Muitos são os contistas e poetas que mantinham engavetados (ou, melhor dizendo, arquivados em computador) seus escritos e, estimulados por leitores de sites e blogs (também escritores em potencial), resolveram publicar o primeiro livro. Alguns não vêm de muitas leituras, de muitos exercícios de escrita, ou leram e leem, apressadamente, tudo o que lhes aparece diante dos olhos, desde piadinhas e os chamados “contos eróticos” até clássicos da literatura universal. Leituras açodadas, sem anotações, sem consulta a dicionários, etc. A maioria desses novos escritores segue uma linha, um roteiro, uma estrada larga e longa, certos de que lhes espera a fama, a glória. Não conhecem as veredas, os atalhos, as pedras no meio do caminho, os córregos escondidos na mata. Muito menos os subterrâneos e os céus. Vão em procissão ou atrás do trio elétrico. Todos juntos, unidos, de mãos dadas. Seguem o padre, o pastor, o caminhão do som. Cantam o mesmo refrão. Estão na folia de reis ou na folia do carnaval. São foliões.
Poucos desses contistas e poetas novos vêm da leitura dos contos de fadas, dos poetas românticos, parnasianos e simbolistas, dos romancistas russos e franceses do século XIX, dos rabiscos na adolescência, dos primeiros versos na juventude, dos arremedos de contos e romances ao tempo da escola e da faculdade. Poucos se vão fazendo escritores. Sabem que não nascemos feitos, prontos. Muito menos que esse “estar pronto” (ou quase pronto) não se dá num passe de mágica. Assim parece ser Valéria Eik.
Suas narrativas apresentadas neste volume de estreia são de linguagem simples, coloquial, de roupagem comum. Obedecem a estética da história linear, sem volteios, sem malabarismos, sem lacunas. “A grande paixão” é ambientada no campo. Embora não haja referência a nomes de lugares, sabe o leitor que o drama se passa no Sul do país: o frio, o gelo, a geada. Apenas duas pessoas: José e Maria, um casal de velhos. E um drama: a geada, a morte do cafezal, e, por consequência, a morte do homem. “Fogos fátuos” segue a mesma linha, com um quê de romantismo: as perdas, a solidão, a morte. Nele o tempo é dilatado ou se reparte em várias unidades.
Há ainda os chamados contos de costumes, como “Se é semente, vai germinar”, em que o tema da violência doméstica é ressaltado.
Outras obras se abeiram da crônica ou do poema em prosa. Em “Travessia” o protagonista é um velho cão a atravessar uma rua. Narrativa urbana: avenidas, trânsito de carros, pressa. “Estrelas mortas” é poético em sua trama esgarçada. “Por breves instantes” igualmente se assemelha a poema. “Memórias” mostra o conflito interior da protagonista Ana, a debater-se com as lembranças de uma caçada de gato a passarinho, numa noite remota, talvez da infância. “O nascimento de mais um cronópio” é também diferente, isto é, foge aos modelos do conto tradicional, da história com enredo. Homenagem a Cortázar, numa peça ficcional parabólica, metafórica, de seres fictícios etéreos.
Há ainda aqueles constituídos de uma só fala, como se vê em “Afasta de mim este cálice” e “Almas”. Apenas uma lamentação, um monólogo, sem enredo, sem trama.
Valéria Eik demonstra nítida preocupação com os problemas sociais e, assim, se esmera na elaboração da chamada narrativa de costumes, tão cara aos realistas. “Funeral de primeira” é um retrato dessas cenas domésticas ou de família, como a morte e o enterro do velho patriarca avarento. Em “O fruto indigesto” o tema é o da gravidez indesejada, seguida de aborto. “Prosperidade” narra costumes do interior, das pequenas cidades, com seus personagens típicos: o padre (a hipocrisia), o político, etc. Em “Quebrando a rotina”, outra história de personagem, se revela a avareza de Gastão (nome famoso de programa cômico da televisão) e o sofrimento de Elisa, sua mulher. “Um menino chamado Jesus” trás à tona a questão do machismo. Vida dura de carroceiro, no campo. Diversos segmentos temporais e episódios em cadeia. “Uma versão da verdade” tem por assunto o estupro seguido de morte. A estrutura da narrativa lembra os moldes dos românticos, de um lado, e dos realistas/naturalistas, de outro.
A solidão, a velhice e a morte são, pois, assuntos caros a Valéria. Em “Sentença irrevogável” a morte é tratada de maneira natural. Assim como a fragilidade humana, a finidade: o paletó elegante do morto, o caixão, o fim. Pode ser lido também como história de horror: ser enterrado vivo. “Aconchego”, constituído de diversas unidades de tempo, conta a vida de um velho. Não apenas a vida, mas a solidão da velhice. O abandono em vida pelos filhos e pela mulher. Essa tendência para dilatar o tempo da ação se mostra ainda em outras peças, como em “Moleca”, desenvolvida em tempo histórico longo. A moleca Antônia, desde menina até a morte, na velhice, e seu marido Justo. Diversos dramas menores, em cadeia, como num romance. Essa semelhança com a estrutura do gênero literário preferido de Balzac aparece ainda em “O pó da terra”.
Mas nem só de solidão e morte vivem as pessoas fictícias de Valéria Eik. O amor está presente em muitas de suas narrativas. O singelo “Entardecer” nos remete à vida de pescador. “Notícias” apresenta cena doméstica: mulher sozinha, um carteiro que se anuncia, uma carta, as lembranças de um amor perdido. Trama ingênua, em que o conflito interno se instala de repente. Ao leitor cabe completar o drama: Quem seria o outro? Que história teriam vivido ele e a mulher solitária? Em “O circo” o amor é dos tempos de criança. Um circo se assenta numa cidadezinha. Uma menina se apaixona pelo galã. Como se espera, vem a decepção da garota, ao ver o circo ir embora. E, finalmente, “Por amor”, a melhor peça do volume, pela densidade, pela aspereza do narrador, pela beleza que emana da própria narração. Conto urbano, social – pungente e cruel, como a vida.
Valéria Eik certamente não espera fama e glória. Resta-lhe seguir pelos múltiplos caminhos da literatura, livrando-se da comodidade da reta e buscando os atalhos, que são inúmeros.
Fortaleza, abril de 2007.
Fontes:
http://www.niltomaciel.net.br/node/1222
Foto: Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá
Nenhum comentário:
Postar um comentário