sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 25 de novembro de 1855: A Flor


(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Falemos das flores.

O que é uma flor?

Será esta criação vegetal que na primavera se abre do botão de uma planta?

Não: a flor é o tipo da perfeição, é a mais sublime expressão da beleza, é um sorriso cristalizado, é um raio de luz perfumado.

Por isso há muitas espécies de flor.

Há as flores do céu – as estrelas, - que brilham à noite no seu manto azul, como os olhos de uma linda pensativa. 

Há as flores do ar – as borboletas, - que têm nas suas asas ligeiras as mais belas cores do prisma.

Há as flores da terra – as mulheres, - rosas perfumadas que ocultam entre as folhas os seus espinhos.

Há as flores dos lábios – os sorrisos, lindas boninas que o menor sopro desfolha.

Há as flores do mar – as pérolas, - filhas do oceano que saem do seio das ondas para se aninharem no seio de uma mulher morena.

Há as flores da poesia – os versos, - às vezes tão cheios de perfumes e de sentimentos como a mais bela flor da primavera.

Há as flores da religião – as preces, - modestas violetas que perfumam a sombra e o retiro.

Há as flores da harmonia – os gorjeios – que brincam nos lábios mimosos de uma bonequinha sedutora.

Há as flores do espírito – os ziguezagues, - que nascem sobre o papel como rosas silvestres e sem cultura.

(Não falo dos nossos ziguezagues, que, quando muito, são flores murchas).

Há enfim uma espécie de flor que é tão rara como a tulipa negra de Alexandre Dumas, como o cravo azul de Jean-Jacques, como o crisântemo azul de George Sand.

É a flor da vida, este sonho dourado, este puro ideal a que todos aspiram e de que tão poucos gozam.

Porque a flor da vida apenas vive um dia, como as rosas da manhã que a brisa da tarde desfolha.

E quando murcha, deixa dentro d’alma os seus perfumes, que são essas recordações queridas que nos sorriem ainda nos últimos tempos da existência.

Para uns a flor da vida nasce nos lábios de uma mulher; para outros no seio de um amigo.

Feliz do caminhante que à beira do bosque por onde passa colhe esta florzinha azul, espécie de urze cingida de uma coroa de espinhos.

Muitas vezes, depois de muitas fadigas, quando já tem as mãos feridas dos espinhos, e que vai colher a flor, ela se desfolha.

O vento soprou sobre ela, ou um verme roeu-lhe os estames.

Até aqui os meus leitores têm visto o mundo pelo prisma de uma flor; mas não se devem iludir com isso.

Algum velho político de cabelos brancos lhes dirá que isto são simples devaneios de uma imaginação exaltada.

A flor é a poesia, mas o fruto é a realidade, é a única verdade da vida. 

Enquanto pois os poetas vivem à busca de flores, os homens sérios e graves, os homens práticos só tratam de colher os frutos.

Eles vêem desabrochar as flores, exalar os seus perfumes, e esperam como o hortelão que chegue o outono e com ele o tempo da colheita.

E na verdade, a flor encerra sempre o germe de um fruto, de um pomo dourado, que outrora perdeu o homem, mas que é hoje a sua salvação.

A explicação disto me levaria muito longe, se eu não me lembrasse que até agora ainda não escrevi uma linha de revista, e ainda não dei aos meus leitores uma notícia curiosa.

Mas, a falar a verdade, não me agrada este papel de noticiador de coisas velhas, que o meu leitor todos os dias vê reproduzidas nos quatro jornais da corte, em primeira, segunda e terceira edição.

Poderia dizer-lhe que depois da epidemia vai-se revelando uma outra epidemia de divertimentos, realmente assustadora.

Fala-se em clube artístico, em baile mascarado no teatro lírico, em passeios de máscaras pelas ruas, numa companhia francesa de vaudevilles, e em mil outras coisas que tornarão esta bela cidade do Rio de Janeiro um verdadeiro paraíso.

Neste tempo é que os folhetinistas baterão as asas de contentes, e não terão trabalho de escrever tiras de papel; preferirão ir ao baile, ao passeio, ao teatro, colher as flores de que  hão de formar o seu bouquet de domingo.

Enquanto porém não chega esta bela quadra, essa primavera dos salões, esse abril florido da nossa sociedade, não há remédio senão contentarmo-nos com o que temos, e em vez de rosas, apresentar ao leitor as folhas secas do ano.

A respeito de teatro, não falemos; é uma casa em cujo pórtico (digo pórtico figuradamente) a prudência parece ter gravado a inscrição de Dante: - Guarda e passa.

Se desprezais o aviso e entrais, daí a pouco tereis razão de arrepender-vos.

Sentai-vos em uma cadeira qualquer: a vossa direita está um guísta; a vossa esquerda um chartonista.

Levanta-se o pano: representa-se a Norma ou a Fidenzata Corsa; canta uma das duas prima-donas, uma das duas prediletas do público. 

- Bravo! grita o gruísta entusiasmado.

- Que exageração! diz o chartonista estirando o beiço.

- Divino!

- Oh! é demais!

- Sublime!

- Insuportável!

E assim neste crescendo continuam os dois dilettanti, de maneira que o vosso ouvido direito está sempre em completa oposição com o vosso ouvido esquerdo.

Cai o pano.

No intervalo conversai um pouco com os vossos vizinhos.

- É preciso ser completamente ignorante, diz o gruísta com o aplomb de um maestro, para não se apreciar a sublimidade do talento desta mulher!

Vós, meu leitor, que não quereis assinar um termo de ignorante, não tendes remédio senão confessar-vos gruísta, e em lugar de dois pontos de admiração dais três.

- Com efeito, é uma artista exímia!!!

Apenas acabais a palavra, quando o chartonista vos interroga do outro lado.

- É possível que um homem de gosto e de sentimento admita semelhantes exagerações?

Ficais embatucado; mas, se não quereis passar por homem de mau gosto, deveis imediatamente responder:

- Com efeito, não é natural.

Daí a um momento o vosso vizinho da direita retruca:

- Veja, todos os camarotes da 4ª ordem estão vazios.

- É verdade!

Torna o vizinho esquerdo:

- Com esta chuva, que casa, hem!

- Boa!

Agora acrescentai a isto as desafinações do Dufrene, a rouquidão do Gentile, os cochilos do contra-regra, e fazei idéia do divertimento de uma noite de teatro.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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