Antônio Martins de Araújo nasceu em São Luís do Maranhão, numa meia-morada situada na rua dos Afogados, esquina com a rua do Ribeirão, tendo em frente a Fonte do Ribeirão, no dia 1º de agosto de 1932. O escritor é Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, tendo se aposentado como professor de Língua Portuguesa por essa instituição. É considerado o maior expert, no Brasil, no que se refere à obra de Arthur Azevedo. Ocupa atualmente a presidência da Academia Brasileira de Filologia - ABF e é membro da Academia Maranhense de Letras - AML, trabalhando ainda como professor do Instituto de Língua Portuguesa do Liceu Literário Português. Entre suas principais obras é possível mencionar: Arthur Azevedo – a palavra e o riso, Noel Rosa – língua e estilo (em parceria com Castelar de Carvalho), A herança de João de Barros e outros estudos, Chão do Tempo, e O peito do Pelicano - ensaios maranhenses. Numa bela manhã do início de setembro deste ano, Antônio Martins de Araújo concedeu ao Guesa Errante a entrevista que publicamos abaixo. O intelectual maranhense mora no Rio de Janeiro.
Paulo Melo Sousa - Caro mestre Antônio Martins, quais as recordações mais antigas da sua infância, vividas em São Luís?
Antônio Martins de Araújo - Eu me lembro bem da casa na qual nasci, local em que meu pai manteve um comércio durante a segunda guerra mundial. Em 1938 ele abriu falência, eu tinha seis anos de idade, foi quando ele perdeu a Mercearia Gaúcha. Ele vendia a crédito para os garis da prefeitura de São Luís e, na época, sofreu um calote de 30 contos de réis. As compras dos garis eram descontadas dos salários deles, por intermédio de meu padrinho, um maçon chamado seu Cruz. Aí o governo mudou em 1938, e o substituto de seu Cruz, Agenor Vieira, não honrou os compromissos assumidos com a mercearia. Então, meu pai foi obrigado a vender tudo e fomos embora para Viana, terra natal do meu pai. Lá eu estudei no Colégio Municipal entre os seis e os sete anos de idade. Tenho muitas saudades do lago de Viana, das mocorocas e das enchentes. Dessa época tenho uma recordação magnífica, lembro de histórias que conto no meu livro “Menino do Ribeirão”, que ainda não publiquei, já que existem dois capítulos da obra nos quais relato as minhas primeiras experiências sexuais, e como as meninas ainda estão vivas, uma delas casada, o livro só será publicado trinta anos depois da minha morte (risos).
Em seguida, a sua família retornou a São Luís...
Sim, e aí eu estudei aqui no Colégio Justo Jansen, que funcionava num sobradão situado na rua da Cruz, esquina com a rua dos Afogados. Ali, tive uma experiência muito boa, pois estudava pela manhã e, na parte da tarde, quatro portas além da minha casa, tinha aula particular com a professora Maria de Lourdes Garrido. A ela devo a minha orientação para fazer o exame de admissão ao Colégio Marista, no qual fui aprovado de imediato, aos 11 anos de idade. Poucos anos depois, aos 15 anos, comecei a dar aulas de Português e História do Brasil na Escola Champagnat, uma espécie de escola supletiva, que funcionava à noite. No entanto, na minha formação, eu digo que a minha primeira universidade foi o Teatro Arthur Azevedo, o mundo recontado através da arte.
Como aconteceu esse seu contato com o teatro?
Entre os meus 5 anos e os 15 anos de idade, a minha madrinha, Edith Barbosa Pinto, mãe de criação da minha mãe, Edith Raposo Martins Araújo, era quem me levava ao teatro. Ela vendia cafezinho e mingau de milho aos atores e para alguns outros fregueses. Dessa forma, eu assisti de graça aos espetáculos de todas as companhias de teatro que passaram por São Luís de 1937 a 1947. Quando digo que a minha primeira formação superior aconteceu no Arthur Azevedo é porque ali tive o privilégio de assistir às apresentações de nomes magistrais do teatro, tais como a Companhia dos Estudantes de Coimbra, as operetas dos irmãos Vicente Celestino, peças com Pascoal Carlos Magno, Eva Tudor, Iracema de Alencar, Henriette Morineau, Lenita Bruno. Em homenagem a essa atriz, que, entre 1937 e 1947, brilhou intensamente por mais de uma vez no Teatro Arthur Azevedo, e me dedicava, eu menino ainda, um carinho muito especial, sugeri à minha mãe que pusesse o nome de Lenita à minha segunda irmã, o que foi feito. Foi na nossa principal casa de espetáculos que, sob o prisma da arte cênica, o universo à minha volta se revelou a mim.
Esse seu interesse pelo teatro continuou quando você foi morar no Rio de Janeiro...
É verdade. O ator Delorges Caminha, marido da atriz francesa Henriette Morineau, foi o meu primeiro diretor na Escola de Teatro Martins Pena. Tive também lá como meus diretores, entre outros, o brilhante ator José Wilker e o excelente bailarino Klaus Viana. As aulas de Impostação da Voz eu só ministrei duas ou três vezes, após fazer um curso intensivo, nos anos 60, com a professora cearense Glória Beutmuller, radicada no Rio, há muitos anos. Eu também lecionava sobre História do Espetáculo, mas, não recuava até 5 mil anos antes de Cristo quando, na ilha de Bali, praticamente nasceu o teatro. Ainda hoje os atores representam nessa ilha o espetáculo do embate entre o bem e o mal, e, quem faz o papel do demônio se deixa atravessar por uma espada e não sangra, já que o golpe desferido não atinge os órgãos vitais. Trata-se de uma cultura milenar, diante da qual devemos tirar o chapéu. Lá é que nasceu realmente o teatro. Isso pode não ter tido influência alguma sobre o teatro greco-romano, mas, é uma ilusão. Quando se diz que Monteiro Lobato foi um grande contador de estórias, isso é conversa fiada, já que ele recontou estórias que La Fontaine já contava. E aí quando se diz que La Fontaine era um grande contador de estórias, fábulas, isso também é conversa fiada, já que ele bebeu nas fábulas de Esopo...
Isso nos lembra a ideia do eterno retorno, de Nietzsche, e ainda de Jorge Luís Borges, na obra “História da Eternidade”; ali, num pequeno ensaio intitulado “A doutrina dos ciclos”, ele escreve que “num tempo infinito, o número de permutações possíveis deve ser alcançado, e o universo deverá se repetir”... Sim. E então poderíamos pensar que a cultura greco-romana é o berço da nossa cultura. Nesse particular específico do fabulário, a história nos ensina que a literatura europeia ocidental, grosso modo, possui origem nas estórias de animais encontradas nos livros sagrados hindus do Mahabharata e do Rig Veda, que são muito anteriores à cultura helênica. Assim também, quando se fala de gíria, muita gente pensa que é criação tupiniquim, quando, na verdade, foi a tribo dos bazigares oriundos, creio, que da Hungria, que a teria criado. Procurei mostrar como chegou até nós esse gosto pela gíria em meu ensaio “Arthur Azevedo: a Palavra e o Riso”, co-editado em 1988 pela prestigiosa Editora Perspectiva e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Então, nós temos que tirar o nosso chapéu para a lei de Lavoisier, que diz que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. O Chacrinha tinha uma paráfrase do Lavoisier: “na vida nada se perde, nada se cria, tudo se copia”...(risos!).
Mestre Martins, fale-nos sobre a sua inserção no movimento cultural maranhense de então...
Muito me agrada a sua pergunta. Nós nos reuníamos no Centro Cultural Gonçalves Dias, cujas sessões eram realizadas no Grêmio Lítero Recreativo Português, ali em frente à praça João Lisboa, aonde assisti a declamações de poesia de Ferreira Gullar, que hoje tem ódio ao seu livro de estréia, “Luta Corporal”. No entanto, acho que esse livro marca a trajetória ascensional do Gullar. Nós nos reuníamos também no Café do Chico, em frente à João Lisboa, situado na esquina da rua de Nazaré, de onde se defrontava a Livraria Moderna. Ali nós líamos os nossos poemas uns para os outros e, quando um dizia que era para se rasgar o texto, que estava uma merda, nós rasgávamos o poema na mesma hora, respeitávamos a opinião dos amigos, todos bem informados. Ali se encontrava o Sarney, o Tobias Pinheiro, o Gullar. Também havia encontros na galeria do Paiva, na Movelaria Guanabara, situada na rua do Sol. Nós, um pouco mais jovens, nos reuníamos na casa de Zé Mário Santos, grande orador, que ficava no Campo de Ourique, perto da praça Deodoro. Eu era liderança da “Agremiação Liberal Acadêmica - ALA” e ele era líder do “Movimento Nacionalista Acadêmico - MNA”, e nessa casa eu me reunia com Manoel Lopes, Clóvis Sena, que faleceu recentemente.
No entanto, os encontros sempre estavam ligados a questões culturais...
Sempre. Eu me lembro que nós tivemos a oportunidade de receber por lá a visita de Darcy Ribeiro e de um parente do famoso escritor Aldous Huxley, o antropólogo Francis Huxley, de procedência inglesa. Então, ele resolveu declamar um trecho de Shakespeare, que era muito onomatopaico. Na sua declamação, ele fazia ohhhhh, aliado a uns trejeitos meio estranhos e nós nos danamos a rir, foi um surto de riso vexaminoso (risos), que pegou muito mal. O rapaz estava querendo fazer uma homenagem a nós, declamando da melhor forma possível, mas, os trejeitos dele eram muito cômicos (risos). Um dia nós fomos almoçar num restaurante que ficava nos fundos da atual Academia Maranhense de Letras, e eu fiquei admirando o tamanho dos sapatos do Darcy. Então, ele me disse: “já sei, Antônio, você está achando o sapato exagerado, mas, é que eu e o Francis vamos pisar na tribo dos índios Urubus-Kaapor, e tenho que me proteger dos tocos do mato, né? Por isso os sapatões que usamos”. Então, essa geração nos deu muitas alegrias.
Até que idade você morou em São Luís, e qual a razão da sua partida?
A minha partida daqui se deveu a uma experiência altamente frustrante, ao mesmo tempo em que foi altamente redentora. Eu acabara de fundar, quando tinha uns 27 anos de idade, um colégio chamado Ginásio Operário Getúlio Vargas, no âmbito da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, no bairro do Lira. Dr. Elói Coelho Neto era o presidente dessa instituição, no Maranhão, da qual eu era Secretário Geral. Nós fundamos vários colégios pelo interior do Maranhão, em Codó, Coroatá e outros municípios. Quando eu estava prestes a me tornar diretor da instituição, o governador Newton Belo me convidou para ser diretor do Liceu Maranhense, eu tinha apenas 28 anos de idade. Nos quatro anos em que permaneci ali, com um grande amigo, meu compadre, padrinho de um filho meu, o saudoso Merval Lebre Santiago, eu tive experiências ‘magníficas’, já que grandes ‘amigos’ que eu ajudei a colocar no Liceu me traíram posteriormente, disputando a diretoria, como é o caso de um pernambucano mau caráter chamado Gildo Cordeiro Rosa, que reprovava os alunos para depois ensinar matemática aos mesmos alunos, de forma particular, para poder aprová-los. Eu vivia recebendo pauladas do Jornal Pequeno, do meu amigo Bogéa, e do Neiva Moreira, que era diretor do Jornal do Povo. Faltava energia e no outro dia surgia a manchete: ‘diretor irresponsável do Liceu suspende as aulas’... Como é que se poderia dar aulas com velas? Era na época do João Goulart, greve atrás de greve, jogavam bombas na porta da escola, então eu mandava os alunos para casa.
Período conturbado...
Pois é, e aquilo me cansou a beleza, eu já tinha 32 anos. Então, resolvi fazer concurso para professor no Rio de Janeiro. Na ocasião, falei com o grande comandante, grande amigo meu, Renato Archer, que tinha grande trânsito junto à Panair. O Renato me ajudou com a passagem, eu era pobre, e fui fazer concurso na Escola Técnica Federal, na Universidade Gama Filho e na Escola Naval. Então, fui aprovado e me transferi para o Rio de Janeiro. Foi o início da minha redenção, pois eu dava 72 horas de aula no Maranhão, acumulava a direção do Liceu durante a manhã e à noite. Durante a tarde, funcionava a Escola Normal, sob o comando de Oceanira Galvão, descendente do grande poeta maranhense Trajano Galvão. Então, no Rio de Janeiro passei a trabalhar oito horas a menos e a ganhar seis vezes mais. Vivi durante dois anos na rua Maranhão, perto da escola Maranhão, da farmácia e da padaria Maranhão, para não fugir à tradição...(risos). Então, não cortei de uma vez o cordão umbilical com a minha terra, fui me despedindo do Maranhão aos poucos. Depois de dois anos comprei meu apartamento na rua do Copacabana Palace, onde moro até hoje.
Depois de tanto tempo fora do Maranhão, as suas vindas a São Luís são sempre marcantes...
São Luís é sempre um encantamento. Essa prosápia, essa fidalguia, esse orgulho que o Maranhão tem de praticar o melhor português do Brasil, sem favor nenhum, porque o Maranhão já nasce com essa vocação para respeitar o idioma pátrio, que é uma prova de bom caráter, realmente me impressiona. Havia um sujeito pichando uma das paredes da cidade e quebraram o maior pau em cima dele não por causa da pichação, mas, em razão de ele ter escrito à bessa com dois esses em vez de à beça, desrespeitando a língua portuguesa; só mesmo no Maranhão existem essas coisas.
E seus planos futuros?
Ano que vem vou fazer pela quarta vez 20 anos de idade...(risos)...não ria não porque a coisa é séria...(risos)...já estou descendo a ladeira...(risos)...mas vou descendo e também subindo, agora mesmo estou dando aulas para um curso de mestrado em Cruzeiro do Sul, perto de Rio Branco, formando uma turma de 50 mestrandos. Em maio ministrei aulas de Linguística Aplicada ao Ensino de Letras Neolatinas, área da minha formação, e tenho textos inéditos à espera de publicação; enfim, continuo escrevendo, produzindo sempre.
Fonte:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano X. Edição 238. 5 de outubro de 2011.
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