Impressa em Recife, junho de 1932
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Vou narrar agora um fato
Que há cinco séculos se deu,
De um grande capitalista
Do continente europeu,
Fortuna que como aquela,
Ainda não apareceu.
Pedro Cem, era o mais rico,
Que nasceu em Portugal,
Sua fama enchia o mundo
Seu nome anda em geral,
Não casou-se com rainha
Por não ter sangue real.
Em prédios, dinheiro e bens
Era o mais rico que havia,
Nunca deveu a ninguém
Todo mundo lhe devia,
Balanço em sua fortuna
Querendo dar não podia.
Em cada rua ele tinha
Cem casas para alugar,
Tinha cem botes no porto
E cem navios no mar,
Cem lanchas e cem barcaças,
Tudo isto a navegar.
Tinha cem fábricas de vinho
E cem alfaiatarias,
Cem depósitos de fazendas
Cem moinhos e cem padarias
E tinha dentro do mar,
Cem currais de pescarias.
Em cada país do mundo
Possuía cem sobrados,
Em cada banco ele tinha
Cem contos depositados,
Ocupava mensalmente
Dezesseis mil empregados.
Diz a história aonde eu li
O todo desse passado,
Que Pedro Cem nunca deu
Uma esmola a um desgraçado.
Não olhava para um pobre,
Nem falava com criado.
Uma noite teve um sonho
Um rapaz o avisava
Que aquele orgulho dele
Era quem o castigava
Aquela grande fortuna
Assim como veio voltava.
Ele acordou agitado
Pelo sonho que tinha tido,
Que rapaz seria aquele?
Que lhe tinha aparecido
Depois pensou, ora! Sonho,
É devaneio do sentido.
Um dia, no meio da praça
Ele a uma moça encontrou,
Essa vinha quase nua,
Aos seus pés se ajoelhou
Dizendo: senhor? Olhai!
O estado em que estou.
Ele torceu para um lado
E disse: minha senhora?
Olhe a sua posição!...
E veja o que fez agora
Reconheça o seu lugar,
Levante-se e vá embora
Oh! Senhor! Por esse sol
Que de tão alto flutua,
Lembrai-vos que tenho fome
Estou aqui quase nua,
Sou obrigada a passar,
Nesse estado em plena rua.
Ele repleto de orgulho
Nem deu ouvido, saiu,
A pobre ergueu-se chorando
Chegou adiante caiu,
Vinha passando uma dama
Que com o manto a cobriu.
Era a marquesa de Évora
Uma alma lapidada,
Tirando o seu rico manto
Cobriu essa desgraçada,
Ali conheceu que a pobre
Foi pela fome postrada.
Levante-se minha filha
E pegou-lhe pela mão,
Dizendo a criada a ela:
Vá ali comprar um pão
Que a essa pobre infeliz,
Falta alimentação.
Entregando-lhe uma bolsa
Com quarenta e dois mil réis,
Apenas tirou dali
Um diploma e uns papéis
Não consentindo que a moça
Se ajoelhasse aos seus pés.
E com aquela quantia
Ela comprou um tear,
Tinha mais duas irmãs
Foram as três trabalhar
Dali em diante mais nunca,
Faltou-lhe com que passar.
Vamos agora tratar
Pedro Cem como ficou,
E o nervoso que sentiu
Uma noite que sonhou
Que um homem lhe apareceu
E disse olhe bem quem eu sou,
Que tens feito do dinheiro
Que tomaste emprestado?
Meu senhor mandou saber
Em que o tens empregado?
E por qual razão cumpriu
As ordens que ele tem dado?
Ele perguntou no sonho
Mas que dinheiro eu tomei,
Até aos próprios monarcas
Dinheiro muito emprestei,
O vulto zombando dele
Disse: quem tu és eu sei.
Que capital tinhas tu
Quando chegaste ao mundo?
Chegaste nu e descalço
Como o bicho mais imundo
Hoje queres ser tão nobre,
Sendo um simples vagabundo.
E metendo a mão no bolso
Tirou dele uma mochila,
Dizendo é esta a fortuna
Que tu hás de possuí-la,
Farás dela profissão,
Pedindo de vila em vila.
Pedro Cem sonhando disse:
Ave agoureira te some
Tua presença me perturba
Tua frase me consome
De qual mundo tu vieste?
Diz-me por favor teu nome.
Meu nome, disse-lhe o vulto
És indigno de saber,
Meu grande superior
Proibiu-me de dizer.
Apenas faço o serviço,
Que ele me manda fazer.
Despertando Pedro Cem
Daquilo contrariado
Ter dois sonhos quase iguais
Ficou impressionado,
Resolveu contrafazer,
E ficar reconcentrado.
Pensou em tirar por ano
Daquela grande riqueza
Sessenta contos de réis
E dar de esmola à pobreza
Depois refletindo, disse:
Não me dá maior fraqueza
Porque ainda mesmo Deus
Querendo me castigar,
Não afundará num dia
Meus cem navios no mar,
As cem fazendas de gado,
Custarão a se acabar.
As cem fábricas de tecidos
Que tenho funcionando,
Os parreirais de uvas
Que estão todos safrejando,
Cem botes que tenho no porto
Todo dia trabalhando.
Cem armazéns de fazendas
As cem alfaiatarias,
As cem fundições de ferro
Cem currais de pescarias
As cem casas alugadas,
Cem moinhos, cem padarias.
E as centenas de contos
Nos bancos depositados,
E tudo isso em poder
De homens acreditados
Ainda Deus querendo isso
Seus planos eram errados
Pedro Cem naquela hora
Estava impressionado,
Quando aproximou-se dele
O seu primeiro criado,
E disse: aí tem um homem,
Diz vos trazer um recado.
Mande que entre a pessoa
Ele ao criado ordenou:
Era um marinheiro velho
Chegando ali o saudou,
Que novas traz, meu amigo?
Pedro Cem lhe perguntou.
Disse o velho marinheiro:
Venho-vos participar,
Que dez navios dos vossos
Ontem afundaram no mar
Morreram as tripulações
Só eu me pude salvar.
Que navios foram esses?
Perguntou-lhe Pedro Cem,
Respondeu o marinheiro:
Foi Tejo e Jerusalém
E Douro e Penafiel
Os outros eu não sei bem.
Aquela inda estava ali
Outro portador bateu
O empregado das vacas
Contou o que sucedeu;
Incendiaram os cercados
E todo o gado morreu.
Pedro Cem nada dizia
Ficando silencioso,
Apenas disse: na terra
Não há homem venturoso
Quem se julgar mais feliz
É pior que cão leproso.
Chegou outro portador
O empregado da vinha,
Disse o depósito estourou
Vazou o vinho que tinha
Pedro Cem disse: meu Deus!...
Que sorte triste esta minha.
Saiu aquele entrou outro
Era um cônsul norueguês,
Disse nos mares do norte
Andava um pirata inglês,
Noventa navios vossos
Tomou ele de uma vez.
Meu Deus!... Meu Deus!... que fiz eu
Exclamava Pedro Cem
Não há homem nesse mundo
que possa dizer vou bem,
quando menos ele espera
A negra desgraça vem.
Dos cem navios que tinha
Alguns foram afundados,
E outros pelos piratas
Nos mares foram tomados
Acrescentou a pessoa:
Vinham todos carregados.
Ali mesmo veio o mestre
Da barca Flor do Mundo
Esse fitou Pedro Cem
Com um silêncio profundo
Depois disse: senhor marquês?!
Dez barcaças foram ao fundo
Quatros vinham carregadas
Com bacalhau e azeite,
Duas vinham da Suécia
Com queijo, manteiga e leite,
De todas as mercadorias
Não tem uma que se aproveite.
Quatro das dez que afundaram
Traziam pérola e metal,
Só da ilha da Madeira
Vinham um milhão de coral
Topázio, rubi, brilhante,
Ouro, esmeralda e cristal.
Pedro Cem baixou a vista
Nada pôde refletir
Exclamou que faço eu?
Devo deixar de existir,
Mas matando-me não vejo,
Isso até onde pode ir.
Chegou o moço do campo
Tremendo e muito assustado
E disse: senhor marquês
Venho aqui horrorizado,
Deu murrinha nas ovelhas
E mal triste em todo gado.
Naquele momento entrou
Um rapaz auxiliar,
Esse puxando um papel
Disse: venho procurar,
Tudo quanto se perdeu
Na barca Ares do Mar.
Pedro Cem perguntou quanto
Tirou o moço uns papéis.
Que se lia entre brilhantes
Pulseiras, colares, anéis,
Um milhão e quatrocentos
E vinte contos de réis.
Entrou outro auxiliar
Disse eu quero pagamento,
Por tudo que se perdeu
No navio Chave do Vento
Que vinha da América do Norte
Com grande carregamento
Chegou um tabelião
Dá licença senhor Marquês?
Venho lhe participar
Que o grande banco francês,
Dois alemães, três suíços
Quebraram todos de vez
Lá se foi minha fortuna
Exclama Pedro Cem,
Ontem fui milionário
Hoje não tenho um vintém
Só mesmo na campa fria,
Eu hoje estaria bem.
Dando balanço nos bens
Quis até desesperar.
Tudo quanto possuía
Não dava para pagar
Nem pela décima parte
Os prejuízos do mar.
Exclamava: oh! Pedro Cem
Que será de ti agora!
No pouco que me restava
A justiça fez penhora,
Pedro Cem de agora em diante
Vai errar de mundo afora.
Carpir esta sorte dura
que a desventura me deu,
Talvez muitas vezes vendo
Aquilo que já foi meu,
Em lugar que não se saiba
Quem neste mundo fui eu.
Ali no terraço mesmo
Forrando o chão se deitou,
As onze e meia da noite
O sonho conciliou
No sono sonhando viu
O rapaz que lhe falou.
Aquele perguntou, Pedro
Como te foste de empresa,
Já estás conhecendo agora
Quanto é grande a natureza?
Conheceste que teu orgulho
Foi quem te fez a surpresa?
Metendo a mão na algibeira
Dali um quadro tirou.
Onde havia dois retratos
Que a Pedro Cem os mostrou
Conheces esses retratos
O rapaz lhe perguntou.
Via-se naquele quadro
Uma dama bem vestida
Pedro Cem disse por sonho:
Essa é minha conhecida
A outra uma moça pobre
Com fome no chão caída.
Perguntava-lhe o rapaz:
Quem é esta conhecida
É a marquesa de Évora
E esta que está caída?
Essa? É uma miserável,
Dessa classe desvalida.
O rapaz puxa outro quadro
Verde cor de esperança,
Onde via-se uma monarca
Suspendendo uma balança
Estava pesando nela
Caridade e esperança.
Mostrou-lhe mais quatros quadros
Que Pedro Cem conheceu,
Tinha a Marquesa de Évora
Quando a bolsa a pobre deu
Que estirou a mão dizendo:
Toma este dinheiro que é teu.
No quadro via-se um anjo
Assim nos diz a história,
Com uma flor onde se lia:
jardim da eterna glória,
Presenteado por Deus,
Esta palma de vitória.
Quem planta flores tem flores
Quem planta espinho tem espinho
Deus mostra ao espírito fraco
O que nega ao mesquinho,
A virtude é um negócio
A boa ação um pergaminho.
Depois que ele acordou
Triste impressionado
Interrogava si próprio
Porque sou tão desgraçado
Achou na cama a mochila,
Com que tinha sonhado.
Será esta a tal mochila
Que o fantasma me mostrou;
É esta que o homem em sonho
Em desespero exclamou:
Na noite em que a cruel sina,
Por sonho me visitou.
De tudo restava apenas
A casa de moradia,
Essa mesma embargaram
Antes de findar-se o dia
Então disse Pedro Cem
Cumpriu-se a profecia.
Lançando a mão na mochila
Saiu no mundo a vagar
Implorando a caridade
Sem alguém nada lhe dar
Por uma cinco ou seis vezes
Tentou se suicidar.
Ele dizia nas portas:
Uma esmola a Pedro Cem
Que já foi capitalista
Ontem tem, hoje não tem
A quem já neguei esmola
Hoje a mim nega também.
Foi ele cair com fome
Em casa daquela moça,
Quando foi a porta dele
Com fome, frio e sem força,
Que ele não quis olhá-la
A marquesa deu-lhe a bolsa.
A criada o viu cair
Exclamou: minha senhora!...
Ande ver um miserável,
Que caiu de fome agora,
Onde? Perguntou a moça
Ana disse: Ali fora.
A moça disse à criada:
Que trouxesse leite e pão
Aproximando-se dele
Disse: o que tens meu irmão
Bateste em todas as portas
Não encontraste cristão.
Senhora! Se vós soubesseis
Quem é esse desgraçado
Não me abririas a porta
Nem me davas esse bocado
Respondeu ela: conheço
Mas eu esqueço o passado.
Me recordo que a marquesa
Fez minha felicidade,
Viu-me caída com fome
Teve de mim piedade,
Deu-me com que comprar pão
E esta propriedade.
Pedro Cem se levantou
Disse obrigado e saiu
Andando duzentos passos
Tombou por terra, caiu
E umas frases tocantes,
Em alta voz proferiu:
"Vai unir-se à terra fria
O que não soube viver
Soube ganhar a fortuna
Mas não na soube perder
Se tenho estudado a vida
Tinha aprendido a morrer.
Foi como a corrente d’água
Que pela serra desceu,
Chegou o verão a secou
Ela desapareceu,
Ficando só os escombros
Por onde a água correu.
Eu tive tanta fortuna
Não socorria ninguém,
A todos que me pediram
Eu nunca dei um vintém,
Hoje preciso pedir,
Não há quem me dê também.
Não desespero, pois sei
Que grandes crimes hoje espio,
Nasci em berços dourados
Dormi em colchão macio
Hoje morro como os brutos
Neste chão sujo e frio.
Foram as últimas palavras
Que ali pronunciou,
Margarida, aquela moça
Que a marquesa embrulhou
Botou-lhe a vela na mão,
Ele ali mesmo expirou.
A justiça examinando
Os bolsos de Pedro Cem,
Encontrou uma mochila
E dentro dela um vintém
E um letreiro que dizia:
Ontem teve e hoje não tem.
Fonte:
Cascudo, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Rio de Janeiro, Ediouro, sd. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário
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