 'metralhadora giratória'. Por onde passou, encontrou a marca registrada do seu século: hipocrisia, medo, onde a palavra só servia para esconder o pensamento. Século da intriga, da suspeita.
Entender a personalidade de Julien, materializada nas suas ações, descolado de um contexto é impossível. Suas ações e a interpretação que ele tem do mundo são fruto da 'interiorização do exterior e exteriorização do interior' [Bourdieu , 1983:47]. A narrativa do romance é construída num sistema de relações, em que o tempo e o espaço onde ela se desenvolve tem um papel fundamental para entender o porquê de Julien agir de determinada forma.
Julien fazia parte de uma sociedade dividida em classes sociais. Cada uma com concepções de mundo diferentes, disputadas violentamente. Em cerca de trinta e três anos a França passou pela Revolução Burguesa, Consulado, o Império Napoleônico e a Restauração. Quatro anos depois que entramos em contato com a história de Julien, 1826, então com dezenove anos, eclode a Revolução de Julho.
As camadas do solo que Julien pisava estavam num processo de ajustamento, de movimento constante, gerando um sensação de insegurança e medo permanente. Crenças democráticas radicais coexistindo com o pensamento liberal, nostalgia pelo Ancien Régime. A idéia permanente era de dualidade, transição. Tal situação interfere nas relações entre os indivíduos, modificando-as: 'as pessoas só podem conviver harmoniosamente como sociedade quando suas necessidades e s socialmente formadas, na condição de indivíduos, conseguem chegar a um alto nível de realização; e o alto nível de realização individual só pode ser atingido quando a estrutura social formada e mantida pelas ações dos próprios indivíduos é construída de maneira a não levar constantemente as tensões destrutivas aos grupos e aos indivíduos' [ Elias, 1994: 122]. Com Julien Sorel há um desajuste entre seu habitus social e as situações objetivamente confrontadas, assim como era elevado o grau de desvio do seu habitus social e o habitus individual. Daí aparecer a noção de desajuste. Porém, conforme veremos mais à frente, Julien sempre tentava agir de acordo as normas e regras dos campos sociais por onde passava, sempre à custa de um enorme esforço de interiorizar as estruturas.
Durkheim [1992] foi um dos sociólogos mais preocupados com o fenômeno do individualismo nas sociedades modernas , apontando a alta taxa de suicídio como uma das patologias causadas por esse processo, principalmente aqueles do tipo anômico. A morte de Julien pode assim ser interpretada: ausência de valores morais sólidos compartilhados, fosse um grupo ou classe, que conferisse sentido para suas ações, para sua vida. Embora eu não esteja inteiramente de acordo com a forma objetivista de abordar o fenômeno do suicídio, por Durkheim, ela nos ajuda a compreender o porquê, no caso de Julien, a morte não o amedrontava; ao contrário, a idéia do suicídio lhe ocorria como uma imagem cheia de encantos, um delicioso descanso: 'um copo de água gelada oferecida ao miserável que, no deserto, morre de sede e de calor.' [ :346]
A possibilidade de coesão social na França de Julien estava restrita aos campos que conseguiam, através dos seus membros, reforçar a crença do campo, reproduzindo-o. Porém, quando tentamos perceber o nível de integração ou de comunicação entre os diversos campos, o que vemos, via Julien, é um processo de desintegração, de esgarçamento do tecido social. É neste quadro que Julien se movimenta.
3. 'O Vermelho e o Negro'
Primeiro Ato: 'Um jovem preceptor '
Julien Sorel, filho caçula de uma família camponesa , odiava sua origem e o futuro que lhe aguardava: trabalhar como serrador de tábuas. Não tinha músculos, nem disposição para este tipo de trabalho. Seus dois irmãos e seu pai o consideravam um preguiçoso, odiavam, acima de tudo, a principal mania do jovem filho: a leitura.
Sua ambição era fazer carreira militar. Tinha a mente povoada pelas campanhas vitoriosas e os grandes feitos do seu maior ídolo: Napoleão Bonaparte. Esta época , porém , fazia parte da história da França. Qual a alternativa então? Qual o campo que possibilitaria a um jovem camponês fazer fortuna?
'Quando Bonaparte deu que falar de si, a França tinha medo de ser invadida; o mérito militar era necessário e estava na moda. Hoje, a gente vê padres de quarenta anos com l00.000 francos de vencimentos, três vezes mais do que percebiam os famosos generais de divisão Napoleão. E ainda têm quem se dobre ante eles... Preciso ser padre.'[ :33]
O hábito preto: o uniforme do seu século. A opção de Sorel nos remete à teoria da prática de Bourdieu; as ações sociais são materializadas pelos agentes sociais, mas as chances de efetivá-las estão estruturas no interior da sociedade. Entre a vocação e a sua realização há condições [ou a falta delas] que escapam ao controle do sujeito. O agir dos agentes sociais encontra-se ajustado às chances objetivas. Foi essa mediação que Sorel fez. A opção em fazer-se padre não era nenhum grande lance de originalidade ou maquiavelismo. No seminário de Besançon, onde Julien passou algum tempo, os camponeses hegemonizavam. Há um nível de previsibilidade nas opções práticas que os sujeitos fazem.
Logo o prefeito da provinciana Verrières, Sr. Rênal, tem notícias de um jovem estudioso das Escrituras Sagradas, portador de uma memória invejável, capaz de recitá-la toda de cor em latim. Muito mais para aumentar seu prestígio diante do Sr. Valenod, diretor do asilo de mendicidade de Verrières, o prefeito contrata Sorel como preceptor dos seus filhos.
Entre o Sr. Rênal e o Sr. Valenod, existia uma relação de cordialidade, mas eram inimigos, disputavam posições dentro do campo político. O prefeito conseguiu ocupar melhores posições. Seus trunfos: um esposa milionária, defensora extremada da Restauração. Como num jogo, a vitória é feita de lances, vitórias parciais: quem tem os melhores cavalos, quem sabe receber melhor, quem oferece os melhores vinhos, os cristais mais raros, as melhores relações com a Côrte parisiense. Quem tem condições de ter um preceptor para seus filhos. Para estes senhores, Julien representa não mais que um símbolo, uma cartada a favor do Sr. Rênal que contribuiria para sua imagem pública.
O Sr. Valenod fora durante muito tempo protegido do senhor Rênal, mas começa a sentir-se ameaçado por ele. Sente que ele passa a ocupar gradativamente posições de destaque na vida política e social de sua cidade. O Sr. de Valenod é jesuíta, ousado, habilidoso, ambicioso, não se sentia humilhado diante de nada, prestava-se a todo tipo de papel. No decorrer das disputas entre ambos, o Sr. de Valenod torna-se sucessivamente barão e membro da câmara dos deputados.
O jovem preceptor está fora deste campo. Não disputa o objeto em jogo: o poder político. Mas queria tirar proveito da posição que ocupava: primeiro era preciso saber aonde estava pisando, fazer um mapa mental das posições dos freqüentadores da casa do Sr. Rênal. Esse processo de investigação silenciosa permitiu-lhe chegar a algumas conclusões: jamais revelar sua paixão por Napoleão, nem sua admiração pelas idéias Iluministas, principalmente por Rousseau; estava cercado de inimigos, tinha horror e ódio à alta sociedade em que, a bem dizer, era recebido com reservas. Sabia que por mais que tentasse se distanciar de sua classe de origem, os outros sempre o veriam como um portador do habitus camponês, identificado com o mau gosto, a rudeza, 'um saco de batatas' [ Marx].
Não foi difícil para ele perceber que o Sr. Valenod cobiçava-lhe e fazia todo o possível para levá-lo para sua casa. O Sr. Rênal também sabia. O medo de perder o preceptor fez o Sr. Rênal aumentar-lhe o salário. E sempre que Julien queria um tempo para se isolar ou para visitar o amigo Fouqué, burguês que tinha no trabalho o único valor moral, era-lhe concedida licença. Todas as vezes que encontrava com este seu amigo, ele lhe oferecia sociedade no seu negócio de madeiras. Poderia rapidamente ficar rico. Julien de certa forma 'arquivou' a proposta : caso não conseguisse fazer fortuna dentro da Igreja, a mesma poderia ser uma alternativa.
Cada ação de Sorel, ao longo do livro , é antecedida por um processo de racionalização que busca, em primeiro lugar, fazer o reconhecimento do meio social no qual se encontra [as regras, normas de conduta, qual posição que cada indivíduo ocupa] para, a partir daí, representar seu papel. Contudo, fazer esse reconhecimento e se movimentar com facilidade num espaço social onde as pessoas agiam de acordo com um habitus diferente do seu, levava um certo tempo. Tinha pavor de passar por ridículo, de não se comportar de acordo. Mesmo tendo uma memória invejável, tinha o cuidado de anotar em pequenos pedaços de papel o nome dos freqüentadores da casa, sua posição social e outras observações que achasse conveniente para não se perder, afinal ' ele vivia entre camponeses; nunca tivera grandes modelos. Mais tarde, logo que lhe foi dado aproximar-se de gente distinta, tornou-se admirável nos gestos como nas palavras' [ :54/55]. Com a ajuda dessa técnica e de uma conduta pautada num profundo arrivismo, conseguiu atualizar seu habitus a situações concretas.
Depois de algum tempo como preceptor, Julien tem que abandonar a casa dos Rênal: tornara-se amante da Sra. Rênal e fora denunciado por uma carta anônima, depois reconhecida como tendo sido escrita pelo Sr. Valenod.
Inicialmente o sentimento que levou Julien a envolver-se com esta senhora não foi a paixão ou algo parecido. Colocara-se como um desafio tê-la, fazê-la apaixonar-se. Estabelecia s. A cada etapa vencida [um toque de mão, um olhar mais demorado, visitas noturnas a seu quarto], ele suspirava feliz: ' Sim, eu ganhei uma batalha... Isso é puro Napoleão'[ :75]. Mas , eis que o imprevisto nos planos do nosso estrategista do amor acontece: ele se apaixona por aquela senhora tão suave e boa 'mas que fora criada no campo inimigo'. [ : 102]
Porém, seu tempo de amante acabara. Depois da carta anônima, não resta outra saída: Julien vai para o seminário em Besançon. Ali conhecerá o campo religioso.
Segundo Ato: No Seminário
No Seminário Julien assumiu um postura arrogante. Enxergava aqueles seminaristas como seres grosseiros; camponeses que preferiam ganhar o pão recitando algumas frases decoradas do latim à cultivar a terra. Uma situação que, na verdade , não era tão diferente da sua. Mas seu gosto pela leitura e a capacidade de julgar por si mesmo o faziam diferente. Contrastando sua capacidade com a dos outros, deu-se conta de sua superioridade . Através dessa observação, que fizera nos primeiros dias, sonhou com sucessos imediatos e viu-se ocupando posições de destaque. Nosso jovem herói, tão dado a pensar a vida como uma guerra, errou. Esqueceu de fazer o reconhecimento do campo inimigo [conhecer as regras do jogo] e a partir daí definir suas táticas. Esqueceu de que, para saber agir como padre, para ser padre, deveria dominar e interiorizar o funcionamento do campo religioso. Havia um conjunto de pressupostos consolidados que davam sustentação a esse campo, independente da vontade de Julien.
O esforço que Julien fazia para ser o primeiro nos diversos cursos de dogma e de história eclesiástica era visto como um enorme pecado. O inimigo número um da igreja naquele momento eram os livros. O Iluminismo e a Revolução Burguesa deixaram uma lição: a única coisa importante é a submissão do coração. Vencer nos estudos, mesmo sacros, é suspeito. O pensamento, a busca do conhecimento, trás em si o poder de libertação, de subversão. Todo raciocínio ofende.
A atitude de Julien, olhando sempre direto nos olhos, com ares de quem está sempre pensando, manteve os companheiros à distância. Ninguém queria relacionar-se com o jovem 'Martinho Lutero', como ficou conhecido. Julien era como uma nota musical entoada fora do tom. Desafinava . Percebeu, depois de algum tempo, que a diferença não se tolerava e que nada conseguiria com aquele seu jeito de agir.
Para adaptar-se àquele novo espaço social, Julien teve que ajustar suas ações às normas de conduta daquele campo: a maneira de andar, de mover os braços, os olhos, o tom da voz, o conteúdo das conversas. Tudo deveria ser feito com resignação, numa economia constante de energia. Julien percebeu, então, que 'no seminário, é o modo de se comer um ovo que revela os progressos feitos na vida devota'[ :218].
Além desse esforço de comportar-se de forma mais condizente com os padrões de um jovem padrezinho, Julien teve o cuidado de observar as disputas de posição entre aqueles que representavam a ortodoxia e, a partir daí, definir qual o melhor partido a tomar. Entre o diretor do Seminário, o abade Pirard , jansenista, e seu inimigo, o senhor de Frilair, Vigário Geral de Besançon, jesuíta. Julien alia-se ao primeiro, tomando-o como confessor e amigo .
Pela postura sempre tão calculista e maquiavélica de Julien , esperávamos que se aliasse ao senhor de Frilair, representado internamente no Seminário pelo Padre Castanède. Talvez por uma leitura errada das posições naquele campo Julien tenha se aproximado do Abade Pirard. Isso num primeiro momento. Depois a atenção e carinho que o Abade tinha por ele o conquistaram definitivamente.
O abade Pirard foi diretor do seminário durante quinze anos, boa parte dos quais envolvido em brigas com o senhor de Frilair. As disputas, que aconteciam ao nível da ortodoxia, refletiam nos seguidores de uma [jansenismo] ou outra posição [jesuítas]. Julien pôde sentir isso na pele.
O abade Pirard nomeou Julien, seu protegido, o explicador do Novo e Antigo Testamentos. Na prática, isso lhe conferia uma posição mais elevada na hierarquia em relação aos outros seminaristas [representava que seu capital tinha aumentado]: podia comer sozinho, tinha a chave do jardim podendo passear quando quisesse. Pouco a pouco tornou-se de mau gosto chamá-lo de 'Martinho Lutero'.
Chegou a época dos exames. Os examinadores eram nomeados pelo Vigário Geral de Frilair. Um examinador pôs-se a falar de Horácio, Virgílio e outro autores profanos. Julien aprendera de cor um grande número de passagens daqueles autores. Arrastado pelo sucesso, esqueceu em que lugar se achava e na companhia de quem. Depois de vários minutos recitando e parafraseando com entusiasmo odes de Horário, percebeu que caíra numa cilada: o examinador fechou a cara e reprovou-lhe o tempo perdido com estudos e idéias inúteis. Foi com prazer que o Vigário Geral colocou o número 198 ao lado do nome de Julien: o protegido do abade Pirard não conseguira uma colocação melhor. Através de Julien, o Vigário atingira seu inimigo.
Mas , por que Julien, tão ambicioso, não se aliara ao Vigário? A forma como as ações de Julien são construídas nos indica a complexidade de sua personalidade. Julien não é vilão, nem mocinho. Nada se distancia mais dele do que o tipo ideal desses dois extremos, imortalizado pelos personagens das novelas medievais. O carinho e a preocupação que o velho abade Pirard tinha por ele, fez Julien considerá-lo como um pai.
Inicialmente construímos a imagem de um jovem que ocultava sob um rosto singelo, a resolução 'inquebrantável de expor-se a mil mortes, contanto que chegasse a fazer fortuna '[ :33] Porém, muitas vezes diante de situações onde esperamos uma determinada conduta , ele nos surpreende e se surpreende. É no processo de conhecimento do mundo que ele realiza o auto-conhecimento. Mas, quem pode dizer que se conhece ou tem a capacidade de prever todas suas ações em todos momentos da vida social?
Todos nós somos portadores de determinado sistema de disposições duráveis, que nos capacita a compartilhar determinadas realidades sociais. Se entre o habitus e as situações concretas há um nível de previsibilidade das ações [conforme visto anteriormente], também há o da imprevisibilidade. Isto aparece em Julien quando se envolve com alguém, sente carinho. Neste momentos seu racionalismo, que procura numa ardente meditação interior suas razões de agir, volatiza-se. Não consegue pensar antes de agir e nem de pensar como o outro está pensando para lhe surpreender com um xeque-mate. Isso é mais visível quando está apaixonado. Aí se estabelece um duelo interior infernal entre a razão e o coração.
***
O inevitável na história do abade Pirard acontece: é obrigado a pedir demissão do seu cargo, devido ao crescente número de intrigas e da certeza que seria demitido. O abade Pirard tinha como amigo e aliado em Paris o Marquês de La Mole. Preocupado com os rumos que a vida do jovem Sorel poderia tomar naquele seminário com a sua ausência , o Abade convence o Marquês a torná-lo como seu secretário particular.
Terceiro Ato: Nos salões de Saint -Germain
Julien não se continha de tamanha felicidade. Finalmente deixaria aquele lugar sombrio, sem vida. Depois daquela temporada interno no seminário, entendeu que a cor do hábito não poderia ser outra. Iria para Paris. Quem poderia imaginar, um jovem camponês nos salões da alta sociedade parisiense ? Nem ele próprio.
O provinciano Sorel tudo admirava naquela cidade cheia de brilho, de pessoas, cavalos, damas perfumadas, prédios. Seus olhos pareciam querer saltar do rosto para conseguir absorver tudo quanto lhe rodeava. Quando entrou no Palácio dos La Mole, para assumir suas tarefas, pensou: 'Então é assim que eles vivem'. A alta sociedade provinciana, com a qual tivera contato, era composta de pessoas que ocupavam essa posição pelo adquirido e não pelo herdado, embora de um adquirido que ainda procurava se disfarçar sob a aparência deste. Era precisamente o caso do Sr. Rênal que se envergonhava de ter sido industrial antes de 1815.
Na alta sociedade parisiense o nome e o nascimento eram o principal passaporte para torna-se um freqüentador dos salões e ser reconhecido como par. Eram barões, duques, condes, marqueses que sabiam localizar com precisão o lugar que ocupavam na árvore genealógica dos Retz, Tolly, Croisenois, Caylus. A tradição, o passado dava o sentido do presente. É sua posição presente e passada na estrutura social que esses indivíduos transportam com eles todo tempo e lugar, sob a forma de um habitus assentado num conjunto de símbolos. O traje, o cetro, o manto, a coroa real representavam o máximo de capital: eram símbolos do capital social.
A posição que cada indivíduo ocupava dentro desse campo dependia do seu capital, objetivado em títulos, cruzes e outros símbolos. Havia disputas para conseguir títulos, que os colocariam numa posição mais elevada na hierarquia aristocrática. O objeto em torno do qual estas pessoas giravam era um 'sistema simbólico' [Bourdieu], que funcionava como instrumentos de conhecimento e de comunicação, exercendo um poder estruturante na medida que são estruturados, funcionando assim , como instrumentos de integração social.
Era outro mundo que Julien entrava em contato. Um mundo onde 'a história dos antepassados eleva-os acima dos sentimentos vulgares, e eles não têm de pensar continuamente na própria subsistência! Que miséria! Sou indigno de raciocinar sobre esses grandes assuntos. Minha vida não passa duma seqüência de hipocrisias, porque eu não tenho 1000 francos de renda para o pão '[ :293]. Ali ninguém se preocupava em trabalhar, encarava este como o pior dos males.
Durante os dias, Julien ocupava-se com suas funções de secretário. À noite, jantava com os donos do Palácio e com seus convidados. A presença de um plebeu inicialmente incomodou bastante, a ponto da Sra. de La Mole propor ao marido mandá-lo desempenhar uma missão qualquer nos dias em que tivessem certos personagens à mesa.
O medo de passar ridículo e a intenção de melhor orientar-se, fez Julien proceder da mesma forma que na casa dos Rênal: escreveu os nomes e uma frase sobre o caráter das pessoas que entravam no salão. A precaução de Julien lhe ajudou muito pouco. Todos caçoam de sua falta de jeito em se portar. Comportava-se como um subalterno inoportuno a quem ninguém se dava o trabalho de esconder o que achasse a seu respeito.
Passado algum tempo pôde perceber com mais clareza o código de conduta dos salões. O sentimento de admiração inicial cedia lugar ao menosprezo pelo mundo da alta sociedade parisiense. Participar todas as noites daqueles encontros tornara-se para ele uma suplício. Nos salões podiam comentar tudo livremente, menos fazer piadas 'a respeito de Deus, nem dos padres, nem do rei, nem das pessoas de posição, nem dos artistas protegidos pela corte, nem de tudo o que está estabelecido; contanto que não falassem bem de Béranger, nem dos jornais da oposição, nem de Voltaire, nem de Rousseau, nem de todos os que se permitiam certa linguagem franca; contanto, sobretudo, que nunca falassem em política, podiam comentar tudo livremente. ' [ :246]
Não havia espaço para qualquer idéia viva. O código dos salões era implacável. Não se admitia qualquer nível de imprevisibilidade nos comportamentos ou opiniões, fosse dos jovens ou velhos aristocratas. As maneiras encantadoras, tão alegres na aparência, careciam de idéias, de originalidade. Julien só enxergava cópias. Viviam à sombra de uma revolução. Buscavam voltar-se para dentro. Nada poderia transpor aquela parede invisível entre o mundo lá fora, em ebulição, e o dos salões. Podia-se sentir, contudo, que pairava o medo no ar, medo de outra revolução e da volta da aristocracia à guilhotina.
Julien sentia-se asfixiado. A única coisa que diminuía seu tédio eram as longas conversas que tinha com a Srta. Mathilde de La Mole. Eles tinham alguns pontos em comum: prazer nas leituras sérias e proibidas [tipo Voltaire], faziam a mesma interpretação do século em que viviam. Porém, enquanto Julien tinha como modelo Napoleão e Danton, Mathilde ia buscar em épocas muito mais longínquas seus modelos: na Côrte de Catarina de Médicis, quando os homens lutavam por uma causa, eram capazes de expor-se ao perigo. Eram de homens como seu antepassado, La Mole, que deu a vida pelo amor de Margarida, que carecia sua classe. Mathilde orgulhava-se profundamente do seu nome.
O ódio que ambos nutriam pelo seu século rendeu longas conversas e uma paixão que mudou o futuro de Julien. A jovem aristocrata sentiu-se atraída por Sorel por tê-lo na conta de um homem inteligente, um novo Danton. Embora fosse aristocrata, odiando tudo que lembrasse 1792, admirava as ações dos indivíduos ousados.
A história de amor de Mathilde e Julien é marcada por avanços e recuos: Mathilde, depois que consegue ter Julien, arrepende-se, sente-se envergonhada. Como se permitira se apaixonar por um criado da casa, um camponês?
Desprezado por Mathilde, Julien volta-se para dentro, tal qual casulo. Nunca sua situação de classe lhe pesara tanto. O ódio que nutria pela aristocracia foi domesticado. Sentia vergonha de sua origem e de não poder ter sua amada.
O processo para reconquistá-la assemelha-se a uma enorme batalha. Julien joga, provoca a orgulhosa Mathilde, despreza-a. Recuperou a razão . Pensava'...não pense Srta. Mathilde que eu esqueço meu lugar. Farei com que compreenda e sinta que é pelo filho de um carpinteiro que a senhora atraiçoa um descendente do famoso Guy de Croisenois'[ : 321].
Julien venceu. Teve sua amada de volta aos seus braços. Pouco depois, ela engravida. O Sr. La Mole quase enlouquece: 'Este século está destinado a confundir tudo, e nós marchamos para o caos! ' [ : 427]. A filha de um aristocrata grávida de um plebeu. A bela Mathilde com casamento marcado com o nobre Croisenois. Paris toda zombaria da Casa dos La Mole! Nada que o pai argumentava, a fazia reconsiderar: ia casar-se com Julien e dá o nome Sorel ao seu filho. Agora era o amor paixão que falava mais alto e não o cerebral. O amor paixão que nasce como uma força interior, representando a vitória da intimidade, do 'eu'.
O Sr. de La Mole consegue uma patente de Tenente de Hussardos para Julien, forja uma condição de nascimento nobre. Passaria a chamar-se Julien Sorel de La Vernay. Tudo que Julien sempre sonhara estava realizando: tornara-se um militar, conseguira ter seu amor correspondido, seria pai. Parecia que sua guerra com a sociedade findara.
Mas, então por que Julien não agiu de forma mais fria e racional, quando leu a carta da Sra. de Rênal, que o descrevia como egoísta, um homem que só pensava em dinheiro ? Por que ele correu até Verrières e atentou contra a vida dela , quase matando-a? Essa atitude reforça a idéia, a complexidade das ações e reações de Julien, acima colocadas.
Julien é preso. Durante o tempo que durou o processo, Mathilde dedica-se totalmente ao seu amado. Mas este vê ressurgir o amor pela Sra. Rênal.
As longas noites e dias na prisão são preenchidos por pensamentos profundos, filosóficos. No seu julgamento estava cheio desses pensamentos e ousou quebrar a regra de ouro do seu século; usou as palavras para expressar qual sua posição diante da sociedade: ' Senhores, eu não tenho a honra de pertencer à vossa classe; vós vedes em mim um camponês que se revoltou contra a baixeza de sua condição. . . Sou culpado. . . mereço a morte, mas mesmo que eu fosse menos culpado, vejo homens que, sem contemplação para o que a minha juventude possa merecer de piedade, hão de querer punir em mim e desencorajar para sempre os jovens que, oriundos, de uma classe inferior e de qualquer forma oprimidos pela pobreza, têm a felicidade de conseguir uma boa educação e a audácia de imiscuir-se naquilo que o orgulho da gente rica chama 'sociedade'. '[: 487]
Falando assim, ele decretou sua própria sentença. O Sr. de Valenod, presidente dos jurados, a lera: guilhotina.
Pouco antes de subir ao cadafalso, pensava; ' Uma efêmera nasce às nove horas de um lindo dia verão para morrer às cinco horas da tarde; como haveria ela de compreender a palavra noite ?'
Quando a lâmina afiada separou o corpo da cabeça de Julien, Mathilde não ficou desesperada. Agora ela via que estava certa : Julien era audacioso. Sentia-se a própria Margarida de Navarra. Pegou a cabeça de Julien , colocou-a à sua frente e beijou-lhe a fronte. E ela mesma a enterrou, com muita pompa.
Fontes:
http://www.algosobre.com.br/
http://www.leonardodavinci.com.br/ (imagem)
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