domingo, 13 de julho de 2008

Dicke e o Último Horizonte dos Sentidos Inscritos

artigo da Profª Ms. Madalena Aparecida Machado (UNEMAT/FAPEMAT-UFRJ)


A prosa do matogrossense Ricardo Guilherme Dicke se instaura na travessia do silêncio que perfaz uma escuta. Último horizonte (1988) vem marcar definitivamente a obra deste escritor com a primazia pelo humano e como tal, sua quota de indiscernibilidade, o que faz a riqueza e qualidade de sua Literatura. O eu que se intitula a profecia da vida, é um ser anônimo, incógnito, um quase intransponível abismo. Nosso texto pretende pensar esse horizonte cujos sentidos pedem uma interpretação menos conclusiva que iniciática.

Passando do estágio de promessa com as obras iniciais, a ficção de Dicke se firma com Último horizonte. Neste, uma longa noite de silêncio e meditação serve a um poeta para ele se ver com uma escuridão dentro de si. Pensa, pondera com personagens presentes ou distantes, se cansa e vai dormir. Desse enredo simples, surge a eternidade da escuta, há a sabedoria da palavra que prende e liberta partindo-se do encontro de uma verdade. De um, de todos os personagens, este livro traduz o desconforto existencial do narrador colocado sob questionamento. A noite, a morte, longe de serem encerramentos, são pretextos de contágio do personagem-narrador com o negrume, putrefação que cercam, fazem o domínio da filosofia de viver do sujeito posto entre o Alfa e o Ômega da vida. Do sono, desperta o poeta para uma restauração de alma, a abertura da nova compreensão de tudo mesmo que esta leve à desorientação.

Esse conhecimento a perseguir passa a ser uma constante desde a saga de Madona dos páramos (1981), cuja viagem lembra a descoberta do homem em relação a seu potencial. Ali temos a treva da chuva que nunca pára, a senhora dos horizontes infindos, decide o destino dos homens, seus algozes e justiceiros. O limiar de sentidos é outra característica de Dicke, uma vez que em Cerimônias do esquecimento (1995), também temos uma noite, um amanhecer com sentidos inscritos a anunciar o descerramento possível dentre o velamento provável, bem ao gosto da filosofia de Martin Hidegger, uma das influências na Literatura do escritor. Além de Nietzsche, Schoppenhauer, Sartre e Camus, de uma forma bem geral estes justificam a idéia transmitida na narrativa por Dicke de que o homem, através de uma vontade ferrenha é capaz de alterar o caminho de vida que lhe foi traçado ao nascer. Numa ausculta pelo outro, seja ele seu semelhante, a natureza ou os objetos a compor o quadro existencial do homem, o texto literário o qual estudamos, está de prontidão ao sentido a-se-saber.

Jerombal Thauutes é o poeta da narrativa acompanhado pela também poeta Kabira Astharte Flox. Nas deambulações pela madrugada adentro, eles são ouvidos de perto pelo gato, o corvo, a cabala, os deuses e os demônios extraídos da voz da locutora Collette Thomas, a suavidade a migrar para a atenção do protagonista. Dessa forma, o Último horizonte se faz pelo exacerbamento do sentido de humanidade ao reconhecer no tempo a alma a flutuar sem limites. Num abandono de querer comprometido com funções determinadas, o enredo lembra os passos de Stephen Dedalus de Ulisses (1999) de James Joyce, naquele 16 de junho de 1904. A força narrativa se dá pelo fluxo de consciência, mas se faz também por pequenos gestos de entrega, de solicitude, no gosto de aventura e pela flutuação nos abismos que sentem, fazem os personagens do horizonte nos começos propostos. Último não porque signifique o fim, mas o início de um outro olhar; por isso tem tanta importância a imagem do crepúsculo na obra de Dicke. É o de dentro que se estremece, um interior rotundo, escabroso, pronto a ser contestado, é assim a Literatura desligada com as horas, com a prontidão das respostas pré-estabelecidas.

O vigor e a inventividade de Último horizonte extrapola o que conhecemos de monólogo interior, pois seu monólogo é voltado para fora a fim de revelar a verdade imaterial da existência, apesar de registrar de forma minuciosa a experiência psicológica dos personagens. Diríamos que é um recurso adotado por Dicke para falar da vida e a consciência pós-moderna, quando seu personagem-escritor conduz o monólogo tentando despertar de um outro pesadelo histórico diferente de Dedalus. O personagem se preocupa com um mundo sem consciência, sujeitos repletos de caos, por isso compreende: “quem não descobre a si mesmo vive fora de si mesmo.” (DICKE, 1988, p. 43).

A espontaneidade em contraposição à objetividade, dá ensejos à emancipação do homem junto às coisas e pessoas de um mundo em travessia; assim como ele sente-se pressionado pela legitimidade do “eu” brotada de seu interior incorrupto, mostra-se intranqüilo por causa das coisas sem explicação que provoca o estabelecido na vida. Do inabitual, surge uma vontade em conhecer o outro feito extensão de si e o que parece obsessão, torna-se coerência com o sujeito de um acontecer.

O homem que desconfia de dogmas ou qualquer tipo de imposição é arrastado na narrativa de Último horizonte no qual perdura o sentimento de liberdade na biblioteca, na varanda, para fazer valer a criação, invenção de si em contraposição às regras ditadas pela realidade que molda. Tanto é que se vê espedaçado na vida por não se comportar de acordo com os sentidos a si impostos, ao invés mostra desassombro com o que vem de seu interior insatisfeito. Do presente, são as luzes distorcidas que o fascinam, ser destaque é ser lembrado como o diferencial e é isso que o narrador anela. É importante frisar que o fascínio do diferente faz o escritor-personagem um ser mais verdadeiro, mais preciso com a vida que enxerga com a vastidão do cognoscível e do irreconhecível. Este é o contexto de um eu sem esplendor, trabalhador atento ao desnecessário cujas coisas celestam; desocupado aos olhos do mundo pequeno das obrigações diárias, perfaz contudo a compreensão iminente. Receptivo ao que não se explica, esse homem inebriado em desvãos é preenchido pelas perguntas que não calam com a mesma consistência que desmerece o rito de acordar, cumprir horários e voltar para casa mais pobre de experiências a cada dia.

Heráclito (2002) de Martin Heidegger amplia nossa compreensão em vista: “o homem é a localidade da verdade do ser e, somente por isso, ele pode ser a errância errada do nada vazio. O homem é aquele que é à medida que constantemente não é o que é.” (2002, p. 382). Com este recorte podemos ver o quanto a teoria nos auxília na leitura crítica da obra de Ricardo Dicke: ao explorar um inalterável deixar ser, já anunciados pelo discurso formador de Heráclito, cujo propósito é depositar no homem a confiança pelo que se descobre, sabendo-se limitado enquanto quer impor verdade absoluta. A verdade do ser, entretanto, está, precisa do homem verdadeiro; daquele que espera e acena, silencia e fala com a mesma eloqüência. O silenciamento que contamina pretende a essência humana, é capaz do desvelamento enquanto abriga o velamento necessário em relação ao auto-conhecimento. Ora, se é característico do homem o uso da razão, o deixar-se da emoção, é na vontade que se concentra o esquecimento da subjetividade entregue a si mesma como forma de se chegar ao resguardo do ser. Se voltarmos ao romance, veremos que isso acontece com o protagonista que expia suas faltas anteriores, seu modus vivendi contrário à vontade particular com um retorno a si mesmo, ao guardar para si o mistério e viver a fantasia da vida. É uma convivência que contempla realização e abrigo no próprio homem. O que subjaz ao sujeito e é a essência volitiva peculiar ao ser segundo Heidegger, é a “re-presentação que apresenta tudo para si e se apresenta como o que domina todo o subsistente, o permanente, a armação.” (HEIDEGGER, 2002, p. 391). A vontade específica que assegura a dignidade da essência humana, por vezes causa estranheza, como observamos na narrativa de Ricardo Dicke, no qual o inabitual ganha o primeiro plano na expectativa de que haja o habituar-se do afastamento. A fim de transpor as estreitezas do pensar construído com as constringências, o homem abandona a ocupação e o pensamento com muitas coisas e reconhece que o saber em sua modalidade única está no a-se-saber. Engrandecer-se no humano é co-responder à atenção da palavra, da linguagem, do discurso que é único, intransferível, no anunciar que cada homem é capaz. Dar testemunho de vitalidade nesse sentido, corresponde a uma introdução sempre renovada se tivermos no “dizer” o tocante ao essencial. Justamente temos no texto de Dicke esse deixar o outro falar, aproximar-se da palavra sem arrogar-se o direito sobre ela oriunda de diversos matizes.

Repleta de questões, a narrativa traça e se impõe pelo ritmo pessoal. No ajuntar de saberes provenientes de uma vasto conhecimento das humanidades, encontramos o traço distintivo. É a maneira do escritor mexer com seu leitor, retirá-lo da pasmaceira, do despreparo habitando num mundo de cegueiras. A exemplo, temos: “neste ponto da Vida o que é a Vida? Neste ponto da Morte o que é a Morte? Neste ponto da Mulher o que é a mulher? Neste ponto do Homem o que é o Homem?” (DICKE, 1988, p. 60). Rio de horizontes, rio de eternidades, a compreensão se dá pelo inverso, pelos vagares muito rápidos e sobretudo por um calar mais que apropriado. Não o consentimento para as coisas bem definidas de um universo implantador de sentidos, porém, de um fechamento em mansidão; chave para adentrar-se no Lugar do Indizível a que aduz o narrador. Localizado neste, o personagem-escritor recolhe-se perante o horror da vida, dos crimes que se perpetram na Humanidade a caminho (em descaminho?) de um pensamento pegando fogo no mundo: de vacuidades enormes, inscrições sob as vastidões até que o Eu que urge entre e faça o Eu facinoroso deixar de existir.

Essas constatações nos levam ao pensamento de Max Horkheimer no livro Eclipse da razão (2002), o qual se preocupa em indagar desde o cerne o conceito de racionalidade que rege a cultura industrial contemporânea. Para este escritor, prevalece um sentimento geral de temor e desilusão devido ao alcance dos bens materiais seguida de perto pela desumanização crescente. A idéia de homem que se busca neste livro vai além de classificá-lo como o portador da razão, aquele que tem a força de decidir o que seja útil para si, capaz de inferir, deduzir, reduzir a complexidade das coisas e dos homens ao redor; eis o que o autor denomina de razão objetiva. Saindo da estrutura objetiva, a razão subjetiva dá conta da relação de um objeto ou conceito em vista com um propósito. Assim fundamentada, a razão objetiva desde Platão determina a vida, a idéia do bem supremo e o modo de realização dos fins últimos que acompanham o homem. Relegada a segundo plano, a razão subjetiva, o “dizer” subentendido da faculdade de falar; essa capacidade de calcular probabilidades e assim coordenar os meios corretos com um fim, é preterida pelo conceito de logos ou ratio, alicerce da razão objetiva, base para o conceito do sujeito pensante na sociedade ocidental.

O que Max Horkheimer coloca como crise do pensamento ocidental, diz respeito à inadequação da objetividade no uso da razão. Os sistemas filosóficos daí decorrentes, implicam numa convicção em descobrir estrutura totalmente abrangente do ser e com base nisso poder derivar uma concepção do destino humano. Já nos tempos de Montaigne, a razão se revela com uma tendência a dissolver seu próprio conteúdo objetivo, através de atitude conciliatória. A filosofia racionalista tinha como principal esforço formular uma doutrina do homem com função intelectual em substituição à religiosa do passado. Embora não tenha tido os resultados esperados, os sistemas filosóficos racionalistas, “foram apreciados como esforços para fixar o significado e as exigências da realidade e para apresentar as verdades que são comuns a todos.” (HORKHEIMER, 2002, p. 24). No entanto, ficava em voga a questão de atender ou a revelação ou a razão para se tratar de uma verdade suprema, nisso se fundava os conflitos. A razão sendo destrinchada em sua composição, cede sua independência e aí vira instrumento para se alcançar determinado fim. Cresce o papel da matemática, da ciência enquanto a razão subjetiva é vista como algo que se conforma a qualquer coisa, por isso menos importante. Com um poder de resistência, a razão subjetiva mostra a verdade como um costume e portanto a despe de sua aura espiritual, como pretende os cultores da razão objetiva, sempre em busca de um sentido inerente nos homens, nas coisas.

A experiência humana que o autor do Eclipse da razão quer esboçar, é uma experiência muito próxima do que encontramos em Último horizonte. É a amostragem da aflição do sujeito na efervescência da própria incapacidade de atingir uma ordem objetiva, pois ela não condiz com o que lhe vai por dentro, não explica sua realidade em tudo e por tudo conturbada. Apreender os fatos parece mais honrado que refletir sobre eles, o que ocasiona uma tensão entre o postulado moral e a realidade social. A reificação na sociedade organizada tornou-se instrumentalização da atividade humana feita mercadoria, é o lucro, a rentabilidade a mola mestra para se lidar com o humano. Na tentativa de extrair uma filosofia dessa visão das coisas, o pragmatismo tenta se valer por si quando adota a opinião de que uma idéia, um conceito ou uma teoria nada são se não levarem à ação. A verdade, para esse pensamento, é algo que funciona mais; os meios certos e o fins esperados são a tônica dessa filosofia cujos resultados da experiência podem atuar sobre a conduta humana.

Horkheimer entra na discussão sobre as possíveis soluções também em conflito a cerca do declínio do pensamento filosófico. A filosofia moderna passa à ciência o papel da especulação, nisso próximo ao que Platão pensava ao querer transformar os filósofos em governantes. Salvar a humanidade em ambos os sentidos, é submetê-la às regras e métodos do raciocínio científico. Seja no pragmatismo, seja numa neoreligiosidade, temos a tentativa de estabelecer princípio absoluto como poder real ou vice-versa, mas procurando sempre a identidade com o bem, a perfeição, a realidade para explicar o homem. Como são os resultados que se buscam nessa visão objetivista, o conhecimento é medido pela lógica; a ciência moderna reifica a vida em geral ao contemplar o mundo como mundo de fatos e coisas, esquecendo que eles são relacionados a um processo social. Os intelectuais neste caminho, cometem um crime contra a sociedade conforme Horkheimer por sacrificar as contradições e complexidades do pensamento às exigências do senso comum; pela hostilidade a tudo que se refira ou queira-se estranho. Nisto se dá o declínio intelectual pois, há a pretensão de adaptar a humanidade ao que a teoria reconhece como realidade; cada facção pretendendo expressar uma verdade, distorce-a procurando torná-la exclusiva.

Quanto à abordagem da natureza no eclipse que nos ocupa, passa-se do domínio do objeto, sua explicação, aplicabilidade até a liquidação do sujeito que deveria usá-lo. Nisto equivalem-se a dominação da natureza e a do homem. Os menores gestos, os atos formais ou informais são tratados pelo viés da potencialidade funcional. Desta forma, a civilização vai integrar uma revolta da natureza como outro meio ou instrumento. Temos então a autopreservação do indivíduo através das exigências de preservação do sistema, fazendo do comportamento subjetivo, o ajustamento que aparenta independência, sendo contudo, um paralelo de passividade. É enganoso olhar com entusiasmo a falsa multiplicação de escolhas quando a mudança de qualidade se houver, é para menos, é reducionista, muda-se o caráter de liberdade. Adaptar-se (fazer-se igual ao mundo dos objetos) é o novo ritmo da humanidade moderna para quem a natureza foi despojada de todo valor ou significado intrínseco e o homem de todos os objetivos que possam lhe explicar, a não ser o de auto-conservação. Desde a adolescência o conflito aparece pela ligação entre razão, eu, dominação e natureza; assim o caráter do indivíduo se bifurca pela opção entre resistência ou submissão, tendo à espreita para entrar em ação o impulso mimético. O que Horkheimer coloca como auxílio à natureza é libertar seu pretenso opositor: o pensamento independente.

A ascensão e o declínio do indivíduo no pensamento do alemão, se inicia com a crise da razão. No passado, um instrumento do eu, na modernidade, torna-se irracional e embrutecida por visar a autopreservação a todo custo. Observar o sujeito compreender sua própria individualidade significa vê-lo como ser humano consciente, reconhecendo sua identidade. Quando o sujeito começa a pensar em si mesmo como a mais alta de todas as idéias, ocorre a dissociação entre o indivíduo e a comunidade, portanto, do ideal e do real. Dentro desta perspectiva “o homem emergiu como indivíduo no momento em que a sociedade começou a perder a coesão e ele tornou-se consciente da diferença entre sua vida e a da coletividade aparentemente eterna.” (HORKHEIMER, 2002, p. 139). Na contemporaneidade, destaca-se as inúmeras oportunidades que cercam o indivíduo contrapostas às probabilidades concretas cada vez mais rareadas. Vem a imitação, a verdade enquanto instrumento para dominar a natureza e da totalidade que resume a sociedade, no que depreendemos o declínio da individualidade.

Em dias que a existência humana é medida pela eficiência, produtividade e planificação, a queda do indivíduo acontece graças a atual estrutura e conteúdo da mente objetiva; ainda os meios da cultura de massa servem de reforço às pressões sociais sobre o sujeito imerso na dissolução de sua individualidade. Privado da espontaneidade, o homem da resistência não se dobra à conquista e à opressão e luta para ter sua humanidade preservada no respeito pela diferença. O papel da filosofia nesta conquista, na concepção de Horkheimer é entender e fazer valer o método da negação, denunciar o que mutila a espécie humana e impede seu livre desenvolvimento, é obter confiança no homem emanciapado das amarras supersticiosas e ultraracionais.

É patente na Literatura de Ricardo Guilherme Dicke uma visão da existência que perdeu seu significado objetivo. A condição humana a qual nos referimos, exerce fascínio no que tem de contrário ao determinado, de obediência à regras e medidas; o destapar a caixa de Pandora, significa neste contexto, deparar-se com a própria imagem de forma inconclusa, com todos os percalços oriundos deste gesto. Os males daí decorrentes surgem no sujeito e se espalham pelo ambiente de uma noite desigual, mas sem uma esperança ao fundo que possa dar cabo do inusitado. No entanto, não podemos afirmar categoricamente que se trate de uma imagem pessimista da humanidade nesta narrativa, é antes a abordagem de um universo refratário a igualdade, até mesmo a absoluta.

Entre o sujeito e ele mesmo, o temor e a desilusão apontados por Max Horkeheimer, declaram a desumanização em Dicke, combatida por meio da discordância em aceitar-se como fiel da balança; sujeitar-se a cumprir um propósito, servir a uma finalidade. Vemos o homem em declínio quando um personagem se recusa a ouvir seu interlocutor, fazer valer apenas seu pensamento, prevalecer-se sobre o outro, correspondência de si. Na mesma proporção, o protagonista, vítima e algoz, se encontra num estado de inadequação para o que há de objetividade e se põe numa concepção de destino afinada com a discussão do que venha a ser verdade, bem como se essa verdade pode ser entendida comum aos demais personagens. Ressaltemos que o lado prático da deambulação de Último horizonte não é superestimado, quase serve somente à reflexão, ao pensamento ponderado dos seres ficcionais que olham no horizonte sem reservas.

De início, o que parecia simples coincidência, uma noite sem sono que levou a um pensamentar mais eloqüente, perfeitamente explicável e base de uma funcionalidade, sai de controle, sai do domínio das mãos dos personagens e aí não se discute o bem ou a perfeição universalizante. A boa imagem do sujeito é interrompida para alcance do homem. É o momento das contradições, do sentir-se a mais no mundo, ódios ressaltados e a dor da consciência da culpa por não ter agido de acordo com o que considerava uma verdade inquestionável: ser uma pessoa comum, portanto, única, insubstituível. O caráter de complexidade dessa longa noite, os embates com os conhecimentos acumulados, diz muito do homem obrigado a conviver, a abstrair-se na estranheza a fim de tentar independência criativa. Se retificarmos com o álibi da passividade daquele, teremos uma luta muito mais velada que concreta pela recusa em adaptar-se, pelo querer, mesmo de forma amena um pensamento independente. Toda a discussão do livro Eclipse da razão, auxilia a estudar a ficção de Ricardo Dicke por meio da vertente dúplice do que vem a ser resultado ou reflexão. Desejar um e rejeitar o outro aspecto, a fuga da idéia de ser instrumento hábil de uma totalidade é o que leva a pessoa a expor pontos de vista, deixar rastros de indignação e assim expressar a espontaneidade, coluna vertebral da emancipação do humano que a Literatura procura valorizar enquanto doadora e receptora de vida.

Segue do exposto que a perquirição é uma tendência geral permanente no universo literário do escritor de Mato Grosso. Preocupações como: “o que alcançar, a vida tinha algum fundamento oco branco, sem bronca, sem broto, sem nada?” da mesma forma surge o indagar na brancura da cal de Caieira (1978), homens que juntam sua escuridão interior com as reivindicações no trabalho insalubre por condições de vida mais dignas. Que fundamento é esse com o qual se inquieta o narrador de Último horizonte? Seria a falta, a intersecção o dimensionar da existência? São alguns dos emolumentos que o leitor pode adquirir desse livro cuja sensaboria com a explicações racionalizantes tem por mérito redirecionar.

Pautado por uma luminosidade ofuscante, o eu do romance identificado por Jerombal, tem pressa apenas em atingir a sensibilidade, anela extravasar os desejos dos sentidos entrepostos nas horas que se derramam, nos minutos desimportantes de um agora sem acaso nem conseqüência que entorpeça. Parado na biblioteca ou em Veneza ou mesmo na Alta Idade Média, o homem desse romance é o mesmo de todos os tempos e espaços que se lançam num desdobrar da própria importância. Aí é inevitável perguntas como, o que fazer de si? Nos escombros da memória, há salvação? Essa salvação seria em função de quê? De quem? Ricos de esquecimento; intermitências de caos e ordem, o narrador e a moça Kabira formam um duo que se complementa pelo pensamento, pelo corpo numa entrega embevecida de Literatura e Música. O trato com o mundo se dá nesse ninho de sossego, eles dividem aquela compreensão à verdade escondida no interior dos corações. Antes porém, é de sofrimento o chão necessário. É, numa noite, ter a experiência de muitas vidas com todas as fugas temporárias do corpo no horizonte que é derradeiro, mas é inaugural. Trata-se de uma noite, que alguns entendem como dia, entretanto, é o escuro propiciador de uma experienciação vizinha do mar, a liberdade e o sonho que forma, desforma o homem e o texto de Ricardo Dicke consegue abordar de maneira convincente. Sonho maior que o mundo? Desejo de glória, brilho fácil e acessível? Último horizonte se torna um convite de leitura às demais obras deste escritor que tem no manejo literário a facilidade da pergunta e a ansiedade da resposta.

Fonte:
http://www.literaturamt.com/Prosa-baixar/LITERATURAMT%20sobre%20Dicke.doc

Nenhum comentário: