quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 8

Corri à varanda. Em baixo era um tropel desesperado em torno dos carros derrubados: os machados reluziam caindo sobre a tampa dos caixotes: o coiro das malas abria-se fendido à faca por mãos inumeráveis: no alpendre, os cossacos debatiam-se, aos urros, sob o cutelo. Apesar da lua, eu via em roda do barracão errarem tochas, numa dispersão de fagulhas: um alarido rouco elevava-se, fazendo ao longe uivar os cães; e de todas as vielas desembocava, corria populaça, sombras ligeiras, agitando chuços e foices recurvas...

Subitamente, na loja térrea, ouvi o tumulto da turba que a invadia pelas portas despedaçadas: decerto me procuravam, supondo que eu teria comigo o melhor do tesouro, pedras preciosas ou oiros... O terror desvairou-me. Corri a uma grade de bambus para o lado do pátio. Demoli-a, saltei sobre uma camada de mato grosso, num cheiro acre de imundícies. O meu pónei, preso a uma trave, relinchava, puxando furiosamente o cabresto: arremessei-me sobre ele, empolguei-lhe as crinas...

Nesse momento, do portão da cozinha arrombada rompia uma horda com lanternas, lanças, num clamor de delírio. O pónei, espantado, salta um regueiro; uma flecha silva a meu lado; depois um tijolo bate-me no ombro, outro nos rins, outro na anca do pónei, outro mais grosso rasga-me a orelha! Agarrado desesperadamente às crinas, arquejando, com a língua de fora, o sangue a gotejar da orelha, vou despedido numa desfilada furiosa ao longo de uma rua negra... De repente vejo diante de mim a muralha, um bastião, a porta da vila fechada!

Então, alucinado, sentindo atrás rugir a turba, abandonado de todo o socorro humano – precisei de Deus! Acreditei n'Ele, gritei-Lhe que me salvasse; e o meu espírito ia tumultuosamente arrebatando, para lhe oferecer, fragmentos de orações, de salve-rainhas, que ainda me jaziam no fundo da memória... Voltei-me sobre a anca do potro: de uma esquina ao longe surgiu um fogacho de tochas: era a corja!... Larguei de golpe ao comprido da alta muralha que corria ao meu lado como uma vasta fita negra furiosamente desenrolada: de súbito avisto uma brecha, um boqueirão eriçado de esgalhos de sarças, e fora a planície que sob a lua parecia como uma vasta água dormente! Lancei-me para lá, desesperadamente, sacudido aos galões do potro... E muito tempo galopei no descampado.

De repente o pónei, eu, rolámos com um baque surdo. Era uma lagoa Entrou-me pela boca água pútrida, e os pés enlaçaram-se-me nas raízes moles dos nenúfares... Quando me ergui, me firmei no solo, – vi o pónei, correndo, muito longe, como uma sombra, com os estribos ao vento...

Então comecei a caminhar por aquela solidão, enterrando-me nas terras lodosas, cortando através do mato espinhoso. O sangue da orelha ia-me pingando sobre o ombro; à frialdade agreste, o fato encharcado regelava-se-me sobre a pele: e por vezes, na sombra, parecia-me ver luzir olhos de feras.

Enfim, encontrei um recinto de pedras soltas onde jazia, sob um arbusto negro, um daqueles montões de esquifes amarelos que os chineses abandonam nos campos, e onde apodrecem corpos. Abati-me sobre um caixão, prostrado: mas um cheiro abominável pesava no ar: e ao apoiar-me senti o viscoso de um líquido que escorria pelas fendas das tábuas... Quis fugir. Mas os joelhos negavam-se, tremiam-me: e árvores, rochas, ervas altas, todo o horizonte começou a girar em torno de mim como um disco muito rápido. Faíscas sanguíneas vibravam-me diante dos olhos: e senti-me como caindo de muito alto, devagar, à maneira de uma pena que desce...

Quando recuperei a consciência estava estirado num banco de pedra, no pátio de um vasto edifício semelhante a um convento, que um alto silêncio envolvia. Dois padres lazaristas lavavam-me devagar a orelha. Um ar fresco circulava; a roldana de um poço rangia lentamente; um sino tocava a matinas: Ergui os olhos, avistei uma fachada branca com janelinhas gradeadas e uma cruz no topo: então, vendo naquela paz de claustro católico como um recanto da pátria recuperada, o abrigo e a consolação, rolaram-me das pálpebras duas lágrimas mudas.

VII

De madrugada, dois padres lazaristas, dirigindo-se a Tien-Hó, tinham-me encontrado desmaiado no caminho. E, como disse o alegre padre Loriot, «era já tempo»; porque em redor do meu corpo imóvel, um negro semicírculo desses grossos e soturnos corvos da Tartária, já me estava contemplando com gula...

Trouxeram-me sem demora para o convento numa padiola – e grande foi o regozijo da comunidade quando soube que eu era um latino, um cristão e um súbdito dos Reis Fidelíssimos. O convento forma ali o centro de um pequeno burgo católico, apinhado em torno da maciça residência como uma casaria de servos à base de um castelo feudal. Existe desde os primeiros missionários que percorreram a Manchúria. Porque nós estamos aqui nos confins da China: para além já é a Mongólia, a Terra das Ervas, imenso prado verde-escuro, lezírias sem fim, colorido aqui e além do vivo das flores silvestres...

Aí jaz a vasta planície dos nómadas. Da minha janela eu via negrejar os círculos de tendas cobertas de feltro ou de peles de carneiro; e por vezes assistia à partida de uma tribo, em filas de longas caravanas, levando os seus rebanhos para o oeste...

O superior lazarista era o excelente padre Giulio. A longa permanência entre as raças amarelas tornara-o quase um chinês: quando eu o encontrava no claustro com a sua túnica roxa, o rabicho longo, a barba venerável, agitando devagar um enorme leque – parecia-me algum sábio letrado mandarim comentando mentalmente, na paz de um templo, o Livro Sacro de Chu. Era um santo: mas o cheiro de alho que exalava – afastaria as almas mais doloridas e precisadas de consolação.

Conservo suave a memória dos dias ali passados! O meu quarto, caiado de branco, com uma cruz negra, tinha um recolhimento de cela. Acordava sempre ao toque de matinas. Em respeito aos velhos missionários, vinha ouvir a missa à capela: e enternecia-me, ali, tão longe da pátria católica, naquelas terras mongólicas, ver à clara luz da manhã a casula do padre, com a sua cruz bordada, curvando-se diante do altar, e sentir ciciar no fresco silêncio os Dominus vobiscum e os Cum spiritu tuo...

De tarde ia à escola, admirar os pequenos chineses declinando hora, horæ... E depois do refeitório, passeando no claustro, escutava histórias de longínquas missões, de viagens apostólicas ao País das Ervagens, as prisões suportadas, as marchas, os perigos, as crónicas heróicas da Fé...

Eu por mim não contei no convento as minhas aventuras fantásticas: dei-me como um touriste curioso, tomando apontamentos pelo universo. E esperando que a minha orelha cicatrizasse, abandonava-me, numa lassidão de alma, àquela paz de mosteiro...

Mas estava decidido a deixar bem depressa a China, esse império bárbaro que eu odiava agora prodigiosamente!

Quando me punha a pensar que viera desde os confins do Ocidente para trazer a uma província chinesa a abundância dos meus milhões, e que apenas lá chegara fora logo saqueado, apedrejado, frechado – enchia-me um rancor surdo, gastava horas agitando-me pelo quarto, a revolver coisas feras que tentaria para me vingar do Império do Meio!

Retirar-me com os meus milhões era a desforra mais prática, mais fácil! Demais, a minha ideia de ressuscitar artificialmente, para bem da China, a personalidade de Ti Chin-Fu, parecia-me agora absurda, de uma insensatez de sonho. Eu não compreendia a língua, nem os costumes, nem os ritos, nem as leis, nem os sábios daquela raça: que vinha pois fazer ali senão expor-me, pelo aparato da minha riqueza, aos assaltos de um povo que há quarenta e quatro séculos é pirata nos mares e traz as terras varridas de rapina?...

Além disso, Ti Chin-Fu e o seu papagaio continuavam invisíveis, remontados decerto ao Céu chinês dos Avós: e já o aplacamento do remorso visível diminuíra em mim singularmente o desejo da expiação...

Sem dúvida o velho letrado estava fatigado de deixar essas regiões inefáveis para se vir estirar pelos meus móveis. Vira os meus esforços, o meu desejo de ser útil à sua prole, à sua província, à sua raça – e, satisfeito, acomodara-se regaladamente para a sua sesta eterna. Eu nunca mais avistaria a sua pança amarela!...

E então mordia-me o apetite de me achar já tranquilo e livre, no pacífico gozo do meu oiro, ao Loreto ou no bulevar, sorvendo o mel às flores da Civilização...

Mas a viúva de Ti Chin-Fu, as mimosas senhoras da sua descendência, os netos pequeninos?... Iria eu deixá-los barbaramente, na fome e no frio, pelas vielas negras de Tien-Hó? Não. Esses não eram culpados das pedradas que me atirara a populaça. E eu, cristão, asilado num convento cristão, tendo à cabeceira da cama o Evangelho, cercado de existências que eram encarnações de Caridade – não podia partir do Império sem restituir àqueles que despojara a abundância, esse conforto honesto que recomenda o Clássico da Piedade Filial.

Então escrevi a Camilloff. Contava-lhe a minha abjecta fuga, sob as pedras da turba chinesa; o abrigo cristão que me dera a missão; o vivaz desejo de partir do Império do Meio. Pedia-lhe que remetesse ele à viúva de Ti Chin-Fu os milhões depositados por mim em casa do mercador Tsing-Fó, na Avenida de Chá-Cua, ao lado do arco triunfal de Tong, junto ao templo da deusa Kaonine.

O alegre padre Loriot, que ia a Pequim em missão, levou esta carta, que eu lacrara com o selo do convento – uma cruz saindo de um coração em chamas...

Os dias passaram. As primeiras neves alvejaram nas montanhas setentrionais da Manchúria: e eu ocupava-me a caçar a gazela pela Terra das Ervas... Horas enérgicas e fortemente vividas, as dessas manhãs, quando eu largava à desfilada, no grande ar agreste da planície, entre os monteadores mongólicos que, com um grito ululado e vibrante, batiam o matagal à lançada! Por vezes, uma gazela saltava: e, de orelha baixa, estirada e fina, partia no fio do vento... Soltávamos o falcão, que voava sobre ela, de asa serena, dando-lhe a espaços regulares, com toda a força do bico recurvo, uma picada viva no crânio. E íamo-la abater, por fim, à beira de alguma água morta, coberta de nenúfares... Então os cães negros da Tartária amontoavam-se-lhe sobre o ventre, e, com as patas no sangue, iam-lhe, a ponta de dente, desfiando devagar as entranhas...

Uma manhã o leigo da portaria avistou enfim o alegre padre Loriot, galgando à lufa-lufa pelo caminho íngreme do burgo, de volta de Pequim, com a sua mochila ao ombro e uma criancinha nos braços: tinha-a encontrado abandonada, nuazinha, morrendo à beira de um caminho: baptizara-a logo num regato com o nome de Bem-Achado: e ali a trazia, todo enternecido, arquejando de tanto que estugara o passo, para dar depressa à criaturinha esfomeada o bom leite da cabra do convento...

Depois de abraçar os religiosos, de enxugar as grossas bagas de suor, tirou da algibeira dos calções um envelope com o selo da águia russa:

– É isto que manda o papá Camilloff, amigo Teodoro. Ficou óptimo. E a senhora também... Tudo rijo.

Corri a um recanto do claustro a ler as duas folhas de prosa. Meu bom Camilloff, de calva severa e olho de mocho! Como ele aliava tão originalmente ao senso fino de um hábil de chancelaria as caturrices picarescas de diplomata bufo! A carta dizia assim:

Amigo, hóspede, e caríssimo Teodoro:

Às primeiras linhas da sua carta ficámos consternados! Mas logo as seguintes nos deram um grato alívio, por nos certificar que estava com esses santos padres da missão cristã.... Eu partia para o yamen imperial a fazer uma severa reclamação ao príncipe Tong, sobre o escândalo de Tien-Hó. Sua Excelência mostrou um júbilo desordenado! Porque, se lamenta como particular a ofensa, o roubo e as pedradas que o meu hóspede sofreu, como ministro do Império vê a a doce oportunidade de extorquir à vila de Tien-Hó, em multa, em castigo da injúria feita a um estrangeiro, a vantajosa soma de trezentos mil francos, ou, segundo os cálculos do nosso sagaz Meriskoff, cinquenta e quatro contos de réis na moeda do seu belo país! É, como disse Meriskoff, um excelente resultado para o Erário imperial, e fica assim a sua orelha copiosamente vingada ... Aqui, começam a picar os primeiros frios, e já estamos usando peles. O bom Meriskoff lá vai sofrendo do fígado, mas a dor não lhe altera o critério filosófico nem a sábia verbosidade... Tivemos um grande desgosto: o lindo cãozinho da boa Madame Tagarieff, a esposa do nosso amado secretário, o adorável «Tu-Tu», desapareceu na manhã de 15... Fiz, na polícia, instâncias urgentes: mas o «Tu-Tu» não nos foi restituído – e o sentimento é tanto maior, quanto é sabido que a populaça de Pequim aprecia extremamente esses cãezinhos, guisados em calda de açúcar... Deu-se aqui um facto abominável e de consequências funestas: a ministra de França, essa petulante Madame Grijon, esse «galho seco» (como diz o nosso Meriskoff), no último jantar da Legação, deu, em desprezo de todas as regras internacionais, o braço, o seu descarnado braço, e a sua direita à mesa a um simples adido inglês, Lord Gordon! Que me diz a isto? É crível? É racional? É destruir a ordem social! O braço, a direita, a um adido, um escocês cor de tijolo, de vidro entalado no olho, quando havia presentes todos os embaixadores, os ministros, e eu! Isto tem causado, no corpo diplomático, uma sensação inenarrável... Esperamos instruções dos nossos governos. Como diz Meriskoff, oscilando tristemente a cabeça – é grave... é muito grave! – O que prova (e ninguém o duvida) que Lord Gordon é o benjamim do «galho seco». Que podridão! Que lodo!... A generala não tem passado bem, desde a sua partida para a malfadada Tien-Hó; o doutor Pagloff não lhe percebe o mal; é uma languidez, um murchar, uma saudosa indolência que a conserva horas e horas imóvel sobre o sofá, no Pavilhão do Repouso Discreto, com o olhar vago e o lábio cheio de suspiros... Eu não me iludo: sei perfeitamente o que a mina: é a desgraçada doença de bexiga, que lhe veio das más águas, quando estivemos na Legação de Madrid... Seja feita a vontade do Senhor!... Ela pede-me para lhe mandar un petit bonjour, e deseja que o meu hóspede apenas chegue a Paris, se for a Paris, lhe remeta pela mala da Embaixada para São Petersburgo (daí virá a Pequim), duas dúzias de luvas de doze botões, número cinco e três quartos, da marca «Sol», dos Armazéns do Louvre; assim como os últimos romances de Zola, «Mademoiselle de Maupin», de Gautier; e uma caixa de frascos de «Opoponax»... Esquecia-me dizer-lhe que mudámos de padeiro: fornecemo-mos agora da padaria da Embaixada inglesa: deixámos a da Embaixada francesa, para não ter comunicações com o «galho seco»... Aí estão os inconvenientes de não termos aqui na Embaixada russa uma padaria – apesar de tantos relatórios, tantas reclamações que, sobre esse ponto, tenho feito para a Chancelaria de São Petersburgo! Eles sabem bem que em Pequim não há padarias, que cada legação tem a sua própria, como um elemento de instalação e de influência. Mas quê! Na corte imperial desatendem-se os mais sérios interesses da civilização russa!... Creio que é tudo o que há de novo em Pequim e nas legações. Meriskoff recomenda-se, e todos desta Embaixada; e também o condezinho Arthur, o Zizi da Legação espanhola, o «Focinho Caído», e o Lulu; enfim todos; eu mais que ninguém, que me assino com saudade e afeição

General Camilloff

P. S. – Enquanto à viúva e família de Ti Chin-Fu, houve um engano: o astrólogo do templo de Faqua equivocou-se na interpretação sideral: não é realmente em Tien-Hó que reside essa família... É no Sul da China, na província de Cantão. Mas também há uma família Ti Chin-Fu para além da Grande Muralha, quase na fronteira russa, no distrito de Kao-Li. A ambas morreu o chefe, a ambas assaltou a pobreza... Portanto, esperando novas ordens, não levantei os dinheiros da casa de Tsing-Fó. Esta recente informação mandou-ma hoje Sua Excelência o Príncipe Tong, com uma deliciosa compota de calombro... Devo anunciar-lhe que o nosso bom Sá-Tó aqui apareceu, de volta de Tien-Hó, com um beiço rachado e leves contusões no ombro, tendo apenas salvado da bagagem saqueada uma litografia de Nossa Senhora das Dores, que, pela inscrição a tinta, vejo que pertencera a sua respeitável mamã... Os meus valentes cossacos, esses, lá ficaram numa poça de sangue. Sua Excelência o Príncipe Tong condescende em mos pagar a dez mil francos cada um, das somas extorquidas À vila de Tien-Hó... Sá-Tó diz-me que se o meu hóspede, como é natural, recomeçar as suas viagens através do Império em busca dos Ti Chin-Fu – ele considerar-se-ia honrado e venturoso em o acompanhar, com uma fidelidade canina e uma docilidade cossaca...
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Continua…
Fonte:
http://leituradiaria.com

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