O posicionamento assumido por José Saramago, no que diz respeito à intencionalidade do escritor e seu reflexo na obra literária, pode ser esclarecido pela concepção de engajamento do Sartre dos anos 40:
"...ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la; desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá-la; atinjo-a em pleno coração, traspasso-a e fixo-a sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapasso na direção do porvir. Assim, o prosador é um homem que escolheu determinado modo de ação secundária, que se poderia chamar de ação por desvendamento. É legítimo, pois, propor-lhe esta segunda questão: que aspecto do mundo você quer desvendar, que mudanças quer trazer ao mundo por esse desvendamento? O escritor ´engajado´ sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar (SARTRE, 1993: 20).
Esta busca do desvelamento de fatos e relações é o que constitui o essencial da postura do escritor-cidadão José Saramago e do seu "olhar pedagógico", que quer ver, desvendar e ensinar a ver através da comunicação intersubjetiva com os leitores. Como escreveu Proust "uma verdadeira viagem de descobrimento não é encontrar novas terras, mas ter um olhar novo" (citado por MORIN, 2000: 107).
O olhar e o desvendamento são dois aspectos que se complementam no ideário estético do educador Saramago. E é Sartre quem oferece um parâmetro para interpretarmos o "projeto" pedagógico implícito na expressão literária de José Saramago:
"...podemos concluir que o escritor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade... a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele." (SARTRE, 1993: 21)
Da leitura dos escritos e das inúmeras entrevistas concedidas por Saramago, infere-se que o escritor avalia que as representações elaboradas pelos seres humanos sobre as suas relações sociais podem tolerar um cotidiano onde se reproduzem as situações de opressão e de exploração. Sua obra, portanto, se constituirá em uma pesquisa sobre a realidade material da sociedade e sobre o poder das representações elaboradas pelos seus membros. Qual o limite desse poder? O que dissimulam e escondem? Como resistir às representações que fascinam ou que estão impregnadas nos nossos valores? Como discernir as representações que permitem a busca do possível das representações que bloqueiam essa busca? Seu olhar pretenderá perceber aquilo que os outros podem estar vendo, mas não estão enxergando, e sua escrita revelará sua intenção pedagógica. O seu olhar artístico consegue atravessar essas representações, e através da escrita ele evidenciará o seu conteúdo anti-humano, para que os homens tomem posição para superá-las, pois, na sua concepção, o escritor deve ter o compromisso de intervir na sociedade, e já que trabalha no universo da produção simbólica, deve utilizar sua paciência, seu talento e disponibilidade para contribuir para a "reorganização axiológica" das civilizações contemporâneas. Sua prosa, portanto, chega a ser utilitária, e, para alcançar seus objetivos, o escritor utiliza-se de inúmeros recursos expressivos:
"designa, demonstra, ordena, recusa, interpela, suplica, insulta, persuade, insinua" (SARTRE, 1993: 18).
A noção de "olhar", esclarecida por Alfredo Bosi (1999: 10), expressa "a visão do autor, o ponto de vista ou, mais tecnicamente, ... o foco narrativo". No entendimento de Bosi olhar tem sobre a noção de ponto de vista a "vantagem de ser móvel"..., ora abrangente, ora incisivo. O olhar é ao mesmo tempo cognitivo, e ao mesmo tempo passional:
"Quem diz olhar diz, implicitamente, tanto inteligência quanto sentimento" (BOSI, 1999: 10). Ainda, segundo Bosi, os "...valores culturais e estilos de pensar configuram a visão do mundo do romancista, e esta pode ora coincidir com a ideologia dominante no seu meio, ora afastar-se dela e julgá-la. Objeto do olhar e modo de ver são fenômenos de qualidade diversa; é o segundo que dá forma e sentido ao primeiro" (BOSI, 1999: 12).
Em um outro trabalho, ao explicar as vertentes do pensamento antigo sobre o olhar, Bosi nos ensina que
"...o olho, fronteira móvel e aberta entre o mundo externo e o sujeito, tanto recebe estímulos luminosos (logo, pode ver, ainda que involuntariamente) quanto se move à procura de alguma coisa, que o sujeito irá distinguir, conhecer ou reconhecer, recortar do contínuo das imagens, medir, definir, caracterizar, interpretar, em suma, pensar" (BOSI, 1988: 66).
Saramago frequentemente recorre à noção de olhar e suas inúmeras possibilidades para construir raciocínios reflexivos, metafóricos e alegóricos. No romance Jangada de pedra a percepção do olhar é relativa ao observador, é assim que a personagem Pedro Orce o concebe ao imaginar em uma pedra as formas de uma embarcação, afinal
"... cada um de nós vê o mundo com os olhos que tem, e os olhos vêem o que querem, os olhos fazem a diversidade do mundo e fabricam as maravilhas, ainda que sejam de pedra, e altas proas, ainda que sejam de ilusão" (JP: 207).
No Memorial do convento, na interpretação das professoras Isabel Vaz e Maria do Carmo Castelo-Branco (LEÃO e CASTELO-BRANCO, 1999: 114),"... ver é signo exegético de toda a obra, talvez, metaforicamente, configurado na personagem Blimunda, mas funcionando como apelo a uma visão outra, que é a do homem que tem como missão decifrar os enigmas do passado para, e através deles, superar os que o presente lhe impõe. Ver é, assim, opinar, teorizar, discutir para, enfim, argumentando, ajuizar e passar o testemunho, tal como o faz Blimunda quando vê arder o "seu homem" na fogueira e lhe diz: "Vem" (p. 359), assegurando, deste modo, o projeto de continuidade". Os olhos de Blimunda, descritos pelo narrador como "...claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra..." (MC: 53), têm a capacidade de enxergar além das aparências, ver por dentro o conteúdo, a substância interior da matéria e dos corpos.
No romance História do cerco de Lisboa, Saramago volta a discorrer sobre as nuanças e sutilezas do olhar:
"Olhar, ver e reparar são maneiras distintas de usar o órgão da vista, cada qual com a sua intensidade própria, até nas degenerações, por exemplo, olhar sem ver, quando uma pessoa se encontra ensimesmada, situação comum nos antigos romances, ou ver e não dar por isso, se os olhos por cansaço ou fastio se defendem de sobrecargas incômodas. Só o reparar pode chegar a ser visão plena, quando num ponto determinado ou sucessivamente a atenção se concentra, o que tanto sucederá por efeito duma deliberação da vontade quanto por uma espécie de estado sinestésico involuntário em que o visto solicita ser visto novamente, assim se passando de uma sensação a outra, retendo, arrastando o olhar, como se a imagem tivesse de produzir-se em dois lugares distintos do cérebro com diferença temporal de um centésimo de segundo, primeiro o sinal simplificado, depois o desenho rigoroso, a definição nítida..." (HCL: 166)
Ao mencionarmos um olhar saramaguiano, em síntese, estamos tratando de representações que aparecem na narrativa, tanto através das vozes das personagens, quanto nas digressões do narrador. Horácio Costa incorpora e assim sintetiza a importância do olhar na obra de José Saramago:
"Todo o esforço crítico se vincula à visão; qualquer objecto, para ser analisado com propriedade, deve antes ser visto. Trazer à luz da razão crítica, tornar visível - ou mais visível, se for o caso - algo oculto ou semioculto, ou previamente empanado por outros corpos ou circunstâncias invisibilizadoras é algo indissolúvel do impulso que leva à interpretação, à análise." (COSTA, 1997: 362)
*************
Sobre o Autor
WALTER LÚCIO DE ALENCAR PRAXEDES
possui graduação em Licenciatura Em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1990) , graduação em Bacharel Em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1990) , mestrado em Educação pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (2001) . Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Estadual de Maringá. Tem experiência na área de Educação , com ênfase em Fundamentos da Educação. Atuando principalmente nos seguintes temas: Educação, Literatura, José Saramago, Sociologia da Literatura. Co-autor de O Mercosul e a sociedade global (São Paulo, Ática, 1998) e Dom Hélder Câmara: Entre o poder e a profecia, publicada no Brasil pela Editora Ática (1997) e na Itália pela Editrice Queriniana (1999)
Fonte:
Revista Espaço Acadêmico - Ano I - nr. 7. Dezembro 2001.
http://www.espacoacademico.com.br/
"...ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la; desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá-la; atinjo-a em pleno coração, traspasso-a e fixo-a sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapasso na direção do porvir. Assim, o prosador é um homem que escolheu determinado modo de ação secundária, que se poderia chamar de ação por desvendamento. É legítimo, pois, propor-lhe esta segunda questão: que aspecto do mundo você quer desvendar, que mudanças quer trazer ao mundo por esse desvendamento? O escritor ´engajado´ sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar (SARTRE, 1993: 20).
Esta busca do desvelamento de fatos e relações é o que constitui o essencial da postura do escritor-cidadão José Saramago e do seu "olhar pedagógico", que quer ver, desvendar e ensinar a ver através da comunicação intersubjetiva com os leitores. Como escreveu Proust "uma verdadeira viagem de descobrimento não é encontrar novas terras, mas ter um olhar novo" (citado por MORIN, 2000: 107).
O olhar e o desvendamento são dois aspectos que se complementam no ideário estético do educador Saramago. E é Sartre quem oferece um parâmetro para interpretarmos o "projeto" pedagógico implícito na expressão literária de José Saramago:
"...podemos concluir que o escritor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade... a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele." (SARTRE, 1993: 21)
Da leitura dos escritos e das inúmeras entrevistas concedidas por Saramago, infere-se que o escritor avalia que as representações elaboradas pelos seres humanos sobre as suas relações sociais podem tolerar um cotidiano onde se reproduzem as situações de opressão e de exploração. Sua obra, portanto, se constituirá em uma pesquisa sobre a realidade material da sociedade e sobre o poder das representações elaboradas pelos seus membros. Qual o limite desse poder? O que dissimulam e escondem? Como resistir às representações que fascinam ou que estão impregnadas nos nossos valores? Como discernir as representações que permitem a busca do possível das representações que bloqueiam essa busca? Seu olhar pretenderá perceber aquilo que os outros podem estar vendo, mas não estão enxergando, e sua escrita revelará sua intenção pedagógica. O seu olhar artístico consegue atravessar essas representações, e através da escrita ele evidenciará o seu conteúdo anti-humano, para que os homens tomem posição para superá-las, pois, na sua concepção, o escritor deve ter o compromisso de intervir na sociedade, e já que trabalha no universo da produção simbólica, deve utilizar sua paciência, seu talento e disponibilidade para contribuir para a "reorganização axiológica" das civilizações contemporâneas. Sua prosa, portanto, chega a ser utilitária, e, para alcançar seus objetivos, o escritor utiliza-se de inúmeros recursos expressivos:
"designa, demonstra, ordena, recusa, interpela, suplica, insulta, persuade, insinua" (SARTRE, 1993: 18).
A noção de "olhar", esclarecida por Alfredo Bosi (1999: 10), expressa "a visão do autor, o ponto de vista ou, mais tecnicamente, ... o foco narrativo". No entendimento de Bosi olhar tem sobre a noção de ponto de vista a "vantagem de ser móvel"..., ora abrangente, ora incisivo. O olhar é ao mesmo tempo cognitivo, e ao mesmo tempo passional:
"Quem diz olhar diz, implicitamente, tanto inteligência quanto sentimento" (BOSI, 1999: 10). Ainda, segundo Bosi, os "...valores culturais e estilos de pensar configuram a visão do mundo do romancista, e esta pode ora coincidir com a ideologia dominante no seu meio, ora afastar-se dela e julgá-la. Objeto do olhar e modo de ver são fenômenos de qualidade diversa; é o segundo que dá forma e sentido ao primeiro" (BOSI, 1999: 12).
Em um outro trabalho, ao explicar as vertentes do pensamento antigo sobre o olhar, Bosi nos ensina que
"...o olho, fronteira móvel e aberta entre o mundo externo e o sujeito, tanto recebe estímulos luminosos (logo, pode ver, ainda que involuntariamente) quanto se move à procura de alguma coisa, que o sujeito irá distinguir, conhecer ou reconhecer, recortar do contínuo das imagens, medir, definir, caracterizar, interpretar, em suma, pensar" (BOSI, 1988: 66).
Saramago frequentemente recorre à noção de olhar e suas inúmeras possibilidades para construir raciocínios reflexivos, metafóricos e alegóricos. No romance Jangada de pedra a percepção do olhar é relativa ao observador, é assim que a personagem Pedro Orce o concebe ao imaginar em uma pedra as formas de uma embarcação, afinal
"... cada um de nós vê o mundo com os olhos que tem, e os olhos vêem o que querem, os olhos fazem a diversidade do mundo e fabricam as maravilhas, ainda que sejam de pedra, e altas proas, ainda que sejam de ilusão" (JP: 207).
No Memorial do convento, na interpretação das professoras Isabel Vaz e Maria do Carmo Castelo-Branco (LEÃO e CASTELO-BRANCO, 1999: 114),"... ver é signo exegético de toda a obra, talvez, metaforicamente, configurado na personagem Blimunda, mas funcionando como apelo a uma visão outra, que é a do homem que tem como missão decifrar os enigmas do passado para, e através deles, superar os que o presente lhe impõe. Ver é, assim, opinar, teorizar, discutir para, enfim, argumentando, ajuizar e passar o testemunho, tal como o faz Blimunda quando vê arder o "seu homem" na fogueira e lhe diz: "Vem" (p. 359), assegurando, deste modo, o projeto de continuidade". Os olhos de Blimunda, descritos pelo narrador como "...claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra..." (MC: 53), têm a capacidade de enxergar além das aparências, ver por dentro o conteúdo, a substância interior da matéria e dos corpos.
No romance História do cerco de Lisboa, Saramago volta a discorrer sobre as nuanças e sutilezas do olhar:
"Olhar, ver e reparar são maneiras distintas de usar o órgão da vista, cada qual com a sua intensidade própria, até nas degenerações, por exemplo, olhar sem ver, quando uma pessoa se encontra ensimesmada, situação comum nos antigos romances, ou ver e não dar por isso, se os olhos por cansaço ou fastio se defendem de sobrecargas incômodas. Só o reparar pode chegar a ser visão plena, quando num ponto determinado ou sucessivamente a atenção se concentra, o que tanto sucederá por efeito duma deliberação da vontade quanto por uma espécie de estado sinestésico involuntário em que o visto solicita ser visto novamente, assim se passando de uma sensação a outra, retendo, arrastando o olhar, como se a imagem tivesse de produzir-se em dois lugares distintos do cérebro com diferença temporal de um centésimo de segundo, primeiro o sinal simplificado, depois o desenho rigoroso, a definição nítida..." (HCL: 166)
Ao mencionarmos um olhar saramaguiano, em síntese, estamos tratando de representações que aparecem na narrativa, tanto através das vozes das personagens, quanto nas digressões do narrador. Horácio Costa incorpora e assim sintetiza a importância do olhar na obra de José Saramago:
"Todo o esforço crítico se vincula à visão; qualquer objecto, para ser analisado com propriedade, deve antes ser visto. Trazer à luz da razão crítica, tornar visível - ou mais visível, se for o caso - algo oculto ou semioculto, ou previamente empanado por outros corpos ou circunstâncias invisibilizadoras é algo indissolúvel do impulso que leva à interpretação, à análise." (COSTA, 1997: 362)
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Sobre o Autor
WALTER LÚCIO DE ALENCAR PRAXEDES
possui graduação em Licenciatura Em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1990) , graduação em Bacharel Em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1990) , mestrado em Educação pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (2001) . Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Estadual de Maringá. Tem experiência na área de Educação , com ênfase em Fundamentos da Educação. Atuando principalmente nos seguintes temas: Educação, Literatura, José Saramago, Sociologia da Literatura. Co-autor de O Mercosul e a sociedade global (São Paulo, Ática, 1998) e Dom Hélder Câmara: Entre o poder e a profecia, publicada no Brasil pela Editora Ática (1997) e na Itália pela Editrice Queriniana (1999)
Fonte:
Revista Espaço Acadêmico - Ano I - nr. 7. Dezembro 2001.
http://www.espacoacademico.com.br/
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